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Constituição democrática de 1988 e federalismo cooperativo na prestação do serviço

2 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E

4.2 Constituição democrática de 1988 e federalismo cooperativo na prestação do serviço

A redemocratização representou um novo movimento de descentralização do poder no sistema federativo brasileiro, que, apesar de ter mantido a forma federativa ao longo dos mais de vinte anos do regime autoritário, restringiu a autonomia dos entes federados e minimizou o

valor dos instrumentos de cooperação federativa, reduzindo os consórcios existentes a pactos de colaboração, de forma a reduzir a relevância dos focos de poder concorrentes com o poder central. A Constituição de 1988 restitui competências aos Estados e Municípios, iniciando um processo de consolidação de um modelo de federalismo mais cooperativo, processo este que está ainda em curso (BRASIL, 2014, p. 63).

A Constituição de 1988 confirmou a titularidade dos municípios sobre os assuntos de interesse local (art. 30, I), ao mesmo tempo que determinou a competência comum entre os três níveis de entes federados para promover a melhoria das condições de saneamento básico (art. 23, IX). Que os serviços de saneamento básico estejam completamente contidos na concepção de “interesse local” é tema que se disputa. Justen Filho (2005) analisou o tema e chegou à conclusão que os serviços de saneamento ultrapassam a órbita municipal,22 mas não a excluem. De acordo com o autor, os serviços públicos são de titularidade conjunta e as competências que a determinam não são estanques, mas dinâmicas, estando sujeitas ao princípio da subsidiariedade, segundo o qual quando os entes mais locais não puderem satisfazer os objetivos das ações colocadas, a competência passa aos entes maiores (JUSTEN FILHO, 2005, p. 34-36).

Observa-se que a própria questão da titularidade dos serviços aponta para uma solução de crescente cooperação federativa. A evolução histórica do setor, que se delineou acima, indica a necessidade de conjugação das vantagens dos entes federados na busca pelos objetivos de universalização e melhoria dos serviços públicos, sem a qual a prestação simplesmente não será suficiente. A União detém os recursos financeiros e técnicos necessários, enquanto nos municípios concentram-se conhecimento das especificidades locais e oportunidades de controle social. Os Estados, finalmente, possuem as estruturas, construídas por décadas de CESBs, além de capacidade de coordenação regional.

Administrativamente, o federalismo cooperativo se expressa pela atuação conjunta entre entes federados visando à consecução de objetivos comuns. Pode ocorrer entre entes do mesmo nível (Município-Município ou Estado-Estado), quando é chamada de cooperação horizontal, ou entre entes de diferentes níveis (Município-Estado ou Município-Estado-União), chamada cooperação vertical (BRASIL, 2014, p. 63).

22 Justen Filho (2005, p. 16) indica três razões jurídicas porque a titularidade dos serviços públicos não deve limitar- se aos Municípios: “Em primeiro lugar, os serviços de saneamento básico têm direta pertinência com os direitos

fundamentais, o que impede a restringir a titularidade desses serviços exclusivamente a uma categoria de entes federativos. Em segundo lugar, a própria Constituição Federal reservou competência explícitas para a União e os Estados atuarem no setor de saneamento básico. Por fim, é muito frequente que a prestação dos serviços relacionados ao saneamento básico produza a superação dos limites [geográficos] do interesse local.”

Alguns instrumentos possibilitam a execução de tal cooperação. Neste trabalho, serão discutidos brevemente os instrumentos que possibilitam a cooperação federativa no serviço público de saneamento básico, observando particularmente os que são utilizados para o saneamento de água e esgoto.

4.2.1 Ambiente legal da cooperação federativa nos serviços públicos

Em 1998 foi editada a Emenda Constitucional 19, que alterou o art. 241 criando a previsão constitucional de instrumentos de cooperação na prestação dos serviços públicos, com vistas a promover a gestão associada desses serviços,23 constitucionalizando as figuras do convênio de cooperação e do consórcio público. Essas figuras, de fato, não representam novidades no ordenamento jurídico, nem a cooperação também não é inovação da Constituição de 1988: trata-se, ao contrário, o cenário atual de uma tendência de maior atividade cooperativa, com a reafirmação de instrumentos e a insistência em normas que apontem para a cooperação que começam a tomar o sistema a partir da EC 19/98. A cada novo diploma introduzido no sistema legal de disciplina dos serviços públicos, são criadas novas normas de incentivo à cooperação, reafirmando o modelo cooperativo de federalismo.

Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

A edição da EC 19/98 constitucionalizou, como se dizia, a figura dos consórcios, mas por algum tempo a eficácia dessa norma foi prejudicada pela inexistência de lei que disciplinasse a figura, que só veio a ser publicada em 2005, como a Lei dos Consórcios Públicos (Lei 11.107/05). Como já se mencionou, antes da publicação dessa lei, e antes mesmo da Emenda de 1998 ou da própria Constituição de 1988, os entes públicos já criavam acordos de cooperação entre eles, tanto na forma de convênio como na de consórcio, com os instrumentos jurídicos de que então dispunham.

23 O dispositivo prevê duas formas de coordenação gerencial da administração pública: a) a ampliação da

autonomia gerencial de órgão ou entidade da administração direita ou indireta por meio do contrato de programa e b) cooperação entre entes federados por meio de consórcios públicos e convênios de cooperação. (BULOS, 2012) A ampliação da autonomia gerencial por meio do contrato de programa refere-se ao caso do art. 37, § 8º, da CF:

“A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá

ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I - o prazo de duração do contrato; II - os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes; III - a remuneração do pessoal.” Este caso não afeta a questão da cooperação federativa e, portanto, não será aprofundado neste trabalho.

