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2 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL E

4.1 Antecedentes históricos do serviço de água e esgoto

4.1.2 PLANASA e o modelo das companhias estaduais

O período democrático, no entanto, não durou. O movimento centralizador na gestão do serviço de saneamento, desta vez, expressou-se institucionalmente pela criação de órgãos e planos federais para o planejamento e o financiamento do setor. Com o objetivo de sanar as carências do setor por meio da autossustentação financeira baseada na política tarifária, foi criado o PLANASA, em 1970, com a meta de estender o serviço de abastecimento de água a 80% da população urbana e o de esgotamento, a 50% desta (GROTTI, 2011, p. 23). De acordo com este plano, os recursos do FGTS, 17 que havia sido criado pouco tempo antes, em 1966, passariam a ser dirigidos ao investimento no saneamento, geridos pelo também recém-criado BNH (de 1964).

Para garantir que os recursos federais não se perdessem na inaptidão técnica dos municípios, bem como para assegurar a disseminação de uma política tarifária que proporcionasse a sustentabilidade financeira do setor, o PLANASA determinou a criação das CESBs, estabelecendo o mesmo modelo estadual de prestação em todos os Estados. É certo que a adesão dos Municípios às CESBs não era compulsória, no entanto, o acesso aos recursos financeiros do BNH só seria possível por intermediação das CESBs. Desse modo, a grande maioria dos Municípios optaram, semivoluntariamente, pela adesão à transferência dos serviços às Companhias Estaduais.

Alguns poucos Municípios, os que tinham serviços de água e esgoto mais desenvolvidos, mantiveram seus SAAEs e DAEs, optando por manter controle sobre o serviço. O desenvolvimento das melhores prestadoras municipais de água e esgoto foi, no entanto, estrangulado pelo PLANASA, uma vez que essas ficaram sem acesso às linhas de financiamento e investimento da União, conforme aponta Costa (2012, p. 89):

17 O FGTS foi criado para liberar os empregadores da obrigação de garantir estabilidade dos trabalhadores que

atingiam certo tempo de serviço (10 anos). O Fundo recolhia uma quantia pecuniária que serviria para indenizar o trabalhador que, após longa dedicação a dada empresa, fosse despedido (HERMANN, 2005a, p. 74). Trata-se do tipo de medida impopular possível apenas em regimes autoritário em que o custo político das ações não integra os cálculos do processo decisório.

Talvez tenha sido o ponto mais negativo do PLANASA, pois, ao impor aos Municípios a assinatura dos contratos de concessão com as CESBs, o governo federal deixou os maiores e melhores serviços municipais impedidos de obter recursos financeiros para atenderem às novas demandas e para melhorarem a qualidade do serviço prestado.

O PLANASA implantou um modelo de gestão homogêneo entre as diversas CESBs, procurando estabelecer o ambiente institucional propício à consecução dos objetivos do governo federal: a expansão crítica do serviço e a autossustentabilidade financeira. Para isso, a União disponibilizou um sistema de treinamento para as todas as CESBs com vistas a seu desenvolvimento institucional. Durante os anos 1970, ocorreram as atividades do Programa de Assistência Técnica para o Desenvolvimento Institucional das Empresas Estaduais de Saneamento – SATECIA e, nos anos 1980, foi o ciclo do Programa de Desenvolvimento Institucional das Companhias Estaduais de Saneamento Básico – PRODISAN e do Programa de Desenvolvimento Operacional – PEDOP (COSTA, 2012, p. 87-89).

Formalmente, a transferência da prestação do serviço de saneamento dos Municípios, que então se entendia serem os titulares dos serviços, dava-se por meio de “contratos de concessão” com duração de 30 anos. Trata-se de instrumento de natureza diversa do que hoje se conhece por “contrato de concessão”, que, entre outra particularidades, não pode ocorrer entre entes federados, como será discutido oportunamente.

O financiamento e gestão do sistema por esse modelo também não se apresentou satisfatoriamente suficiente. De fato, a centralização pela União afasta dos usuários o gerenciamento das políticas públicas, dificultando a consideração das especificidades locais e o controle social no planejamento das ações. Além disso, a centralização estimulou a realização de grandes obras de saneamento que, afastadas do controle social proporcionado por uma administração mais localizada, provaram-se caras e pouco eficientes na expansão da cobertura e da qualidade do saneamento (BRASIL, 2014, p. 63).

O PLANASA durou de 1971 a 1992 e o BHN, de 1964 a 1986. Entre 1986 e 1992, os recursos destinados ao saneamento por intermédio do PLANASA foram gerenciados pela Caixa Econômica Federal – CEF, mas o volume de financiamento já não era mais, nesse período, tão substancial. O que importa ressaltar é que foi sob a orientação do PLANASA que o saneamento básico brasileiro experimentou sua maior expansão (COSTA, 2012 e JUSTEN FILHO, 2005). Se o sucesso do setor tivesse derivado do modelo de financiamento e gestão estabelecido pelo PLANASA, então por que ele teria ele florescido nos anos 1970 apenas para decair na década de 1980, “a década perdida do saneamento no Brasil” (COSTA, 2012)? A resposta para o sucesso do empreendimento do PLANASA não deve encontrar-se, portanto, no modelo

praticado, mas no fato de que o país atravessava um momento de expansão econômica sem precedentes, que encontrou um limite na crise do financiamento externo dos anos 1980.

