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Estádio do Espelho e Instauração do Circuito Pulsional

2. AUTISMO: HISTÓRIA E CONSIDERAÇÕES

2.2 Estádio do Espelho e Instauração do Circuito Pulsional

Como mencionado anteriormente a função materna possui grande relevância quando está em jogo a constituição psíquica de um recém-nascido. O vínculo Mãe-Filho na estruturação subjetiva da criança é importantíssimo, assim como pode ser arrasadora qualquer falha neste aspecto, podendo afetar fisicamente a criança.

Jerusalinsky (2012, p.83) escreve que, “A criança existe psiquicamente na mãe muito antes de nascer, e ainda mais, muito antes de ser gerada. Quando a criança nasce, toda essa engrenagem que a antecede se põe efetivamente em movimento”. É aí que a função materna precisa prover para o seu recém-nascido reconhecimento e significantes para que ele possa se constituir sujeito.

A mãe oferece à criança uma “imagem do seu ser” e esta, cativada pela sua cuidadora, se interessa em tomar para si essa imagem que, certamente, é uma ilusão de totalidade, mas que cumpre sua função possibilitando à criança conforto e eficácia real,

num disperso e imaturo corpo infantil. Desta forma a mãe monta uma via significante que enlaça o corpo do seu bebê.

Laznik (2004, p. 24), fazendo referência a Lacan, escreve,

Nós todos conhecemos a importância dada por Jacques Lacan (1936) a este tempo particular de reconhecimento pelo Outro da imagem especular, este momento onde a criança se vira para o adulto que a sustenta, que a carrega e pede-lhe uma confirmação, pelo olhar, do que ele percebe no espelho como uma assunção de uma imagem, de um domínio ainda não conquistado. Se este momento da relação jubilatória à imagem no espelho é crucial, é porque é ela que vai dar ao bebê seu sentimento de unidade, sua imagem corporal, base de sua relação com os outros, seus semelhantes.

Encontra-se nesse momento em que a criança se espelha no que a mãe lhe apresenta como seu corpo, o momento denominado Estádio do Espelho, no qual a criança se reconhece, assumindo a imagem apresentada pela mãe e a partir daí conta com forças psíquicas para iniciar a perceber as diferenças entre esta e o que realmente é.

A vivência de corpo construída pela criança procede da articulação do bebê real, sua realidade orgânica, e do olhar dos pais. Esse olhar, não diz respeito apenas a função de enxergar, mas sim ao investimento dispensado nele e que antecipa o bebê que poderá advir, inclusive escutando os balbucios do recém-nascido. Laznik (2004, p. 25) destaca que é fundamental “Ver e escutar o que ainda não está para que um dia possa advir [...]”. Esse olhar funda a possibilidade de constituição da imagem do corpo e das relações com os semelhantes.

No estádio do espelho, em um primeiro momento a criança percebe sua imagem de corpo como sendo de outro e, ao mesmo tempo, quer tomá-la para si. Num segundo momento descobre que o outro do espelho é uma imagem. E no terceiro momento há o reconhecimento dessa imagem como sua. Este estádio é importante para a estruturação da imagem corporal, organiza o corpo, o unifica. Para este processo ser realizado é preciso um adulto mediador entre o bebê e o espelho, pois é esse adulto que afirma que a imagem refletida no espelho é da própria criança.

Jardim (2001, p. 56), fazendo referência a Lacan, afirma que:

Lacan (1949) faz a leitura da passagem do bebê de um estado de ser para um estado de subjetividade e denomina este momento Estádio do Espelho, e aí ele situa os primeiros tempos da emergência do sujeito. A passagem pelo Estádio do Espelho possibilita ao bebê partir da insuficiência à antecipação, ou seja, antes mesmo que tenha autonomia para falar, andar etc., a criança pode recolher uma imagem psíquica de si mesma da imagem que um outro lhe oferece.

Ainda citando Lacan (1998, p. 97), no texto O estádio do espelho como formador da função do eu, onde ele afirma:

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. [...] A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (grifo do autor).

É possível perceber, assim, que a sustentação que parte da função materna, seu desejo, que assegura a imagem ao bebê e este se prende a esta imagem, pois assim se faz objeto do desejo materno. Aqui ainda é preciso que a função paterna, que é a lei simbólica, se imponha para que a criança deixe de ser objeto do desejo materno e passe a ser sujeito do seu próprio desejo.

