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Objeto de Desejo e Objeto de Conhecimento

No documento A pulsão de saber do expert (páginas 102-151)

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO 3.1 Pulsão de Saber

3.4 Objeto de Desejo e Objeto de Conhecimento

A aproximação do sujeito em relação ao objeto, segundo Godoi (2002), é permitida simultaneamente pelo investimento de libido no objeto e em virtude da capacidade cognitiva de apreensão do objeto, eis que objeto de desejo e de conhecimento se encontram intimamente relacionados. Para a autora, não há sombra de dúvida quanto à junção necessária

entre desejo e conhecimento na relação de aprendizagem. Dessa forma, para que o aprender ocorra, o objeto de conhecimento deve ser objeto de desejo (FÉRRES, 2000 apud GODOI, 2002).

Para Gomes (2008), o que liga o sujeito expert ao seu conhecimento de expertise se refere às relações estabelecidas pelo sujeito subjetivamente, e, logo, encontram-se primariamente em nível inconsciente. Analisar a expertise em qualquer área do domínio, então, implica em investigar a relação entre o objeto de desejo e o de conhecimento, ou seja, em identificar a pulsão de saber do expert, percebendo o desejo constante dele de se manter entrelaçado a certo objeto de conhecimento – no caso deste estudo, a medicina; mais especificamente, a cardiologia. Para tanto, é necessário aprofundar na história de vida de cada sujeito a fim de entender essa íntima relação subjetiva.

Assim fazendo, durante a vida escolar, nem todos os participantes se identificaram com a medicina ou com matérias relacionadas a ela, tais como ciências e biologia. Os fragmentos apresentados a seguir apontam, inclusive, o momento da definição pela profissão.

“Meu pai morreu quando eu tinha doze anos e era pediatra e até algum tempo

depois da morte dele, eu não me identificava com a medicina não. Me identificava mais com matemática, engenharia elétrica. Sempre fui muito mais afeito às áreas exatas do que humanas e biológicas...”. A decisão pela medicina se deu por uma questão fundamentalmente

financeira, porque entendia que ela ofereceria boa condição para sustentar sua futura família. “Então eu entrei pra faculdade com muito pouco romantismo. [A decisão] Foi, foi no terceiro

ano. Tanto que eu fiz vestibular para engenharia elétrica e medicina. Aí passei nas duas e depois acabei largando a engenharia elétrica. Comecei [a fazer engenharia elétrica e medicina juntas], mas depois eu vi que não tinha sentido”.

Outro entrevistado declarou que: “Até os dezesseis anos, quando entrei na

faculdade, eu não tinha sonho de ser nada. Que muita gente fala: ‘não, desde pequeno, eu quero ser isso, quero ser aquilo’. Eu não tinha isso ‘não, eu quero ser médico igual fulano’. Naquela época a medicina era o ápice, o topo do sucesso de um imigrante: ter um filho médico. E isso, desde pequeno, eu me lembro bem: ‘não, eu vou estudar pra ser médico ou engenheiro’, também se falava muito disso. Aí, até entrar na faculdade, eu tinha muito gosto pela área de exatas. Era muito bom em matemática, em física. Na época eu pensava em fazer engenharia ou física, embora eu não soubesse muito bem o que era engenharia ou física, mas achava que era bom. Bom, na verdade eu fui pra medicina porque o meu pai queria que eu fosse médico. Ele que meio que definiu”.

Assim sendo, esse participante acabou dividido à época do vestibular: “Eu me

inscrevi em vários vestibulares. Em Goiânia, por exemplo, eu sou natural de Goiânia, eu me inscrevi pra Engenharia. Me inscrevi em São José dos Campos, no ITA, que era super difícil e tal. E aqui em Brasília, tinham várias opções. Eu podia me inscrever em três opções, aí eu me inscrevi em medicina, engenharia e física. [...] Meio que coloquei o que o destino quisesse. Se eu tivesse que passar pra medicina eu passaria, e, de fato, aí eu passei para medicina. Eu passei muito novo, eu tinha dezesseis anos. Aí entrei pra medicina”.

