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2. AUTISMO: HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES

2.1 Constituição Psíquica de um Sujeito Autista

Para abordar o autismo a partir da psicanálise é preciso, primeiramente, retornar questões que envolvem a constituição psíquica, pois é a partir dessa constituição que se situará essa patologia. É importante estabelecer que vários aspectos são fundamentais para que essa constituição aconteça de forma “normal” e não desencadeie patologias. Aspectos como: as funções materna e paterna; o estádio do espelho; o Complexo de Édipo; o complexo de castração; o circuito pulsional.

Aqui abordarei o que falha na constituição psíquica para que o autismo se estabeleça. Primeiramente, cabe estabelecer o que é um sujeito1 para a psicanálise, que é a base teórica escolhida para pensar a constituição psíquica de um autista.

A psicanálise trata do sujeito assujeitado ao Outro. Quando nasce a criança ela é real e está posta em um mundo de linguagem, e o que produz o sujeito é a sua entrada na ordem simbólica na, e pela linguagem.

O bebê se assujeita ao desejo do Outro, que o nomeia no seu discurso. Jerusalinsky (2009, p. 68) apresenta que,

Diante dos estímulos endógenos do bebê é preciso um Outro encarnado que atribua intenção de comunicação ao seu grito e, por meio de uma interpretação, produza uma ação específica capaz de satisfazê-lo. Se há interpretação é porque já há linguagem ali. Mas é evidente que a linguagem não se inscreve por si. Não basta colocar um bebê na frente do rádio ou da televisão. Para que o gozo do bebê se atrele ao Outro, como instância da linguagem, é preciso um endereçamento, é preciso um Outro que, ao tomar o bebê desde um desejo não anônimo e a partir do saber simbólico que a linguagem lhe permitiu constituir, opere corte e costura do funcionamento corporal do bebê, levando em conta o que o afeta e fazendo borda a seu gozo. Se isto atrela o bebê ao campo do Outro, para que ele possa chegar a situar-se na condição de falante, e não como um mero repetidor ecolálico do que lhe é dito, será preciso que esse desejo não anônimo opere no laço mãe-bebê enquanto um enigma diante do qual, para a mãe, o bebê se situa como sujeito que supostamente deteria um saber.

Por meio da linguagem, da fala, a mãe marca o corpo do recém-nascido, e estas marcas vão imprimir os significantes, unindo linguagem e corpo, e assim consequentemente, despertará o desejo no recém-nascido. O bebê passa de carne e osso a sujeito pelo desejo que o Outro demanda. Para se tornar sujeito, o bebê precisa da significação do Outro.

Quando uma família está à espera da chegada de uma criança, é possível perceber que muito é falado sobre ela. Seu nome está, na maioria das vezes escolhido, o

1 O sujeito sobre o qual se ocupa a Psicanálise é, antes de tudo, o sujeito pensado a partir da concepção

do inconsciente. Um sujeito para além da consciência, a partir do reconhecimento da estrutura da linguagem no inconsciente.

quarto preparado, se imagina com quem vai parecer, a cor dos olhos, dos cabelos, como vai ser seu futuro. Em todo esse processo destaca-se a mãe, ou melhor, a função materna. Assim afirma Jardim (2001, p. 57):

A função materna é operante desde o início da vida de um bebê; podemos até pensá-la antes mesmo que o bebê esteja nos braços da mãe. É antecipando um nome para a criança, imaginando sua aparência, confeccionando-lhe roupinhas que uma mãe antecipa um filho. Quando tudo isso esta impedido de acontecer, certamente veremos conseqüências psíquicas na criança que nascerá. Mas, se toda essa antecipação for possível, uma mulher estará se preparando para acolher, no sentido mais simbólico possível, seu bebê.

Ao nascer, o bebê apresenta uma série de reações automáticas, é quase que puramente os seus reflexos. Chora porque tem fome ou porque sente dor ou frio. Não tem outros recursos que lhe auxiliem a expressar o que está sentindo.

No livro Psicanálise do Autismo, Jerusalinsky (2012, p. 80) apresenta alguns fatores que são importantes considerar. Segundo ele, em uma criança recém-nascida encontramos um sistema de atividades constitucionais que se agrupa em cinco subsistemas: “[...] os reflexos arcaicos, a gestualidade reflexa originária, o tônus muscular, a atividade postural e espontânea e os ritmos biológicos; eles compõem os códigos constitucionais a que a mãe ortogará (sic) significação psíquica”. Esses subsistemas podem ser abordados, não somente do ponto de vista neurológico, mas também, numa perspectiva onde a análise esteja no valor desses reflexos na constituição da relação mãe-filho.