O “milagre econômico”, como ficou conhecido o período de 1968 a 1973, foi caracterizado principalmente por uma taxa de crescimento do PIB de uma ordem de 11% ao ano, com taxas de investimento de cerca de 20% do PIB, em um cenário “milagrosamente” acompanhado de queda (embora moderada) da inflação. O milagre está em que, em um ambiente de crescimento econômico, o comum é observarem-se a presença de inflação crescente18 e de déficits na balança de pagamentos19. No Brasil, no entanto, daquele período, registraram-se superávits comerciais crescentes a cada ano, significando grande volume de exportações, o que implica grande nível de dependência econômica do exterior (HERMANN, 2005a, p. 82-83).

O comportamento atípico da economia brasileira no período, no entanto, foi em grande parte produzido artificialmente por práticas econômicas insustentáveis, por força de imposição do governo autoritário em um ambiente de ausência de manifestações contrárias. Por exemplo, a presença das empresas públicas de saneamento fazia parte de um cenário institucional em que se multiplicavam empresas estatais para a diluição dos gastos do governo: “No campo fiscal havia a determinação de que os investimentos públicos em infraestrutura não comprometessem o ajuste fiscal em curso. Isso foi obtido através do aumento da participação de empresas estatais nesses investimentos, reduzindo a participação administrativa direta.” (HERMANN, 2005a, p. 85) Assim, os resultados ficais apresentados não representavam a realidade completa da situação do Estado, uma vez que as empresas estatais são efetivamente responsabilidade econômica do Estado.

De outra parte, o crescimento alcançado pelo milagre econômico foi representativo de um daqueles eventos que se comentou na Seção 2, quando o aumento de riqueza agregada em dada economia não equivale a desenvolvimento para todos os setores da sociedade porque a riqueza gerada é concentrada em certos grupos sociais, taxando de encargos desproporcionais

18 A relação explica-se pelo aumento de preços causados pela pressão da baixa taxa de desemprego de uma

economia aquecida sobre os custos de produção (uma vez que os salários nominais são um importante fator do custo da produção). O trade-off entre taxas de emprego/desemprego e inflação são explicadas pelas variações da teoria da Curva de Phillips, que estabeleceu, em 1958, a relação inversa entre a taxa de desemprego e a taxa de variação dos salários nominais numa mesma economia. (HERMANN, 2005a, p. 83)

19 Quando dada economia nacional tem mais tem saldo positivo (superávit) na balança comercial (relação entre

exportações e importações pelo país), isso significa que envia para o exterior mais bens, serviços e fatores de produção do que recebe, diminuindo aqueles disponíveis para consumo e investimento domésticos. Já a economia que apresenta déficits na balança comercial está recebendo mais bens e serviços do exterior, ou seja, seu nível de consumo e investimento é maior que sua produção. A isto se chama recebimento de poupança externa, e é o que se passa na economia dos Estados Unidos, por exemplo. A maior disponibilidade de recursos para investimento propicia o crescimento econômico (GONÇALVES et al., 2008, p. 120-121).

outros grupos. Como coloca Hermann (2005a, p. 70), trata-se de um caso de ausência de correlação entre democracia e desenvolvimento e forte correlação entre autoritarismo e reforma econômica. No milagre brasileiro, isto se deu porque a inflação foi em grande parte controlada pelo achatamento dos salários reais, uma vez que o valor nominal dos salários era reajustado anualmente, mantendo, ao longo do ano, os custos de produção referentes à força de trabalho defasados em relação à inflação, que avançava mensalmente.20

Quanto ao desenvolvimento social pela expansão do serviço, verificou-se durante o PLANASA um favorecimento de ações nas regiões Sudeste e Sul, agravando a distorção do desenvolvimento regional, e a exclusão de um expressivo segmento da sociedade que não teve acesso aos serviços por impossibilidade de pagar as tarifas (GROTTI, 2011, p. 23-24).

O desenvolvimento promovido pelo modelo do PAEG21 e do PLANASA não satisfaz, portanto, as qualificadoras do tipo de desenvolvimento desejável apresentado pela discussão da Seção 2: um que promova a autonomia das pessoas, especialmente as mais pobres, que são as mais carentes das liberdades básicas, e que seja regionalmente equilibrado, atendendo ao modelos federativo brasileiro.