Esses dois entrevistados apresentam algumas similaridades: não tinham uma afeição inicial pela medicina, gostavam das áreas exatas, dividiram-se no momento de escolher uma profissão e ambos escolheram a medicina por influência do pai. O primeiro, porque o pai era médico e deve ter lhe servido de exemplo, mesmo que financeiramente – esse foi o entrevistado cuja proposta inicial era ganhar dinheiro: “Se deu certo para ele conseguir

se erguer, por que que eu vou procurar um caminho que eu não sei o caminho pra dar certo? Se eu tenho esse caminho e sei que ser médico dá certo financeiramente, dá pra pagar as contas e foi por aí que eu decidi”. O segundo, talvez para realizar o sonho de seu pai: “ter um filho médico”.

Ramos-Cerqueira e Lima (2002) afirmam que o desejo dos pais de exercer a profissão, entre outros aspectos da profissão médica, é um dos ingredientes de conflito vivido pelo estudante, sendo que a organização que resultará em cada um da resolução desses conflitos será fundamental para a constituição do médico. Se essa influência dos fatores familiares na elaboração de um projeto de vida é analisada a partir do jovem que escolhe, verifica-se que a família, como primeiro grupo de referência do indivíduo, é de grande importância na transmissão de valores (OLIVEIRA, I., 2000). Isso porque, de acordo com Teixeira e Hashimoto (2005), a família é justamente o espaço em que os indivíduos depositam seus desejos e onde se forma uma vinculação afetiva. Logo, é possível notar a influência que os pais tiveram na escolha profissional desses participantes, seja pela transmissão de valores financeiros, pela repetição de um modelo, pelo desejo de realizar um sonho paterno, seja por uma necessidade de agradar e corresponder às expectativas parentais.

É importante destacar, ainda, que o aluno de medicina que vem de uma família de médicos – como um desses dois entrevistados – pode estar demonstrando a existência de diversos vínculos inconscientes com o grupo familiar, como submissão, cooperação, rivalidade, proteção, inveja, desejo de ocupar o lugar do pai, idealização etc. (MILLAN et al., 1999). No caso desse único participante filho de médico, a sua orfandade precoce, que

acarretou uma perda financeira, deve ter influenciado sobremaneira a sua responsabilidade em ser o provedor da família e, quem sabe, de ser o homem dessa família, em variados aspectos.

Vale enfatizar também que, em alguns casos, a adaptação à universidade se soma à experiência de sair de casa pela primeira vez e suas consequências, tais como: não há garantia de afeto e de cuidados que assegurem a sobrevivência no cotidiano, acentuando ainda mais a insegurança do adolescente acadêmico (RAMOS-CERQUEIRA; LIMA, 2002). Portanto, começar um curso tão árduo ainda novo (dezesseis anos), pode acarretar insegurança, principalmente se longe do seio familiar. E, tão jovem também, é mais fácil receber a influência parental sob a escolha da profissão – tal como ocorreu.

Ademais, nas falas descritas, há ainda o relato desses dois participantes acerca da indecisão em relação à escolha profissão, tanto que se inscreveram em vestibulares para cursos distintos. Gostavam das áreas de exatas e chegaram a cursar – ou a pensar em cursar – engenharia, por exemplo, mas acabaram desistindo e optando pela medicina, ainda que por influência do “destino”. Soares (2002) afirma que é normal o jovem se sentir culpabilizado perante a família e ao grupo de amigos quando ainda não decidiu qual profissão seguir. Por tal razão, arrisca deixar de fazer o vestibular para ter mais tempo para pensar. Para a autora, esse tempo gasto para refletir proporciona um amadurecimento maior do jovem em relação a si próprio e à escolha realizada. Não houve inferência, contudo, de nenhum desses entrevistados no sentido de que preferiam ter adiado o vestibular para poderem se decidir com mais segurança.

Outros dois participantes, ao contrário, ainda que inconscientemente, já apresentavam simpatia pela profissão. “A minha mãe conta que quando eu tinha seis anos de

idade, eu falava que queria ser médico, com seis anos”. É possível inferir por esse fragmento

que o participante não se recorda desse seu desejo infantil, devendo ser lembrado por sua mãe. Tanto, que a decisão consciente pela medicina só ocorreu à época o vestibular: “o momento

em que eu decidi que eu ia estudar pra prestar o vestibular de medicina, que era e continua sendo difícil, né, de entrar, eu tava entrando no primeiro colegial. E aí nesse momento eu decidi ‘não, vou estudar pra fazer o vestibular de medicina’. Aí comecei a estudar pro vestibular, já tinha o foco de ser médico”.