Na atividade reflexa arcaica, Jerusalinsky (2012, p. 85), fazendo referência à Langer e à Helen Deutsch (1976), enfatiza, nesse momento, a importância do período de lactância, apontando que a sucção ativa do bebê tem efeitos na sua mãe. Além dos efeitos neurológicos, como o esvaziamento do peito, algumas mães sentem que nesses momentos podem continuar mantendo os seus filhos, como faziam quando ainda estavam em suas barrigas, o autor assinala que, “Algumas mulheres desejosas da sua maternidade sentem, nesta produção láctea, a continuidade de seu potencial corporal, que se desloca, aos poucos, até o corpo de seu filho e, na medida em que este cresce, evidencia o efeito da doação materna”. Neste ciclo de satisfação, onde a mãe oferece o peito e a criança o toma, há um retorno psíquico para a mãe como ela estando mais próxima de seu filho, tornando a separação brusca do parto em um distanciamento lento e gradual, onde a criança recebe, primeiramente, leite (alimentação), apoio, proteção, ensino, e estes aspectos vão se ressignificando à medida que a criança consegue se sustentar sozinha.

Na gestualidade reflexa, o referido autor destaca o choro do recém-nascido, expressando que, no início, não existe nada de adquirido nessa manifestação. Mas, que a partir do primeiro mês de vida é possível notar alterações nesse choro, levando-o a possuir a significação social que tem. O choro passa a ser considerado um elemento de comunicação, não mais, apenas, uma reação automática.

Jerusalinsky (2012, p. 88) considera, também, o sorriso, que inicialmente é caracterizado como reflexo (diante da saciedade e sonolência após a amamentação) e, após o segundo mês, é um dos organizadores da relação mãe-filho, “[...] ao adquirir o caráter de resposta diante do sorriso do rosto de outro ser humano”. Isso é fortemente relevante nesta relação, tanto para a continuidade do investimento da mãe, quanto para a constituição psíquica da criança.

As reações da ordem da gestualidade estão presentes desde o início da vida do recém-nascido e as reações mais concretas começam a aparecer em torno do terceiro mês que, de acordo com Jerusalinsky (2012, p. 88) “[...] são adquiridas através da inscrição que, sobre aqueles primeiros mecanismos automáticos, realiza o sistema de comunicação humana que a mãe utiliza e no qual inclui seu filho”. São as reações diante dos contatos concretos.

O próximo subsistema é o do tônus muscular, ele é o representante das emoções da criança. Tudo que esta sente é expresso em seu corpo, seu tônus muscular reage. No sono as reações fisiológicas diminuem ao mínimo e no choro exaltam-se. O recém-nascido apresenta reações automáticas ligadas as suas sensações de dor e prazer. Desta forma, a criança disponibiliza para a mãe elementos para que ela conheça o estado de seu filho ao ponto em que esta deseja conhecê-lo. Mas, é preciso frisar que esse “jogo” só funciona se for sustentado pela mãe que dá a esse momento toda a significação afetiva.

A atividade postural e espontânea, segundo o autor, é difícil de separar do tônus muscular e da atividade reflexa. Na atividade postural está a capacidade do bebê de manter uma “postura adequada” de acordo com o que está vivenciando.

Segundo Jerusalinsky (2012, p. 90),

[...] o reflexo tônico-cervical-assimétrico constitui uma sinergia que, além de favorecer a coordenação olho-mão-boca, induz a criança a uma postura que facilita a amamentação e favorece, na mãe, a colocação de pequenos brinquedos perto da mão da criança e na frente da sua boca, dentro de seu campo de visão. Parece um molde que, na medida em que é reconhecido, vem a facilitar a tarefa de ensinar o bebê.

A atividade espontânea diz respeito aos movimentos que o recém-nascido faz diante de algum objeto que é oferecido a ele. Começam por movimentos lentos e pausados, também relacionados a quando alguém fala na sua frente, e passam para movimentos globais e agitados alternados com momentos de quietude. Nas palavras de Jerusalinsky, (2012, p. 92) “A passagem maturativa por essas etapas vai da atividade totalmente indiferenciada e automática, no início, até a assimilação dos primeiros esquemas de ação e inibição, que têm caráter decididamente adquirido”. Nessas atividades espontâneas é favorecido o contato das mãos com a boca e objetos externos, nos quais se incluem o peito e o rosto maternos. Os encontros da mãe e seu bebê oferecem a figura materna inúmeras oportunidades de “testar” suas interpretações acerca das intenções de seu filho, que são manifestadas por seus movimentos.

Ainda Jerusalinsky (2012) nos traz informações acerca dos ritmos biológicos, que possuem fundamental importância na relação mãe-filho: a compassada sequência respiração-deglutição, a própria respiração, as alternâncias fome-saciedade, sono-vigília e a frequência excretória. De acordo com o autor esses fatores são muito importantes e preocupam as mães;

Poucas coisas alarmam tanto uma mãe como a ausência de evacuação de seu bebê ou o fato de se engasgar com o leite que está mamando ou regurgitando. Também poucas coisas têm tanto poder de irritação para a mãe como a inversão do ritmo do sono do filho. Em tais regulações, a ansiedade materna e a capacidade de contenção paterna têm um papel decisivo para deter os efeitos destes contratempos (JERUSALINSKY, 2012, p. 93).