Pode-se afirmar que o olhar materno se constitui de todos os recursos que ela possibilita ao bebê para que ele se reconheça nessa imagem que ela oferece, e assim ela possibilita que ele possa identificar as diferenças entre as imagens que percebe.

Quando, na relação mãe-bebê, estes não se olham, e ainda mais, quando a mãe não percebe isso, algo nessa relação está falhando. Laznik (2004, p. 49), assim se expressa:

O não-olhar entre uma mãe e seu filho, e o fato que a mãe não possa se dar conta disso, constitui um dos principais sinais que permitem formular, durante os primeiros meses de vida, a hipótese de um autismo – estereotipias e automutilações aparecem somente no segundo ano de vida. Se esse não- olhar não desemboca, mais tarde, necessariamente numa síndrome autística caracterizada, assinala em todo caso uma grande dificuldade ao nível da relação especular com o Outro. Se não se intervém, essas são crianças nas quais o estádio do espelho não se constituirá convenientemente (grifo do autor).

Esse olhar se constitui muito mais do que apenas a visão da mãe. É a presença, signo de um investimento libidinal, que poderia ser exercido pela voz, por exemplo. Esse olhar, mira não o que está aí, mas o que está por vir.

Segundo Laznik (2004) a imagem corporal originária só pode formar-se no olhar do Outro. E para isso é preciso que o aparelho psíquico da mãe, como Outro Primordial, veja o que não está lá, ou seja, que faça a ilusão de antecipação. A mãe, nesta posição primordial, precisa supor que o bebê deseja, sabe, escuta, precisa tomar os seus balbucios como fala destinada a ela.

A autora faz referência ao trabalho de Selma Freiberg, psicanalista americana que fez um acompanhamento com dezenas de pares “mãe-bebê”. Nesses acompanhamentos destacam-se, como traço clínico, que os bebês (“futuros autistas”) evitam o rosto e a voz de suas mães.

Além de não as olharem, não sorriem nem vocalizam para elas, não as chamam jamais em caso de desespero e também não dão sinal de registro de uma percepção quando o rosto ou a voz materna se encontram, de modo incontornável, no seu campo perceptivo. Nenhuma pausa na visualização, nenhuma expressão no rosto que indicasse um registro. Poderíamos dizer que há aí uma defesa seletiva em relação aos sinais perceptivos que vêm da mãe (LAZNIK, 2004, p. 39).

Ainda em seus acompanhamentos, Freiberg apresenta outro traço clínico, o qual nomeia congelamento (freezing), que é assim caracterizado e referenciado por Laznik (2004, p. 39): “Eles podem ficar um longo lapso de tempo sem mexer nenhum músculo; e se por acaso aceitam estender a mão em direção a um estímulo, caem num desespero cataclísmico, como se se esvaíssem em pedaços”. Não podem lidar com uma excitação qualquer, mas somente podendo evitá-las radicalmente, isso por que não tem instaurada a imagem do seu corpo como unidade corporal.

Desta forma o estádio do espelho não se constituiria convenientemente devido, possivelmente, há uma falha nesse reconhecimento primeiro. Isso poderia ‘explicar’ o porquê do evitamento de tudo o que tem ligação com o olhar da mãe, com sua presença, seu investimento libidinal. Por isso, para Laznik (2004, p. 46),

[...] esta impossibilidade de antecipar tornava impossível que isto pudesse advir. Pois a ausência da imagem real deixa a criança sem a imagem do corpo, tornando problemática a vivência da unidade do corpo e, tal como para os pequenos bebês de Selma, só resta o “congelamento” que possa permitir- lhe fazer face às vivências de estilhaçamento, de despedaçamento, que são desde então o que lhes cabe.

Com o estádio do espelho não se constituindo devidamente, a relação com o Outro provavelmente também se constituirá indevidamente.

No livro A infância em cena, Esteban Levin (1997) apresenta diferentes esquemas de representação da constituição do espelho na criança (o esquema ótico que representa uma instauração “normal”, o esquema do autismo, o esquema da psicose e o esquema da debilidade mental). Aqui queremos dar ênfase ao esquema ótico e ao do autismo.

b) Esquema D Autismo

Em todos os esquemas encontram-se o objeto – espelho – imagem virtual do objeto. No esquema ótico a mãe se reconhece no filho, assim este funciona como espelho para ela, reconhecendo-se na imagem que a mãe lhe oferece. A imagem da

criança, que a mãe constrói, está contida em sua subjetividade e vai de acordo com os dados que a criança lhe dispõe. Levin (1997, P. 55) destaca que,

Se a mãe funciona como um primeiro espelho para a criança, é porque ela também se reconhece no corpo e nas imitações de seu filho: a criança funciona como espelho para sua mãe; e, porque a mãe, ao reconhecer-se no corpo de seu filho, funciona como espelho para seu filho.

