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Divisão de poderes e ordenamento jurídico constitucional

CAPÍTULO 1 Estado liberal-representativo, direitos

1.2. Divisão de poderes e ordenamento jurídico constitucional

As Ciências Sociais refletiram amplamente acerca das fontes de legitimidade e soberania do Estado. A tradição liberal iniciada por Thomas Hobbes, seguida por Locke, Montesquieu e os federalistas Madison, Hamilton e Jay, entre outros, concebeu o poder político por dois aspectos principais.O primeiro pensou o poder político como uma derivação dos direitos naturais, entendidos como a necessidade de segurança da vida e dos bens dos indivíduos (Bobbio, 1997).18 O segundo aspecto, descrito por Max Weber e pelos teóricos norte-americanos do século XVIII, organizou o poder político por meio da tecnicidade e racionalidade do ordenamento constitucional, controlado pelo mecanismo de divisão tripartite e racional de poderes (Gómez, apud Araújo e Amadeo, 2009).

O poder político para os autores contratualistas, como Thomas Hobbes (1979), Locke (1973) e também Rousseau (1996), o ato específico através do qual se explicita a racionalidade do Estado é a lei. Esta é entendida como norma geral e abstrata, produzida por uma vontade racional. A doutrina jusnaturalista do Estado é uma teoria que postula o Estado racional. Na medida em que o concebe como, por excelência, um ente da razão único, no qual o homem realiza plenamente sua própria natureza de ser racional (Bobbio & Bovero, 1994).

A inspiração comum a todas essas tradições está nos direitos naturais que, enquanto naturais, eram anteriores à instituição do poder civil e, por isso, deveriam ser reconhecidos e protegidos por este poder. Este conjunto de direitos seria inerente ao ser humano e anterior à constituição da comunidade política ou da sociedade.

Segundo Thomas Hobbes (1979), em O Leviatã, a ordem e, portanto, a garantia dos direitos naturais, deve ser inventada e construída já que o dado anterior ao ordenamento soberano é a desordem social. Neste momento cai a ideia aristotélica da espontânea politicidade dos seres humanos, como as abelhas e as formigas, para ser

construído o momento de pertencimento, obediência e autoconservação dos direitos naturais (Gonzalez, 2009).

Para garantir a estabilidade política dos Estados modernos seria fundamental a garantia da legalidade dos procedimentos, entendida como um conceito jurídico em conformidade com um ordenamento vigente em constituições. A racionalidade estaria associada, entre outras dimensões, ao desenvolvimento de normas do tipo “legal”. Normas estas capazes de produzir um pensamento jurídico racional com um “sentido”, com um elo metodológico (Giddens, 1997).

A teoria weberiana concretizou a noção de que o Estado moderno deveria ser percebido como o processo de concentração dos meios gerenciais, militares e legais. (Bobbio, 1987). 19 Para Max Weber (1980, 1999) o Estado, especialmente próximo do tipo ideal de dominação racional-legal, “monopólio do uso legítimo da força”, apresenta a soberania derivada das normas legais. Estas devem estabelecer a quem e em que medida deve-se obedecer.

A racionalidade, segundo Weber, foi a responsável pela desmistificação da sociedade. 20Antes da ascensão da razão e do conhecimento, o que tínhamos era a supremacia da religião e de virtudes morais e éticas pré-estabelecidas. A racionalidade trouxe consigo a técnica e a ciência e isso perpassou para a política, a economia e a sociedade.21 O autor rejeitou completamente a concepção de que a esfera do ‘racional’ pudesse se estender à avaliação de padrões éticos conflitantes (Weber,1996: p. 53).

O autor alemão, como teórico conservador e liberal, interfere definitivamente na compreensão hegemônica sobre as razões de legitimidade do Estado. Os dois princípios

19 Para Weber, a formação do Estado alemão novecentista deveria sobrepor-se ao seu tardio

desenvolvimento industrial e à ausência de unidade política. A afinidade entre a produtividade capitalista e a lei racional derivaria do fator de “cálculo”, que era intrínseco a ambos. (Cohn, 1979) Acima dos argumentos sociais diversos, o que aconteceria entrelaçado com o processo de expropriação histórica

20 Em A Ética Protestante e Espírito do Capitalismo, Weber (1996) preocupa-se com a expansão do

Estado capitalista, sob determinado modo econômico de desenvolvimento histórico. Vê na necessidade de organização racional da economia a “importância incontestável” das estruturas também racionais do direito e da administração: “Isto porque o moderno capitalismo racional baseia-se, não só nos meios técnicos de produção, como num determinado sistema legal e numa administração orientada por regras formais” (Weber, 1996: p. 10).