É evidente que para a criança tais ritmos têm tanta importância quanto para suas mães e, mais que isso, esses ritmos são os trilhos de encontro para a criança com sua mãe. Essa mãe é incitada, através destes ritmos, na sua função, a escutar esse bebê que ainda não fala. Ela possui um conhecimento prévio sobre as reações de seu recém- nascido e espera que este responda de acordo, por isso, Jerusalinsky (2012, p. 94) diz que “[...] a atividade materna decodifica o que a criança expressa na sua própria atividade”. A mãe dá ao seu filho esquemas que lhe permitirão conectar-se com o mundo e este, por sua vez, dá à mãe respostas acerca do desempenho da atividade materna.

Como podemos perceber esse bebê ainda não tem inscrição simbólica, ele é real, e todos os movimentos que realizar ou os ritmos que desenvolve deverão ser interpretados pela função materna. Segundo Jardim (2001, p. 57), “Diante dele, seu choro e seu grito terão sentido se assim puder interpretar a mãe, que estará tocada como

a pessoa a “resolver” o desconforto do bebê”. Assim, esse bebê sem inscrição simbólica, a partir do nascimento, está posto em um mundo de linguagem e significantes que serão nele inscritos no decorrer do seu crescimento. É necessário para a constituição psíquica deste bebê que a mãe ou quem estiver nesta posição consiga supor na criança um sujeito. A autora acrescenta, que, “Também estará fazendo função materna a mãe que conseguir supor que no corpinho daquele bebê que tem à sua frente está uma subjetividade diferente da sua, mas totalmente ligada à sua própria subjetividade” (JARDIM, 2001, p. 57). Um ser totalmente dependente tornar-se-á independente na medida em que nele houver investimento.

A partir do nascimento, as funções parentais desempenham um papel fundamental no processo de constituição psíquica demarcando o corpo do recém- nascido, em especial a função materna, Jardim apresenta que, “E é a mãe, ou alguém nesta posição, quem demarca bordas no corpo da criança, dando-lhe sentido, recortando este corpo de modo que se produzam zonas erógenas” (2001, p. 56). O corpo da criança é assim, o receptáculo do discurso dos pais, o lugar de sua inscrição.

A mãe, ou quem exerce a função materna, é o “Outro Primordial” para o recém-nascido. Para Lacan, escreve Jardim (2001, p. 56) “este que oferta um nome, uma história, uma imagem, um lugar social, etc. é o Outro primordial”. A mãe é a mediadora do seu filho com o mundo, com os significantes, com o campo simbólico.

Segundo Jerusalinsky (2012, p. 71, 72) a criança precisa da presença real dos referentes parentais e que estes desempenhem suas funções para que a constituição da criança aconteça,

Prematuro que é, o filhote humano requer a presença real de um agente que o receba num espaço virtual (o lugar de sua falta), espaço no qual esse infans se espelha (se imaginariza). Esse espaço se cava no agente materno na medida em que existe nele uma referência ao simbólico. Para ser mais preciso, é necessário que este agente esteja capturado pela castração simbólica, inscrito metaforicamente no Nome-do-Pai. Ou seja, não há verdadeiramente agente materno sem referencia à Função do Pai, porque esse agente se constitui como tal só no seu nome. Só assim o filho é objeto de desejo, e só assim, então, a mãe inscreve (escreve?) no corpo dele as marcas do simbólico. Esta é, por excelência, a função da mãe. (grifo do autor)

De acordo com Winnicott (1972), o cuidado materno ao recém-nascido define- se em três funções: sustentação (holding), manuseio (handling) e apresentação do objeto ou apresentação do mundo. A sustentação refere-se aos cuidados que cercam a criança ao nascer, já que nesse momento ela não está preparada para enfrentar o mundo que a cerca. Refere-se ao assinalamento do lugar, sustentação do olhar, proteção contra o

sentimento de desamparo. O manuseio acompanha a sustentação, pois refere-se, também, aos cuidados primários que o bebê recebe, desde a mobilização até a higiene, abarcando todas as áreas de contato da/com a criança.

Winnicott (1972 citado por Jerusalinsky, 2012, p. 78), reporta-se sobre a apresentação do objeto ou do mundo:

A “mostragem do objeto denomina o ato de levar a criança em direção ao mundo circundante de uma maneira gradual e não contingente, já que este mundo terá interesse para a criança na medida em que a mãe lhe mostre a importância que este mundo tem para ela e para o próprio filho”.

O olhar da mãe, considerando sua função, é destacado por Lacan (1936) numa posição fundadora, pois é o olhar materno que autoriza a criança a se reconhecer lhe oferecendo os significantes necessários para sua constituição. Este tempo é denominado Estádio do Espelho, e pode não acontecer devidamente; assim como pode haver falha na instauração do circuito pulsional (que ocorre em três tempos) na criança podendo desencadear o autismo.

Na próxima parte deste capítulo o estádio do espelho e o circuito pulsional, nas suas funções, serão analisados, assim como, as falhas nestes processos para que se configure um caso de autismo.

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