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Constituição de 1988 e direitos políticos

CAPÍTULO 3 Direitos políticos e democracia no Brasil

3.6. Constituição de 1988 e direitos políticos

Até 1988, o pensamento jurídico brasileiro foi marcadamente positivista e comprometido com a defesa de um sistema de direitos voltado para a garantia da autonomia privada dos cidadãos. A Constituição de 1988 rompeu com o constitucionalismo anterior e estabeleceu um sistema mais amplo de direitos.

A Constituição Federal – CF de 1988 , que converteu todos os direitos da Declaração da ONU em direitos legais no Brasil e instituiu uma série de mecanismos processuais que buscam dar a eles eficácia, é certamente a principal referência da incorporação dessa linguagem dos direitos. Já em seu preâmbulo, ela institui “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem- estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (Citadino. 2002, p.25).

Os objetivos fundamentais do Estado foram definidos na Constituição brasileira. O “constitucionalismo democrático” da Carta de 1988 rompeu com a tradicional cultura jurídica do país ao estabelecer uma “defesa intransigente da efetivação do sistema de direitos constitucionais e de princípios democratizantes de orientação à conduta política” (Cittadino apud Werneck:2002:p.25).

A Constituição Federal regulamentou a existência de órgãos administrativos, judiciários e burocráticos para validar seus critérios de interpretação e redefiniu as relações entre os Três Poderes. O princípio utilizado foi inspirado no pensamento federalista norte-americano por incluir a arguição da constitucionalidade da lei, ou ato normativo. Os artigos constitucionais autorizaram segmentos organizados da sociedade civil, como partidos políticos, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com a faculdade de provocar a intervenção junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A nova Constituição reforçou a independência do Poder Judiciário, garantindo sua autonomia financeira. Fortaleceu a estrutura monocrática do Judiciário brasileiro com a garantia de independência de cada juiz. Regulamentou a liberdade organizativa dos partidos políticos e o direito ao voto, mantendo a Justiça Eleitoral como órgão especializado do Poder Judiciário. Embora tenha permitido a ausência de quadro técnico especializado para a Justiça Eleitoral.

Os valores constitucionais e o sistema de direitos fundamentais passaram a constituir o núcleo básico do ordenamento constitucional. O caráter concreto de normas constitucionais positivas foi considerá-los direitos constitucionais e não valores supraconstitucionais, ou supra-estatais, como afirmam os autores comprometidos com a visão do direito natural (Cittadino, 2002: p.31).

O sistema de corresponsabilização eleitoral implantado na lei constitucional e infraconstitucional estabeleceu a fiscalização mútua entre candidatos e partidos. Desta forma, atribuiu um papel definitivo para os conflitos políticos. Conflitos políticos formalizados para a interpretação do ordenamento constitucional, por meio do critério do respeito aos direitos fundamentais.

No processo Constituinte, os grupos de interesse perceberam a potencialidade de conversão do significado de “direitos”. Os partidos políticos, não podendo barrar as alterações realizadas pela maioria legislativa, passaram a utilizar com freqüência os tribunais para frear, obstaculizar e, até mesmo, inviabilizar as alterações em curso. 105 E estabeleceram a conexão com os interesses políticos e os princípios constitucionais.

Este formato institucional de organização estimulou o crescimento da demanda judicial. Aumentou o grau difuso de interpretação do ordenamento jurídico baseado, textualmente, nos artigos legais e no direito consuetudinário, mas também propiciou a diversidade de decisões, quer entre juízes, quer entre tribunais, ampliando o recurso à última instância dos tribunais federais e STF (Sadek, 2006: p.03).

A conseqüência deste processo de judicialização da política foi a concretização dos partidos, sindicatos e associações em intérpretes da

105 No que diz respeito ao processo legislativo, a Constituição de 1988 concedeu a faculdade de iniciativa

de lei aos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores do Poder Judiciário e ao Tribunal de Contas da União.

Constituição, chamando o Judiciário a exercer funções de checks and

balances no interior do processo político, como uma forma de compensar a

tirania da maioria e se consolidando como um importante ator político dentro do processo decisório” (Oliveira e Carvalho,: 2006: p.07).