E o outro sempre se identificou com a medicina e sequer cogitou seguir outra carreira. “Eu tinha mais facilidade de estudar biologia. Sempre fui medíocre em matemática,

português, então, nem se fala. Minha mãe não sabe como entrei na faculdade com o português que tenho. Na verdade, desde que eu me conheço como gente, eu queria ser médico. Desde que eu me conheço como gente, eu queria ser médico. Então eu lembro que

saía algum artigo em revista, eu já recortava e colava. Eu tinha um caderno da infância, que eu fazia relacionado, não sei por que, ao coração. Tudo que saía sobre colesterol, doença das artérias, infarto, eu ia acumulando. Eu comprava quebra-cabeça, comprava o corpo humano, montava e desmontava. Quando estavam abrindo um sítio de frango, ia ver onde tava o coração, onde tava o cérebro. Sempre adorei isso. Então sempre gostei. Não, nunca [pensei em outra coisa]. Sempre medicina”.

Para Gomes (2008), a expertise pode começar a ser delineada a partir da forma criativa do sujeito expert em direcionar a sua pulsão para um conteúdo específico, passando a dedicar-se a ele de forma particularizada. Assim sendo, a expertise desse último participante cardiologista já começou a despontar ainda na infância, nessa fase inocente de recortes de notícias e de um interesse absolutamente especial em relação ao coração.

Na verdade, segundo Millan et al. (1999, p. 21), quando a “identidade vocacional” se estabelece cedo, o indivíduo a segue sem maiores problemas. Esse participante (único a escolher conscientemente a medicina ainda criança), em seus relatos, mostrou-se em constante encantamento com a profissão, inclusive durante os primeiros anos de curso, fato que corrobora com a afirmação dos autores em relação à falta de problemas significativos enfrentados.

Ademais, aquele gosto pela biologia destacado também foi citado pelo último entrevistado a ser analisado. “Eu gostava de ciências. Ciências biológicas no 3º ano foi legal,

era um professor que influenciava, né? Eu gostava, gostava de operar os bichinhos, dessas coisas todas. A decisão [pela medicina] foi no 2º grau”. Essa identificação a uma área

particular – no caso, à biologia –, encontra-se com a afirmação de Bloom (1985) de que

experts sentem desejo em aprender determinado campo do conhecimento desde a infância.

Evidentemente que nessa fase de vida esses participantes, apesar de estarem longe de serem

experts, já gostavam de uma área sobre a qual futuramente construiriam sua expertise.

Enfim, o posicionamento dos entrevistados em relação à escolha da profissão corrobora com a afirmação de Millan et al. (1999, p. 75) de que, do ponto de vista consciente, as razões mais comumente citadas pelos acadêmicos de medicina são: “o interesse pela biologia e a influência de terceiros, principalmente de pais médicos; a possibilidade de ajudar, tratar, curar, salvar e ser útil; a atuação no campo social e estar próximo das pessoas”. Para Fiedler (2008), dentre as motivações conscientes também estão o desejo de compreender, atração pela responsabilidade, prestígio e dinheiro. A busca de uma boa remuneração financeira, de status ou a atuação como profissional liberal, contudo, segundo Millan et al.

(1999), é pouco frequente atualmente – tanto que, nesta pesquisa, apenas um dos participantes tinha como propósito inicial a conquista de uma boa condição financeira.

Todavia, Millan et al. (1999) frisam que os verdadeiros determinantes para a escolha são os mais variados elementos de natureza inconsciente, tais como: possibilidade de salvar todas as vidas e, ainda, evitar a sua própria morte; desejo de curar e tratar de si mesmo por meio de outra pessoa, como uma projeção no paciente de suas próprias dificuldades, entre outros. Para Fiedler (2008), por sua vez, dentre as razões inconscientes se destacam também a identificação com o país, a curiosidade inconsciente de conhecer o corpo da mãe e o desejo de onipotência.

Cada um dos entrevistados, então, de uma maneira ou de outra, apresentaram suas razões conscientes e inconscientes que influenciaram sua decisão pela medicina. Contudo, a escolha objetiva ocorreu antes do Ensino Médio apenas para um deles – aquele que desde criança optou por ela, tendo descartado todas as demais. “Adorei, nossa [quando

passou no vestibular]. Tava realizando um sonho. Nossa. Quando eu entrei, eu não acreditava”. Todos os demais se definiram pela medicina apenas em razão do vestibular – e,

mesmo assim, como visto, ainda na dúvida –, e demoraram a gostar dela após o início do curso. Um deles (o que tinha pretensões apenas financeiras), sequer entrou no questionamento de gostar ou não, por considerar que não havia a opção de não gostar. “Não, não [não gostei

