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Formalização da Justiça Eleitoral

CAPÍTULO 3 Direitos políticos e democracia no Brasil

3.2. Formalização da Justiça Eleitoral

No Brasil, os primeiros quarenta anos da República (1889-1930) corresponderam ao sistema coronelista de organização das oligarquias estaduais no controle político do país. A Presidência da República conduziu a pactuação, no plano federal, a partir de uma rotatividade imposta pelos estados de São Paulo e Minas Gerais, conhecida como “Política Café com Leite”.

Em cada consulta eleitoral, residia o reconhecimento mútuo entre as autoridades estaduais, impondo sua força política às pequenas localidades. Neste sistema político coronelista, o voto, muitas vezes chamado “voto de cabresto”, serviu como fator de legitimação do pacto entre as lideranças locais com o governo estadual (Leal,1996).

As oligarquias estaduais possuíam inúmeros instrumentos de controle e a regulamentação da prática eleitoral caminhou por supostos e inconsistentes avanços. Em toda a história das eleições presidenciais da Primeira República, nunca nenhum Presidente se elegeu com uma porcentagem eleitoral inferior a 85%, além da rotatividade dos membros da Câmara dos Deputados ter sido absolutamente insignificante (Bastos,1990: p.40).

A prática eleitoral, na Primeira República (ou República Velha), iniciava-se com o alistamento fraudulento e com garantias dos resultados asseguradas pelo constrangimento e coação do eleitor. A sequência de manipulações, para a manutenção da estrutura de compromisso coronelista, incluía alterações no alistamento eleitoral, “bico de pena”, fraudes na composição da mesa eleitoral e na expedição de diplomas.

O controle sobre a diplomação dos eleitos foi uma das ferramentas mais eficazes de interferência no processo de escolha pública. Segundo Victor Nunes Leal, o veto de candidaturas oposicionistas ocorreu, por meio do direito de reconhecimento e verificação atribuído à Comissão de Verificação de Poderes da Câmara dos Deputados. Caso o candidato não aliado do governo conseguisse ser eleito, o seu diploma poderia ser cassado.

Como existiam inúmeros falsos diplomas aprovados por juntas de apuração, muitas vezes, com influências políticas rivais, criou-se, com a Lei Rosa e Silva (1904), outro critério para o predomínio das oligarquias estaduais, vinculando a aceitação dos diplomas às assinaturas da maioria das juntas eleitorais da região. Se alguma dissidência oligárquica, ainda assim, fosse capaz de eleger e diplomar os seus candidatos, havia ainda as comissões de verificação de poderes, responsáveis por barrar a posse daqueles que não tinham o apoio dos governadores (Kinzo: 1978: 73).

O alistamento, a qualificação dos eleitores e os recursos às listas de votação cabiam à própria junta apuradora, representadas em sua instância máxima pelos comprometidos juízes de direito de cada município. Correspondendo, ao final dos pleitos, no total controle em relação aos direitos e garantias do sufrágio.

De 1904 a 1920, o controle sobre o voto do eleitor passou por adaptações. No começo da Primeira República, o voto poderia ser declarado em qualquer papel, sendo apurado mesmo que a cédula não estivesse inteiramente fechada, desde que constasse obrigatoriamente na cédula de votação, o nome e sobrenome do eleitor. Ainda em 1920,

ao eleitor era permitido o voto em outra seção do distrito municipal. No entanto, o voto era tomado em separado. Isto significava que o voto, o título e a carteira do eleitor ficavam sob o poder do juiz eleitoral (Ribeiral, 2004:p.21).

A legislação eleitoral sofreu significativas modificações. Uma importante mudança formalizada pelo Decreto Presidencial n.4226, de 30 de dezembro de 1920, foi o estabelecimento da listagem eleitoral permanente. Os avanços possuíam contornos meramente formais e o poder de decisão sobre o processo eleitoral, até a diplomação dos eleitos, estava completamente nas mãos dos juízes e das mesas apuradoras.

Competia ao juiz de direito proferir o alistamento, o despacho definitivo de inclusão, ou não inclusão no alistamento, inclusive definindo sobre a veracidade da alfabetização, identidade, letra e qualificação do eleitor. O horário do voto também era controlado pela mesa eleitoral, uma vez que os juízes e fiscais eleitorais ficavam “separados do lugar de votação apenas por um gradil de modo, porém, que a estes seja possível fiscalizar a eleição” (Art 28 do Decreto n.14.631, de 19 de janeiro de 1921).

O ano de 1921 marcou o fim da exigência de assinatura do eleitor na cédula de votação, mas as apurações continuaram repletas de interferências, chegando mesmo a serem desorganizadas e caóticas. As urnas eram abertas na presença do eleitorado e, ali mesmo, a apuração tinha início com a declaração em voz alta, pelo Presidente da mesa, dos vencedores do pleito. Procedimento este que permaneceu até o fim da Primeira República (Vellasco,1935: p.90).