Se o espelho não for devidamente instaurado na criança, esta fica confinada ao espaço do real. Isto acontece quando o corpo da criança é tomado puramente como órgão, e nesse corpo a mãe não se reconhece. Nesse caso encontra-se a estruturação autista.

Além do estádio do espelho, situa-se em Laznik, mais um fator importante que pode levar a uma estruturação autística, a não instauração do circuito pulsional completo.

Em uma criança “normal” o circuito pulsional se instaura completamente e esse processo acontece em três tempos. O primeiro tempo se ‘classifica’ como ativo, onde o bebê vai em busca do objeto oral – seio ou mamadeira – para apoderar-se; o segundo tempo é caracterizado pela capacidade auto-erótica do bebê – ele chupa seu dedo, mamadeira, chupeta; e o terceiro tempo é onde a criança se faz objeto de um novo sujeito, se assujeita a um outro que se torna sujeito da pulsão do bebê. É justamente nesse assujeitamento que a criança poderá ascender ao campo do Outro, onde poderá advir assujeitada aos seus significantes.

Esse terceiro tempo é muito peculiar. E, como apresenta Laznik (2004, p. 28), É o momento onde o bebê coloca seu dedo (do pé ou da mão) na boca da mãe, que vai fingir comê-lo de maneira muito prazerosa. Este momento particular de jogo – não se trata aí de saciar uma necessidade qualquer – é pontuado pelos risos maternos, enquanto ela comenta o valor gustativo do que lhe é oferecido pela atribuição de diversas metáforas gastronômicas onde o açúcar tem um lugar privilegiado. Tudo isso desperta em geral sorrisos na criança, o que nos indica que ela buscava justamente fisgar o gozo deste Outro materno.

Mascarado de uma passividade onde a mãe “come” o pé/mão de seu bebê, encontramos uma criança ativa que vai se “fazer comer” por esse outro sujeito para o qual o próprio bebê se faz objeto. Essa pesca do bebê em busca do gozo de sua mãe se realiza na medida em que ela representa o grande Outro primordial provedor de significantes.

Só é possível perceber a instauração completa desse circuito pulsional na medida em que nos deparamos com o terceiro tempo, pois algumas situações podem ser enganadoras aos nossos olhos e a não instauração pode passar despercebida.

Ainda segundo Laznik (2004, p. 29);

O segundo tempo, em particular, pode ser completamente enganador. Frente a um bebê que, num procedimento auto-calmante, suga o dedo ou a chupeta, só podemos afirmar a dimensão auto-erótica se soubermos que o terceiro tempo do circuito pulsional está presente em outros momentos. Senão, podemos muito bem estar diante de um procedimento no qual a ligação erótica ao Outro está ausente. Se nós retiramos o termo eros de auto- erotismo, nos encontramos face ao autismo! Só podemos falar de um verdadeiro auto-erotismo se a dimensão de representação do Outro, e mesmo do seu gozo, se inscreveu sob a forma de traço mnêmico no aparelho psíquico da criança (grifo do autor).

Nessa situação, de não instauração do circuito pulsional, pouco importa a causa. Se provier da criança, que não busca ativamente o gozo da mãe – Outro primordial – ou se há falha nessa posição, que deveria prover a criança resposta aos estímulos. É possível constatar falhas das duas partes.

Lacan pensa o processo de constituição do sujeito em dois tempos: o tempo se alienação e o tempo de separação. Esse terceiro tempo se caracteriza também pelo fracasso no tempo da alienação, que se dá, tanto no estágio do espelho, quanto no circuito pulsional. No estágio do espelho é percebido pela questão do olhar que funda a alienação por sua consistência imaginária, e no circuito pulsional é instaurada a alienação na sua dimensão real.

A alienação2 real e a simbólica atuam juntas quando o recém-nascido se reconhece no discurso parental e pode utilizar os significantes fornecidos por eles, segundo Laznik (2004, p. 64), “Esta alienação real vem se enodar3 à alienação simbólica, que se sustenta no fato de que, quando Eu falo, é pelos significantes do Outro e portanto numa alienação inevitável”. É o reconhecimento de si, do seu eu, através da imagem especular que o seu semelhante lhe oferece.