da medicina assim que passei no vestibular]. No início, eu não entrei nem nesse tipo de questionamento. Eu não tinha essa opção. Não estava dentro da minha contingência avaliar se eu gostava ou não. Na medida em que fui experimentando, de uma forma muito subliminar fui realmente me tornando médico e criando as afeições, conforme o meu perfil. [O gosto pela medicina] foi gradativo. Foi uma descoberta agradável. E você mexer com uma coisa que você está começando a entender, o desafio daquele negócio, isso foi trazendo prazer, né? E tinha uma coisa, esse outro lado que eu falei que não contava com isso, que é lado de me sentir à vontade tendo contato com seres humanos, mexendo com gente, dissecando veia e dando remédio, enfim. Me senti completamente à vontade fazendo isso. Não senti nenhuma barreira e nenhuma dificuldade em me aproximar, em estar realmente próximo das pessoas. Mas gostava do desafio intelectual”.

Esse participante passou a se sentir atraído pela medicina gradativamente, quando se percebeu lidando com assuntos que começava a entender, com o desafio letal e intelectual da profissão, com o fato de se sentir à vontade ao ter contato com seres humanos, medicando e se relacionando com pessoas especiais e diferenciadas. As questões práticas foram citadas como importantes – o que parece tê-lo surpreendido –, mas o maior atrativo

parecia ser mesmo o desafio intelectual. Ou seja, o gosto pela profissão foi ocorrendo a partir do momento em que a sua pulsão de saber era atiçada, instigada e desafiada. Mesmo assim, “não [não chegou o momento em que me apaixonei pela medicina]. Acredito que a minha

relação com a medicina não foi uma relação de paixão, foi quase como um namoro velho”.

Parece que a satisfação nunca esteve ligada especificamente à medicina, mas aos saberes, aos desafios, aos conhecimentos.

De todo modo, vale salientar que, para Andrade (2004), o saber, primeira exigência de qualidade profissional, oferece ao médico as primeiras pedras do alicerce em que se sustenta o prestígio e a respeitabilidade da profissão. Assim, para o autor, como estímulo a esse árduo e necessário trabalho que exige um esforço persistente e imorredouro, há a aquisição de conhecimento que liberta – sendo que o conhecimento médico faz mais: transforma. É possível inferir, então, que o autor entende que construir um saber médico, pode ser mais prazeroso e desafiante do que outros saberes, em face da sua capacidade de transformação.

Outro participante, ainda, confessou que odiou a medicina de imediato. “Não

[gostei do curso de medicina de imediato]. Odiei. E faculdade de medicina eu acho que é um centro de cabeça ruim, tem muita gente de cabeça ruim, assim, muita gente pouco inteligente, tal. Aí foi uma decepção. Eu me encontrei [na medicina] depois de formado, depois de... Me encontrei mesmo, assim, depois que eu terminei a cardiologia. Mesmo, assim. De apaixonar mesmo, depois de terminar cardiologia. Aí eu fiz clínica médica. Mas o tempo todo eu estudei bastante, né? Então tudo o que eu passava, eu passava bem, eu estudava bastante, mas não era apaixonado. Eu gostava, aí passava numa especialidade, tal, gostava daquilo, fazia bem e tal, mas não era apaixonado. Só fui me apaixonar depois que eu terminei a cardiologia. Aí eu fiz eletrofisiologia, que é uma especialização da cardiologia, é uma subespecialidade da cardiologia. Aí eu fiz três anos dessa... que foi apaixonante. Aí foi apaixonante, na arritmia, né? E fiz junto desses três anos, já fiz o doutorado também. Aí fui legal, porque aí era pesquisa, sabe? Não era só assistencial, como tinha sido até a cardiologia. Até a cardiologia, quase que não teve pesquisa. Tinha muito pouca pesquisa. Aí depois da cardiologia ficou mais interessante, aí eu me apaixonei mesmo”.

A faculdade, portanto, foi decepcionante para esse entrevistado. Parecia que ele não esperava encontrar pessoas de ‘cabeça ruim’ ou ‘pouco interessantes’ no curso de medicina. Supostamente, ele acreditava que se depararia com colegas desafiantes, de inteligência ímpar e de personalidade exemplar. Contudo, mesmo desiludido, jamais deixou de estudar e de se dedicar, conforme insistiu em esclarecer: “o tempo todo eu estudei

bastante”, “eu estudava bastante”, “durante a cardiologia, durante a clínica, eu estudava, mas não era uma coisa sofrida, assim, sabe? Não foi sofrido pra mim. Eu estudava por curiosidade, por vontade de querer aprender, né?”.