A interferência de autoridades judiciárias foi sendo introduzida aos poucos na organização das eleições republicanas. Entretanto, com uma magistratura deficiente e dependente do governo municipal e estadual, tal prática não modificou a estrutura fraudulenta das eleições, uma vez que existiam mecanismos diversos de manipulação sobre os resultados dos pleitos.

Foram duas as leis que estipularam o controle judiciário do processo eleitoral. Em 1904, a Lei Rosa e Silva (Lei 1269) afastou a interferência direta dos governos municipais na prática dos pleitos. A composição da mesa apuradora passou a ser formada pela magistratura, maiores contribuintes do município e, em menor número, de cidadãos locais escolhidos pelos vereadores.75 A Lei nº3.139, de 1916, confirmou o

75 A incipiente introdução de magistrados no controle do procedimento eleitoral, regulamentada em 1881,

foi modificada pelo Regulamento Alvim, já em 1890. Este regulamento foi o instrumento utilizado pelo Governo Provisório para obter a maioria dos representantes que deveriam elaborar a nova Carta Constitucional. O papel do primeiro decreto eleitoral republicano foi aproximar o controle local da prática das eleições com os poderes estaduais. No momento inicial do golpe, já havia sido estabelecida a

alistamento eleitoral exclusivamente às autoridades judiciárias (Vellasco:1935).

Nem por isso, o alistamento eleitoral deixou de ser a primeira, e mais evidente, forma de seleção de eleitores e de fraude nas listas eleitorais. A Lei de 1904 supunha recursos inúmeros para o alistamento de eleitores, prevendo uma comissão de revisão de alistamento, composta (em 1904) por um juiz de direito, três nomeações do prefeito e por mais quatro grandes contribuintes do município.

Foram inúmeros os recursos realizados pela comissão de alistamento, eleitores eram constantemente incluídos e retirados pelos juízes das listas de votação. As fraudes possuíam as mais diversas manifestações, mesmo os agentes públicos, muitas vezes nomeados pelos chefes locais, não mediam esforços para garantir a eleição de seus superiores. Os próprios agentes dos correios eram constantemente envolvidos em artimanhas eleitorais, quer sumindo com títulos, ou atrasando em demasia a entrega dos recursos, ou listas de alistamento indesejáveis. Tal prática era tão comum que há menção legal e punições previstas (embora nunca efetivadas) para agentes dos correios que fizessem sumir papéis do recurso, ou demorassem na sua remessa (Porto:1996).

A transferência do controle do processo eleitoral do Poder Executivo para o Poder Judiciário, incipiente no início da República, foi um dos aspectos mais importantes da formação eleitoral brasileira. A legislação eleitoral republicana iniciou a tipificação dos delitos sem, contudo, lhes atribuir penas específicas, o que inviabilizava a sua aplicação. 76

Mesmo na Primeira República houve uma preocupação em garantir minimamente as aparências de uma representação liberal. Tal preocupação com a garantia do “livre exercício dos direitos políticos”, assim definido em lei, culminou com a organização de um Código Penal em 1916, complementado pelo Decreto n.4215, de 20 de dezembro de 1920. As primeiras tipificações de delito eleitoral versavam sobre o interferência direta dos intendentes no controle absoluto do processo eleitoral (Kinzo, 1978: p.71). 76 “Nesta linha de observação, devem ser anotados dois pontos importantes: a política de definição de crimes eleitorais e a ascensão da participação do Poder Judiciário, não só na apreciação dos crimes eleitorais, como também no controle do próprio processo eleitoral, especialmente pela via do habeas- corpus. A partir de 1916, consolidam-se as primeiras tipificações de delito eleitoral: o constrangimento ilegal, a prisão ou detenção de membros da mesa eleitora, salvo em flagrante delito, sem que todavia se explicitem as sanções aplicáveis. Só em 1920, a partir da Lei 4226, é que os delitos começam a ser definidos e vinculados a sanções penais explícitas. Esses delitos, em geral, são manifestações diversificadas das fraudes eleitorais, mecanismos eleitoreiros imprescindíveis ao controle eleitoral pelos oligarcas” (Bastos, Aurélio apud Brasil, Olavo, 1990:p.45).

constrangimento ilegal, a prisão, ou detenção, de membros da mesa eleitoral, bem como sobre fraude no alistamento e apuração dos votos. 77

No entanto, as legislações eleitorais do período previam, constantemente, gratificações e abonos aos juízes, escrivãos, e tabeliães. Os juízes responsáveis pelo alistamento tornaram-se, cada vez mais, peças definitivas para o bom funcionamento do sistema de compromisso entre os poderes locais e a organização estadual. O poder dos juízes tornava-se indeterminado, podendo incluir, ou retirar, eleitores de listas de votação dez dias antes do pleito, duvidar da identidade do eleitor, ou reter o título eleitoral sob qualquer fundamento. As revisões das listagens eleitorais eram inúmeras. No dia da eleição, mesmo que de posse do seu título eleitoral, se o votante não estivesse incluído em uma das listas organizadas pelo juiz e criadas especificamente para cada pleito, o eleitor poderia ser impedido de votar (Ribeiral, 2004: p. 23).