Na defesa dos valores constitucionais, foi criado o Ministério Público. Descrito pela Constituição de 1988 como órgão estatal, independente, com função de proteger direitos constitucionais, em diversas áreas, como o meio ambiente, as populações indígenas, o patrimônio público e as matérias eleitorais. A Constituição Federal declarou o Ministério Público uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado.

Os objetivos descritos no texto constitucional foram a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Com a presença do Ministério Público, introduziu-se na Constituição (e nos autos processuais) a defesa dos direitos coletivos.

Os entrevistados por esta pesquisa foram unânimes em destacar a sua importância do MP para o processo democrático, mas, especialmente, para a representação de casos concretos (como de compra de votos, por exemplo). Destacamos a seguir a fala do especialista e pesquisador, Sr. Mauro Noleto, mestre em Direito e Especialista em Direito Eleitoral, Ex-Coordenador da Escola Judiciária Eleitoral do TSE (2005/2006).

O Ministério Público representa a coletividade e sempre que ele atua em juízo, atua em nome de um direito coletivo. Se atua muito no direito político, há de suspeitar que existem direitos políticos com esta dimensão coletiva. (...) Acho que (os direitos politicos) são coletivos e são individuais. Sem o Ministério Público seria um jogo de comadres e os partidos se entenderiam muito bem. (Sr.Mauro Noleto, Ex-Coordenador da Escola Judiciária Eleitoral do TSE; 2005/2006).

Em relação aos partidos políticos, a Constituição de 1988 (CF) não alterou as normas para registro e acesso ao Parlamento, mas trouxe modificações em seu aspecto organizacional. A partir de então, foi mudado o status jurídico dos partidos, que deixaram de ser entidades de direito público para transformarem-se em entidades de direito privado.

Independentes e autônomos, os partidos políticos institucionalizaram-se como mediadores, exclusivos, da relação de representatividade política construída entre

sociedade e o Estado. As agremiações tornaram-se a base formal e autônoma da representação de pluralidades de interesses e ideologias em uma comunidade política. 106

A exigência de que os partidos tivessem caráter nacional (art17 inciso I da CF) e o funcionamento parlamentar (art.17, inciso II da CF) foram regulamentados em legislação posterior. Fato que ocorreu com a Lei nº9.096/95.

O artigo 17 da Constituição de 1988 tratou dos partidos políticos nos seguintes termos:

Art17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:

I-caráter nacional;

II- proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes;

III- prestação de contas à justiça eleitoral;

IV- funcionamento parlamentar de acordo com a lei;

δ1º - É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidárias.

δ2º- Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior Eleitoral. δ3º- Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.

δ4º- É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar.

Os partidos passaram a ter nova função. A Constituição de 1988 fortaleceu os entendimentos inaugurados com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, em 1965. A definição de institutos de instrução política para formação e renovação de quadros e líderes políticos foram estimulados em conjunto com a manutenção de bibliotecas de obras políticas, sociais e econômicas e a edição de boletins e publicações.

Os partidos políticos foram formalmente incentivados a produzir materiais didáticos, cursos de educação cívica e alfabetização. Além disso, saíram fortalecidas as conferências, congressos, ou sessões públicas, para a difusão de programas partidários.

Embora permanecessem como condicionantes para o exercício democrático da mediação partidária com a sociedade, estas atribuições são de exclusiva decisão interna

106 Nas eleições posteriores à promulgação da Carta Constitucional, o número de partidos que concorreu

nas eleições de 1990 e de 1992 foi de 34 agremiações, enquanto nos anos de 1985 corresponderam a 29 e, em 1982 apenas cinco partidos disputaram o pleito (Fleischer, op.cit, p.20).

dos partidos políticos. E seguem sem regime de controle, fiscalização ou incentivo para suas dimensões formativas ou de democratização interna.

A organização interna dos partidos políticos foi responsabilizada por construir estímulos formais (ou cerceamentos) para a alocação de recursos políticos. O resultado foi o poder dos partidos em interferir em casos concretos da comunidade política. O principal deles diz respeito às candidaturas.

O impacto mais aparente tem sido a limitada importância atribuída às candidaturas femininas. Mesmo a regulamentação de norma eleitoral posterior, que definiu quotas de candidaturas às filiadas, não foi capaz de interferir no princípio da autonomia partidária.