21 Para Weber, a burocracia do Estado seria o instrumento pelo qual a garantia da ordem liberal e da

democracia seria efetivada, evitando assim que determinados grupos ou facções se perpetuassem no poder político. Mas, ao mesmo tempo antevia a real necessidade de expansão do controle sobre o aparelho burocrático (Held, 1987). O desenvolvimento da democracia representativa tornou-se, a seu ver, o principal instrumento de controle sobre a máquina administrativa e sobre o “despotismo burocrático” (Giddens, 1998: p. 33).

da legitimidade são aqueles recordados por Gaetano Mosca (1975): os governantes recebem seu poder da vontade de Deus ou da vontade do povo ou tradição.

O conceito de legitimidade, de natureza essencialmente política, com o liberalismo passa a ser entendido a partir das relações de poder relativas à dominação não cotidianamente imposta (Weber, 1996). Nesta perspectiva, as relações juridicamente ordenadas seriam importantes para o desenvolvimento de uma autonomia regulamentada por normas. O argumento de legitimidade do Estado é “técnico e “racional” (Weber, 1999: p. 65).

Na linguagem política moderna, o termo legitimidade é um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, ou somente utilizá-la em situações específicas (Bobbio, 1986: p. 675). Em Weber, a racionalização do direito é um fenômeno derivado do “desenvolvimento das relações juridicamente ordenadas em direção à materialização de princípios éticos externos ao mercado e às relações contratuais nele prevalecentes” (Gonzalez,., 2009: p. 317). Assim, os sistemas racionalizados de organização social não criavam valores, mas funcionavam para o seu fortalecimento.

O segundo aspecto da tradição liberal foi responsável por organizar o poder político por meio do ordenamento constitucional. A formulação constitucional, ao final do século XVIII, acabou por definir-se como um arranjo de grande influência institucional para a organização política de dezenas de países no Ocidente.

A construção de um sistema representativo com instrumentos de controle da constitucionalidade das leis foi influenciada por teorias políticas que se disseminaram pelo mundo.Federalistas e anti-federalistas norte-americanos contribuíram para a construção teórica e prática dos instrumentos constitucionais do século XIX e XX..

A constituição norte-americana e a declaração da Carta de Direitos, em 1791, promoveram o princípio do ordenamento jurídico e da separação de poderes. Estes princípios foram integrados à concepção dos freios e contrapesos (“checks and balances”), impondo limites à atuação de cada poder do Estado. A defesa de tais ideias

esteve atrelada à criação de soluções constitucionais, em acordo com garantias à autonomia dos diferentes ramos do poder, especialmente dos direitos individuais.

Para Madison (“O Federalista n.10), proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Deste modo, deve-se buscar constituir uma unidade federativa, com um governo centralizado por uma constituição, limitado e controlado por poderes no intuito de assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos interesses e direitos individuais. (Limongi, 2005).

Ao final do Século XVIII, os Estados Unidos da América conceberam o sistema político e legitimaram, definitivamente, as funções estatais pela via do marco constitucional e defensor de direitos individuais. Todavia, nos Estados Unidos oitocentistas, o crescimento do poder constitucional ocorreu simultaneamente com a limitação ao crescimento do poder e influência da cidadania sobre as legislaturas locais. Portanto, nasceu como um grave temor ao fortalecimento das assembleias legislativas.

A construção tripartite, constitucional e complexa de poderes, derivou da suposta dificuldade que teriam as maiorias em tomar decisões razoáveis, cedendo a paixões e impulsos em lugar de guiar-se pela razão. Em especial, havia a intenção de impor limites àquele poder responsável por criar e reformular as leis.

Neste sentido, a legitimidade democrática da democracia e do ordenamento jurídico organizou-se a partir de um sistema de crenças na racionalidade das instituições (Herzfeld, 1993). Racionalidade esta que tornou-se cada vez mais distante dos ideias de influência da cidadania sobre as legislaturas locais.

De acordo com Roberto Gargarella (1996), as assembléias legislativas no país norte-americano eram formadas por representantes organizados, com um significativo grau de ligação com associações civis.

En particular, a fines del siglo XVIII, y como prática que permanecia desde la época colonial, era muy habitual que los habitantes de cada comuna se reunieran en las llamadas ‘town meetings’ o ‘asambleas comunales’ a debatir los problemas que más diretamente les afectaban. (...) Más tarde, comités ad hoc integrados rotativamente por ‘ciudadanos comunes” trataban de llevar a la práctica lo acordado en las asambleas. (...) El resultado final de estas atividades colectivas fue el siguiente: por un lado, comunas muy activas en el conocimiento y defensa de suas intereses, y por

outro, legislaturas permanentemente acossadas por críticas y demandas de sus representantes.(...) Según S. Patterson, a mediados de la década 1780- 1790 había uma total conexión entre la voluntad de las asambleas populares y los votos de las asambleas legislativas, lo cual constituían una temible novedad para la classe dirigente de entonces (Gargarella,1996: p 19-25).