A influência do federalismo norte-americano foi significativa na organização republicana do Brasil. A vocação federalista traduziu as propostas de enfraquecimento do centralismo unitário do Império e subsequente organização dos estados federados.

A República inaugurou a organização estadual da Justiça, mais especificamente os Códigos de Processo Federados. No movimento de organização estadual dos Códigos de Processo, existiu uma grande divergência na regulamentação entre os estados, embora a tradição de competência do Judiciário brasileiro tenha sido provincial (Bastos, 1990: p.42).

As Constituições Estaduais tiveram força sendo responsáveis inclusive pela administração e condução do processo eleitoral. A própria existência ou não da consulta aos cargos públicos passava por uma lógica interna dos estados, estabelecendo diferenças importantes entre um e outro ente federativo.78 Em muitos casos, as legislações estaduais exigiam duas vias do voto, uma para a votação em si e a outra para o controle externo dos aliados e capangas dos chefes locais, responsáveis por

77 A legislação, embora legitimasse a interferência dos membros da junta apuradora, ou da mesa eleitoral,

na condução do pleito, estabelecia penas de prisão para os praticantes de fraudes eleitorais de 6 meses a 1 ano de prisão. No entanto, além da prescrição de oito anos para os crimes eleitorais, havia uma cláusula interessante nas leis do período, aos membros da junta apuradora, ou da mesa eleitoral, era prevista anistia aos crimes cometidos, desde que “contra a fraude protestassem no ato de ser praticada” (Art.50).

78 A Constituição Republicana foi explícita ao estabelecer que era competência do Congresso legislar

conferirem o voto na saída da votação.79

A Emenda Constitucional de 1926 formalizou as interferências e o controle dos governos estaduais sobre o processo eleitoral. Esta iniciativa tornou ainda mais explícita a tutela do voto.

Em alguns estados havia eleição para o chefe do Executivo (o nome variava de acordo com o estado: prefeito, intendente, superintendente, agente do executivo) de todos os municípios. Em Minas Gerais (entre 1903-1930) e no Rio de Janeiro (até 1920), o presidente da Câmara era responsável pela função executiva. Em alguns estados (Ceará e Paraíba), todos os prefeitos eram indicados pelo governador. Em outros, havia indicação para os prefeitos das capitais, estâncias hidrominerais, e cidades com obras e serviços de responsabilidade do estado” (Nicolau, 2002: p.28).

Em nenhuma das modificações legais alterou-se a definição dos distritos. As circunscrições foram um eficiente mecanismo de controle e delimitação das influências oligárquicas. Tal organização permitiu que o estado de Minas Gerais controlasse o Poder Legislativo por toda a Primeira República, mesmo depois que a sua população ficou menor que a de São Paulo. 80

Quanto às agremiações, a sua definição, como partidos únicos, estaduais, não teve qualquer modificação durante o período. A legislação eleitoral não faz nenhuma referência aos partidos políticos. Estes foram organização de forma unitária, seccionados por estados. Somente com a promulgação do Código Eleitoral de 1932 foram definidas as bases da organização partidárias no Brasil (Bastos apud Brasil, 1990: p.43).

Mesmo com um processo eleitoral fraudulento e corrompido, as eleições viciadas da Primeira República foram as responsáveis por garantir a estrutura de compromisso existente entre as oligarquias locais, os estados e o governo federal. Com

79 A legislação muitas vezes era clara, não apresentando qualquer dualidade ou dissimulação quanto ao

controle da mesa apuradora sobre a manifestação do eleitor. A Lei estadual gaúcha nº153 de 1913, em seu artigo 93, estabelece que o “eleitor chamado a votar deverá exibir o seu título e entregar a sua lista em dois exemplares iguais, aberta, escrita ou impressa em qualquer papel, mais assinada por ele próprio”. Com o Distrito Federal, a preocupação de garantia dos resultados eleitorais era ainda mais cuidadosa. Os invólucros dos livros e atas das seções eleitorais deveriam ser especiais, e a votação deveria ser realizada por juízes cuidadosamente definidos. A legislação específica para o Distrito Federal previa ainda mais uma artimanha legal chamada de ata de transcrição de votos, com a apuração e controle “final” dos resultados enviados aos órgãos superiores.

80 Durante o período histórico em questão, a Câmara permaneceu com o número de 212 deputados, dentre

eles, 37 eram de Minas Gerais, empatados, em segundo lugar, vinham São Paulo e Bahia, com 22, seguidos de Pernambuco e do Rio de Janeiro, com 17 representantes.

o fim do voto censitário e ampliação do sufrágio masculino, as eleições atingiram outra importância consolidando-se como um fator decisivo para a organização federativa do poder político. O período republicano introjetou o processo de consulta eleitoral um pouco mais na prática política do país.

A importância do voto esteve em sua manipulação, que estruturou-se em procedimentos legalistas e excludentes impostos pelos estados. O voto funcionava como moeda de troca dos poderosos. Os “coronéis” deveriam garantir, de qualquer maneira, a eleição do governador de seu estado e, em contrapartida, receberiam carta branca para o controle do poder local - nomeando desde o delegado até a professora primária (Leal, 1996).