O tema gênero é secundário ou mesmo inexpressivo na maioria dos partidos políticos. No entanto, provocado por algumas lideranças femininas, foi elaborada e aprovada, em 1995, uma legislação que atingiu todos os partidos políticos: uma lei de cotas. A ‘lei de cotas’ foi elaborada dentro da Câmara dos Deputados após uma forte negociação com políticos do sexo masculino, resultando numa distorção profunda. Para compensar uma cota de 20% de mulheres, os partidos políticos exigiram a ampliação do total de vagas, isto é, se o total era X ele passou a ser X+20%. Ou seja, o número de vagas para candidatas cresceu de 100% para 100% + 20%. Nos anos seguintes, como a cota subiu para 25% e 30%, respectivamente, o número de vagas também cresceu na mesma porcentagem. A título de exemplo, se um partido político tivesse o direito de apresentar 100 candidatos, em decorrência da lei de cotas ele pode atualmente apresentar 130 candidatos, dos quais 30% de mulheres (Blay, 2001: p.92).

A primeira lei (9.100/95) estabelecia 20% de mulheres nas listas partidárias para as eleições do ano de 1996. Em 1997, foi votada a lei eleitoral nº. 9.504, que aumentou o percentual para 30% a partir do ano 2000, estabelecendo o percentual intermediário de 25% para as eleições de 1998 (Pinto, 2001: p.102).

De acordo com o Ex-Diretor da Diretoria Judiciária do Tribunal Superior Eleitoral (2008/10), o advogado Marco Aurélio Neto, “o papel da mulher na política ainda está engatinhando”.

A participação feminina (em candidaturas) gira em torno de 12% a 13%, sendo que a legislação prevê 30%. De eleição para eleição a participação feminina avança de 1% a 2%. Assim, teríamos que dar um salto muito grande para alcançar o mínimo que a legislação prevê (Ex-Diretor da Diretoria Judiciária do TSE - 2008/10-, adv. Marco Aurélio Neto).

Mesmo após a lei que garantiu cotas para as mulheres nas listas partidárias, as dificuldades se mantiveram. Ou os partidos simplesmente não obedecem a lei, ou

completam suas listas com “falsas” candidatas, que não fazem campanha, ou mesmo não conseguem recursos políticos suficientes dentro do partido para eleger-se (Pinto, 2001: p.99).

A própria legislação eleitoral flexibilizou o entendimento da cota feminina para candidaturas, tornando a sua aplicação divergente. A Lei 9.504/97 alterou uma palavra na questão do percentual do sexo. Antes, era “deverá aplicar 30%” e a modificou para “poderá aplicar 30%”. Esta mudança abriu espaço para a divergência na interpretação da lei com alguns tribunais entendendo ser obrigatório este percentual e outros não. Segundo o especialista, Marco Aurélio Neto, a divergência é comum e acontece cotidianamente.

A consagração da autonomia partidária significou força aos estatutos das agremiações. O resultado foi a ausência de regulamentação jurídica para as atribuições dos partidos.

A autonomia é completa. Não existe (regulamentação), mas havia antes com a Lei Orgânica dos Partidos. A Lei 9.096 não é uma lei orgânica, está um pouco aquém daquilo que eu chamei de estatuto do eleitor, que é uma lei programática. O estatuto dos partidos é procedimentalista, não é nada. É vago demais e na verdade rege-se pelo seu estatuto. O partido político é visto como uma instituição de direito privado pela Constituição Federal e pela lei. Então é um órgão privado que é regido pelo seu estatuto. Mas que não obstante representa esta instância de mediação com o cidadão (Sr.Mauro Noleto, Ex- Coordenador da Escola Judiciária Eleitoral do TSE - 2005/2006).

Na perspectiva da lei, a relação de mediação representativa com a sociedade foi instrumentalizada com um órgão de direito privado, regido por seu estatuto. A distribuição interna de recursos políticos, a democratização de procedimentos e escolhas de candidaturas, além da efetivação do papel formativo dos partidos políticos, não foram regulamentadas por normas, ou instituições. E principalmente, permanecem como obstáculos às liberdades e direitos políticos no país, resultando na frágil democratização da representatividade.