Mais do que defender a causa de um novo governo constitucional, os federalistas advogaram limites aos princípios comunais de decisão por maioria, uma vez que representariam uma ameaça aos direitos das facções minoritárias. Também Hamilton compartilhava desta compreensão e procurou defender a limitação do poder das assembleias locais.

Viendo lo que ocurría a nível estatal con las diversas legislaturas, el notable político Alexander Hamilton denunció la ‘usurpación” del poder de la legislatura, y previno a sua pares ante la posibilidad de ver a los representantes populares contituidos en ‘dictadores perpetuos’. En sentido similar, aseguró estar siendo testigo del ‘despotismo de la legislatura’, lo cual le confirmaba que ‘no había tiranía mas opresiva’ que aquella emanada de ‘uma mayoría victoriosa’. George Washington, por su parte, percibió ‘prejuicios’ en las mencionadas actitudes de la legislatura, así como ‘unos celos irracionales en intereses locales’ (Idem: p. 25).

Os argumentos dirigiram-se para o controle da “soberania comunal”, fortalecimento de uma representação limitada e a construção de um Estado constitucional. 22 Desde a incorporação constitucional norte-americana à função judicial, o controle das comunas e o fortalecimento do ordenamento jurídico e dos direitos individuais seriam justificados.23

22 Segundo John Ely (2010),a tarefa mais difícil foi e continua sendo a de criar uma ou mais maneiras de

proteger as minorias da tirania da maioria sem incorrer numa contradição flagrante com o princípio do governo majoritário: “... no direito, como na lógica, qualquer coisa pode ser inferida de uma contradição” (Ely, 2010: p.12). A tarefa de definir quais valores deve ser colocada fora do alcance do controle majoritário, pertencente diretamente à constituição. Isso significa que, já a própria Constituição Norte- Americana “foi avaliada e ratificada pelo povo, esses valores vêm, em última instância, do povo” (Idem). Nessa hipótese, quem controla o povo não são os juízes, mas a constituição – o que significa que, na verdade o “povo controla a si mesmo” (Idem: p. 14).

23 A teoria da repartição tripartite do poder consistia em contrapor, por meio do controle e divisão dos

processos e funções estatais, a tendência humana de abusar do exercício de qualquer instrumento de poder. A forma de alcançar este último objetivo consistiu em prover a cada uma das áreas (Executivo, Legislativo e Judiciário) de instrumentos como o veto presidencial e o controle final sobre a constitucionalidade das leis, como forma de restringir os possíveis excessos. Para os federalistas norte- americanos os membros do Poder Judiciário formavam parte de um grupo seleto e fiável, devido aos seus estudos, ao modo de seleção de seus membros, sua estabilidade e seu isolamento dos processos eleitorais. O argumento estruturou-se na noção de que nem todos os indivíduos são dotados de iguais capacidades e que somente alguns teriam virtudes necessárias para tomar decisões “justas” (Gargarella, 1996)..

De acordo com Herbert J. Storing, o sistema constitucional norte-americano somente se completou em 1791, após a adoção das dez primeiras emendas promovida pela “Carta de Direitos”. (Storing,2001:p.48). A Carta de Direitos federal e as antecedentes declarações de direitos estaduais representaram, mais do que qualquer outra coisa, a soma total da experiência e experimentação americanas com a liberdade civil, até a sua adoção. (idem, p.71).

As ideias norte-americanas constituíram-se em nova compreensão acerca da distribuição de poder e dos direitos individuais, diferente da divisão por grupos sociais, concebida por Montesquieu.24A partir de então, “Os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais” (“O Federalista”, n.51).

O legado para o século XX é a valorização material, racional, técnica que defendeu a inevitabilidade de um sistema jurídico, constitucional e de um sistema representativo. Os federalistas promoveram uma preocupação pragmática em fundar e fortalecer o poder constitucional, independente e jurisdicional. Assim, construíram as referências institucionais que orientaram definitivamente a força contramajoritária. Desde então, um ordenamento jurídico racional, com controle judicial da constitucionalidade das leis, não parece ser objeto de contestação importante dos Estados (Melo apud Werneck Vianna, 2002: p. 72). Influências teóricas significativamente importantes às concepções institucionais dos direitos, compartilhadas também por outros países do continente americano.