A paixão pela medicina para ele sequer ocorreu durante a faculdade, nem à época da especialização, e sim, após essa, durante a especialização da especialização. A paixão pareceu ter sido despertada por algo instigante, relacionado à ciência, à pesquisa e ao conhecimento e não à prática assistencialista típica da profissão. Parece que a sua pulsão de saber foi desafiada nesse momento, embora antes sempre estivesse presente. O próprio participante pretendeu deixar clara a distinção: “Então, assim, tem essa diferença: não foi

sofrido, mas não foi apaixonante. Aí depois passou a ser apaixonante”.

Outro entrevistado, por sua vez, afirmou que passou a gostar da medicina no sexto ano de curso, quando começou a se identificar com a prática médica. “Nos primeiros

anos, eu ia razoavelmente bem, mas não estava muito entusiasmado, assim, com a medicina. Acho que até o sexto ano, eu não gostava da medicina. Durante o internato, do sexto ano, eu realmente, tenho imersão no mundo da medicina. E aquilo de fato me agradou, principalmente porque houve uma relação muito boa com o paciente. Eu fui admirado pelos pacientes, ou seja, admirado, que eu digo, respeitado. E essa relação do médico com o paciente é que talvez tenha me entusiasmado mais com a medicina de fato. Não é uma coisa utópica, assim, piegas falar ‘não eu faço isso...’ Não é que eu to falando aquilo pra agradar, mas de alguma forma aquilo talvez seja o retorno positivo mais transparente dentro dessa relação. E aquilo me entusiasmou. Eu acho que, de fato, o que mudou pra mim foi isso. Até o sexto ano, parecia que estava adormecido e naquele ano, eu senti essa mudança”.

A pulsão de saber desse participante despertou, portanto, a partir do momento em que sentiu que podia ser médico e que deixou de ser apenas um aluno, passando a se tornar um estudante de destaque, reconhecido, admirado e respeitado. Ou seja, a relação saudável com o paciente possibilitou que desabrochassem sentimentos importantes para o entrevistado. O respeito de seus pacientes parece ter sido o maior chamariz para mudar a sua relação com a medicina, despertando-lhe um entusiasmo inexistente até então. Deixou de ser um aluno qualquer, para ter destaque.

Resta esclarecer que, segundo Lima-Gonçalves (2002, p. 60), os estudantes de medicina precisam “aprender a serem médicos”, o que envolve a aquisição de conhecimentos e informações essenciais ao diagnóstico das doenças e das formas de contorná-las ou superá- las, o desenvolvimento de habilidades que lhes possobilitam realizar o exame do doente, a execução de manobras e procedimentos destinados ao tratamento da doença, o

reconhecimento e o aprimoramento de atitudes e comportamentos que lhes permitam se relacionar de maneira adequada, reconhecendo nele alguém que precisa ser ouvido e compreendido, mais do que ser “tratado”. Assim sendo, gostando ou não gostando de imediato, com uma identidade vocacional ou não, na faculdade, todos os participantes precisaram se adaptar e se preparar para o ofício – o que, segundo Serra (2007), não inclui somente conhecimento técnico e científico, e sim também humano, crítico e reflexivo.

Assim, mais cedo ou mais tarde, a identificação com a medicina e o prazer em ser médico acabaram se instalando, tanto que nenhum dos entrevistados jamais pensou em desistir da profissão, mesmo nos idos tempos de desgosto: “Em algum momento pensei em

desistir? Não, nunca pensei”. Da mesma forma, em nenhuma ocasião se arrependeram da

escolha. Aliás, três deles declararam enfaticamente que fariam tudo novamente, caso pudessem.

“Não [me arrependi de ter escolhido a medicina], nem um pouco. [Faria] Tudo

de novo”.

“Faria de novo”.

“Faria tudo de novo? Faria. Faria tudinho de novo”.

Ademais, unanimemente, eles declararam que a medicina consome um lugar muito grande em suas vidas, o que, às vezes, pode ser um problema. “Essa é uma dificuldade

que eu acho que o equilíbrio... Por exemplo, de você conseguir deixar algumas coisas e você

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