A alienação simbólica acontece quando a função materna oferece significantes, através da fala, ao bebê. E este pequeno ser se assujeita a um dentre os inúmeros significantes oferecidos pela mãe. Ele se identifica com o significante oferecido pelo

2 Alienação: Antes de a criança nascer todo o discurso que a cerca transmite o desejo dos pais. E o

sujeito é causado por esse discurso, está alienado ao desejo dos pais e as suas expectativas. Se o recém- nascido aliena seu desejo ao desejo e discurso do Outro, ele se constitui sujeito. A alienação marca que nenhum sujeito existe sem a relação com o Outro.

3 Enodar: momento em que a alienação simbólica e a real se entrelaçam. Quando o sujeito se reconhece

referencial materno, “para que o sujeito possa advir ao campo do Outro não existe outro meio senão passar pelos significantes que, no mesmo movimento, o alienam a este Outro” (LAZNIK, 2004, p. 57). O bebê ainda não se reconhece senão nos significantes que a mãe lhe oferece, assim, está alienado a este discurso, o reconhecimento do seu eu se efetua pela imagem especular oferecida por seu semelhante.

A construção da imagem do próprio corpo está ligada a alienação. No estádio do espelho, o sujeito é produzido pela imagem emprestada pelo outro, a função materna e neste momento a identidade de ambos não é separável.

Fazendo referência a Jerusalinsky (1999), Severo e Andrade (2015, p. 442) afirmam que

A partir do nascimento, o bebê sai de um ambiente de homeostase e saciedade para um meio hostil, onde sua vida depende de outra pessoa, ou seja, aquele indivíduo que possui os objetos de desejo da criança, como o leite, o toque, a voz e a linguagem; essa posição é exercida normalmente pela mãe ou cuidador. Nesse momento, a criança se aliena ao Outro, ou seja, à linguagem. O Outro é um “lugar”, posição, a qual confere a função de potência nomeadora. Este lugar, na instância psíquica do sujeito, pode ser ocupado por pessoas e até mesmo objetos. No início, o bebê depende apenas de sua percepção e seus reflexos corporais, ou seja, do choro, do reflexo de sucção do seio, entre outros. Aos poucos o Outro, vai nomeando seu choro, sua dor, sua fome e seu próprio nome, que o diferenciará da mãe. Assim, os movimentos que eram instintuais, se transformam em voluntários e pulsionais; a criança passa a demandar por carinho, presença, cheiro na tentativa de baixar sua tensão, seu desprazer e obter prazer. A criança passa do automatismo corporal para o início de sua constituição subjetiva.

O sujeito só pode ser reconhecido pelo Outro, não é reconhecido por si só. E nasce na relação de dependência significante com a função materna, e assim alienado a ela. Há alienação quando um significante representa um sujeito para outro significante.

A alienação real se estabelece na medida em que é possível perceber o terceiro momento da instauração do circuito pulsional. É o momento em que o bebê, também, esta assujeitado ao referencial materno. Com a diferença de que neste momento ele se assujeita no campo real (quando oferece seu pé para que a mãe o morda).

Esse novo sujeito se faz objeto para um outro, “Alienação real, já que, eis que o sujeito do meu circuito pulsional não é Eu mas o outro” (LAZNIK, 2004, p. 64). A criança se faz objeto do desejo de sua mãe.

Ambas as alienações são muito importantes na constituição psíquica da criança, e uma não acontece sem a outra. Caso a alienação simbólica não aconteça, a real também não irá se estabelecer.

Assim, destaca-se a importância dessa transmissão de significantes que a mãe através da função materna, disponibiliza ao filho desde o nascimento. Significantes

estes que vão lhe fazer pertencente ao mundo de linguagem, que vão lhe dar uma imagem e permitir se reconhecer nesta, tonando-se sujeito.

Da mesma maneira que, como na constituição psíquica, o investimento do outro é fundamental, isso se aplica também à escola com os alunos incluídos, onde é necessário que os professores os reconheçam, invistam neles, emprestem significantes aos alunos, supondo que ali existe um sujeito desejante.

3. INCLUSÃO / EXCLUSÃO: DUAS FACES DA MESMA REALIDADE – UM

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