Convênios e consórcios são arranjos contratuais entre pessoas da Administração de natureza organizacional, ou plurilaterais, em oposição a contratos comutativos, ou bilaterais, em que há interesses contrapostos. Nos contratos organizacionais, os interesse são alinhados em torno de um objetivos comum (como no contrato social, no direito privado) (JUSTEN FILHO, 2005, p. 47-51). A diferença entre convênio e consórcio é que convênios estabelecem direitos e obrigações, mas não criam uma nova pessoa, uma entidade autônoma, dotada de patrimônio próprio (JUSTEN FILHO, 2013, p. 288-289), ao passo que a criação de uma nova pessoa é justamente a finalidade do consórcio.

Justen Filho (2005, p.12) ressalta que sempre se reconheceu a conjugação de esforços por meio de convênio, presentes inclusive no texto constitucional das Cartas de 1937, 1967 e 1969. Nesse sentido, tece a seguinte consideração sobre o próprio PLANASA:

Talvez se pudesse considerar o PLANASA como uma grande manifestação de convênio entre a União, os Estados e os Municípios, tendo por objeto o desenvolvimento das políticas públicas e das intervenções indispensáveis à implantação de infra-estruturas fundamentais no tema do saneamento. (JUSTEN FILHO, 2005, p. 31)

Quanto aos consórcios, antes da Lei 11.107/05 a associação entre os entes públicos produzia, contraditoriamente, a constituição de uma pessoa de direito privado. Tal natureza, no entanto, criava dificuldades, especialmente quanto ao regime jurídico em que esta devia operar (BRASIL, 2014).24 O IBGE identificou, no ano 2000, 18 consórcios operando no saneamento de resíduos sólidos e, em 2001, na área da saúde (também um serviço público), 1969 municípios consorciados.

Assim, dadas a demanda pela figura e as dificuldades geradas pela operação de consórcios com pessoas privadas, foi editada a Lei 11.107/05, dispondo normas gerais (dentro da competência federal), para a contratação de consórcios públicos. Segundo esse diploma, os consórcios terão por objeto “a realização de objetivos de interesse comum” (art. 1º, caput), não se limitando, portanto, aos serviços públicos (que são contudo o foco do presente estudo), e poderão resultar na constituição tanto de associações públicas consorciadas – a figura que estava faltando no sistema administrativo – como de pessoas jurídicas de direito privado (art. 1º, §1º). Neste caso, contudo, previu a Lei que estas se sujeitariam às “normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e

24“A soma de pessoas jurídicas de direito público gerava, contraditoriamente, uma pessoa jurídica de direito

privado que, a princípio, não precisava obedecer a regras de direito público, por exemplo: a admissão por concurso público ou a licitação para as compras públicas. A dinâmica de cooperação federativa exigia instrumentos como os consórcios públicos que, entretanto, possuíam baixa institucionalidade, prejudicando a implantação de diversas

admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT” (art. 6º, §2º).

Quanto ao novo plano para o saneamento básico brasileiro, que se discutia desde que o PLANASA começara a apresentar dificuldades, nos anos 1980, este só encontrou um ambiente que possibilitasse sua organização e edição com a criação do Ministério das Cidades, em 2003, e de sua Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental.25 Além da cooperação federativa administrativa com a previsão de gestão associada dos serviços, a Lei Nacional do Saneamento Básico (Lei 11.445/07) também estabelece um ambiente propício ao desenvolvimento igualitário e sustentável com a previsão de planejamento integrado dos serviços (água, esgoto, resíduos sólidos e águas pluviais), regulação do setor e controle social. Esse ambiente tem o objetivo de garantir condições seguras para a retomada dos investimentos no setor e de definir novos níveis de eficiência e de respeito aos direitos dos usuários (LIMA, MARQUES, 2012, p. 22).

Em resumo, a institucionalização do serviço de saneamento de água e esgoto teve origem na prestação municipalizada, passou por um forte movimento de prestação regionalizada com base em Companhias Estaduais de Saneamento e é hoje orientado por um ambiente institucional que aponta para soluções cooperativas – na forma de consórcios e convênios – entre os entes federados.

É da leitura dos documentos legais atualmente em vigor que se formulou a hipótese analisada no presente trabalho: que os serviços de saneamento de água e esgoto estão saindo de uma fase de prestação estadual para formar soluções institucionais baseadas na cooperação federativa. Na próxima seção, testa-se esta hipótese contra a análise descritiva do arranjo institucional atual do setor.

25 A Lei 11.445 foi possibilitada pela criação de um Grupo de Trabalho Interministerial organizado pelo MCID

(LIMA; MARQUES, 2012, p. 21) Quanto às políticas públicas do setor, as autoras informam que “As intervenções federais em saneamento ambiental, até o ano de 2003, estavam pulverizadas em 80 ações que correspondiam a 24 programas, sob responsabilidade de oito ministérios e duas instituições financeiras da União. Este quadro resultava na dispersão das ações e na ausência de soluções integradas, constituindo um obstáculo para as pretensões do Governo Lula para o setor: universalizar os serviços de saneamento com aplicação eficiente dos recursos e qualidade da prestação do serviço. Diante desse fato, o GTI procurou reunir todas as ações de saneamento ambiental do governo em torno de cinco programas comuns na esfera do Plano Plurianual de 2004-2007 (...).” (Id., p. 22-23)

5 ARRANJO INSTITUCIONAL DO SANEAMENTO DE ÁGUA E ESGOTO NO

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