Quando o milagre econômico começou a dar sinais de fraqueza, com o escasseamento dos recursos de financiamento externo provocados pelos choques do preço do petróleo no fim dos anos 1970, o PLANASA também começou a evidenciar suas debilidades. O modelo foi mantido, tanto por interesse da centralização do poder como por inércia institucional, durante todo o fim do regime, e ao longo da “estagflação” dos anos 1980, atravessando a redemocratização, até o início do neoliberalismo nos anos 1990, só tendo sido extinto em 1992. Durante esse tempo, o desenvolvimento do setor foi pífio, justificando a qualificação dos anos 1980 de “a década perdida do saneamento básico”.

20“A política salarial do Plano [de Ação Econômica do Governo – PAEG] também foi bastante restritiva, tanto

pela fórmula de correção, quanto pelo período de referência para o cálculo do salário real. O mecanismo de

correção pela média, em vez de pelo “pico” do salário real é coerente como estratégia para conter o conflito

distributivo para manter ativa e espiral preços-salários. A correção pelo pico repõe integralmente a inflação acumulada desde o último reajuste, transferindo a renda dos lucros para os salários e gerando novas demandas de correção de preços por parte do setor empresarial. A correção pela média do salário real divide o ônus da inflação entre empregados e empregadores e, dessa forma, contribui para conter o conflito distributivo, desde que a fórmula da divisão seja bem aceita por ambas as partes. Nesse aspecto a escolha do período de referência para o cálculo do salário real e o comportamento da inflação ao longo desse período são cruciais. Como o valor do salário nominal é fixo entre duas datas de reajuste (um ano, na maioria dos casos), na presença de inflação o salário real se reduz a cada mês, ao longo desse período. Assim, se este for um período de inflação estável, o valor relativo dos salários e dos lucros fica equilibrado; se for um período de queda da inflação, a indexação retroativa resultará em ganho para os salários reais, porque o período comportará salários reais mais elevados que no cenário da inflação estável; por fim, se o período for de aceleração da inflação, haverá ganho para os lucros, porque a média do salário real

ficará “achatada” em relação ao que seria nos outros cenários.” (HERMANN, 2005a, p. 80-81)

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O Plano de Ação Econômica do Governo – PAEG foi o plano econômico apresentado pelo governo militar logo depois da instalação da ditadura, contexto em que ocorreu o milagre econômico e em que foi estabelecido o plano de financiamento do saneamento básico pelo sistema do FGTS-BNH-PLANASA.

O vazio de planejamento para o setor deixado pelo PLANASA não foi adequadamente atendido pelo Programa de Modernização do Setor Saneamento – PMSS, de 1993, do governo Itamar Franco, que limitava-se a procurar aumentar a atração de investimentos privados, sem sucesso expressivo, pela ampliação de concessões ao capital privado. Na concepção neoliberal do Estado mínimo, os governos FHC I e II também procuraram resolver o problema pelo aumento da participação do capital privado, sem, no entanto, traçar um plano definido para o setor (GROTTI, 2012, p. 26-27). Nesse ambiente neoliberal foram editadas a Lei de Concessões (Lei 8.987), de 1995, e a mais específica Lei de Outorga e Prorrogação das Concessões e Permissões dos Serviços Públicos, editada como a Medida Provisória 890 e convertida na Lei 9.074, também de 1995, que permitiam a execução dos serviços públicos de saneamento por agentes privados.

No entanto, a onda de privatizações da proposta do Estado mínimo dos governos FHC I e II não afetou muito expressivamente o setor do saneamento básico. De acordo com Soares (2012, p. 162-163), isto se deu por uma má execução da lógica teórica que embasava a privatização do setor:

No tocante ao saneamento básico, a tese de sustentação da participação privada nesse setor tinha por base o resgate da cidadania por meio da garantia da universalização da prestação dos serviços a preços módicos, favorecendo uma efetiva inclusão social, capaz de melhorar a qualidade da prestação dos serviços e, consequentemente, fortalecer o Estado.

Essa base teórica da reestruturação foi distorcida, e o resultado prático esbarrou em três importantes aspectos: primeiro, a celeridade imposta para a redução do tamanho do Estado, que desconsiderou a discussão mais ampla sobre a modelagem e a estruturação do setor de saneamento básico; segundo, não se estabeleceu o marco legal para garantir a compatibilidade com as políticas públicas existentes, nem a adequação à realidade operacional e à capacidade operativa dos prestadores de serviços; por fim, limitou-se a autonomia e a independência dos entes públicos, como definidores das regras de contratação e de preços públicos. Em função desse contexto, o setor de saneamento básico foi pouco atingido pelo processo de privatização.

Ao final do governo FHC II e início do Lula I, no entanto, os instrumentos para efetivação do federalismo cooperativo presente na constituição democrática de 1988 começaram a surgir e um plano para o setor do saneamento começou a delinear-se no sistema legislativo que o disciplina.

4.2 Constituição democrática de 1988 e federalismo cooperativo na prestação do serviço

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