• Nenhum resultado encontrado

PARTE I UM OLHAR SOBRE O OBJETO DE ESTUDO

CAPÍTULO 2. AS NOVAS FRONTEIRAS DA DESIGUALDADE DE GÊNERO NA

2.3 O processo de educação médica e a construção social da identidade

2.3.1 Construção das disposições quanto à escolha da especialidade médica: um

A principal linha de argumentação que desenvolvo nesta tese parte do pressuposto de que as razões que se encontram na gênese da exclusão de muitas das mulheres médicas das especialidades cirúrgicas tem sua origem, não somente na apregoada e comumente aceita justificativa em torno da incompatibilidade entre carreira cirúrgica, maternidade e vida familiar, mas, especialmente, na construção social das disposições de gênero que se encontram presentes no processo de educação médica e, de forma paulatina e persistente, continuam a ser internalizadas na identidade dos(as) estudantes de medicina, contribuindo para dar origem a aspirações profissionais profundamente marcadas por uma cultura médica hegemonicamente masculina.

Tomar essa posição não significa ignorar ou rejeitar os dados das pesquisas que apontam as razões mobilizadas pelas mulheres médicas para não escolherem a cirurgia como especialidade. Ao contrário disso, essas razões realmente representam o pensamento de grande parte das mulheres que não escolhem cirurgia. Tomar essa posição também não significa ignorar ou rejeitar o fato de que a rotina de trabalho na residência de cirurgia e na

vida profissional em uma carreira cirúrgica sejam mais difíceis do que a rotina de trabalho na residência e na vida profissional de uma especialidade clínica. Na verdade, as residentes e as cirurgiãs que entrevistei não discordam do fato de a residência em cirurgia e a carreira cirúrgica realmente exigirem mais do que os mesmos segmentos em uma carreira clínica. Tomemos como exemplo dessa percepção as posições de Alice e Jéssica transcritos nos fragmentos de entrevista abaixo.

R- Bom... aí, em que momento você decidiu que queria fazer cirurgia? Como é que foi essa decisão?

A- Foi difícil porque eu gostava de muita coisa na faculdade. Eu gostava de hematologia porque também tinha procedimento, gostava de ginecologia e obstetrícia e de cirurgia. Aí, para fazer hemato tinha que fazer clínica antes. Aí eu acabei desistindo. O mais difícil foi entre Ginecologia-Obstetrícia e cirurgia. Mas aí eu acabei optando por cirurgia porque na parte de Ginecologia-Obstetrícia eu gostava mais da parte de obstetrícia e parto. Só. Aí eu acabei desistindo. Fui para a cirurgia mesmo.

R- E quando você falou que ia fazer cirurgia alguém falou alguma coisa? Algum colega, algum professor, seu pai, sua mãe... alguém teve uma reação do tipo assim: "não, cirurgia não é pra mulher, não faz cirurgia"?

A- Ah, sempre tem né, alguém que fala, mas eu não lembro especificamente as pessoas que falaram. Porque eu nunca ligo muito para o que as pessoas falam, sabe. De palpites... de ficar... "Ah, fulano falou isso pra mim, é melhor eu escutar". Meus pais me apoiaram. Mas antes, meu pai nem queria que eu fizesse medicina, né. Ele queria que eu fizesse direito para ser juíza. Ele achava que era muito sofrimento fazer medicina. Ele falava: "Você não vai ter sossego na sua vida. Para com isso. Não faz medicina não. Você vai ver o inferno que vai ser sua vida. Você não vai ter final de semana de folga". E ele tinha razão, né.

R- E é isso mesmo?

A- É. Pior é que é mesmo. Mas aí, quando eu resolvi fazer medicina mesmo, aí ele me apoiou. E cirurgia também. Ele nunca falou: "não faz cirurgia porque isso é coisa de homem" (fragmento de entrevista realizada pela pesquisadora com Alice, gastrocirurgiã em início de carreira).

E a minha mãe falava para mim: "Ah, adoraria se você ficasse na faculdade [Jéssica havia recebido uma proposta para ser professora da faculdade onde estudou medicina], é mais tranquilo, dá para ter uma vida mais tranquila [falando com uma voz dengosa como que imitando a mãe dela], menos agitada" [rindo]. E eu: "Ah mãe, mas eu acho que não é para mim assim, uma vida tão tranquila [rindo]" (fragmento de entrevista realizada pela pesquisadora com Jéssica, R3 de cirurgiã cardiovascular).

Assim como Alice e Jéssica, a despeito de estarem conscientes das dificuldades que enfrentariam na residência e na profissão, as mulheres que entrevistei não se deixaram influenciar pelos conselhos ou pelos estereótipos de gênero que insistem na ideia de que a cirurgia não é uma profissão apropriada para mulheres. Entender os caminhos que levaram essas mulheres a escolherem a cirurgia como opção profissional foi um objetivo perseguido por mim desde o início desta pesquisa.

A linha de argumentação que desenvolvo na tese também se baseia na percepção de que, atualmente, muitos caminhos e possibilidades parecem estar abertos às novas gerações de mulheres que ingressam em uma escola de Medicina. Trata-se de mulheres com elevado capital escolar e, possivelmente, também convictas de que são capazes de exercer qualquer profissão (até mesmo aquelas que antes já foram predominantemente masculinas, como é o caso da medicina). Essas mulheres superaram a difícil concorrência para conseguir entrar na faculdade de medicina e correspondem, atualmente, à maior parte dos estudantes de medicina do Brasil. No entanto, o que acontece no final da primeira etapa da formação médica, após concluírem a faculdade de Medicina, é que, como acontecia no final do século XIX, a maior parte das mulheres continua a fazer opção por carreiras socialmente consideradas como as mais apropriadas para a condição feminina; aquelas que, aparentemente, melhor conciliam maternidade, vida familiar e vida profissional.

Como expresso por Denoyel-Jaumard e Bochaton (2015) e Wirtzfeld, (2009, estamos vendo o ciclo da desigualdade de gênero na medicina ser realimentado com o mesmo discurso que era utilizado no final do século XIX para justificar a razão de a carreira cirúrgica e até mesmo a profissão médica serem impróprias para mulheres. O discurso utilizado naquela época era: A medicina é uma profissão que demanda grande resistência e força física. É uma profissão incompatível com a maternidade e a conciliação entre vida profissional e vida doméstica (HAHNER, 1981 e 2003; RAGO, 2000 e 2008; MARQUES FILHO, 2004; DALL’AVA-SANTUCCI, 2005). O discurso atualmente utilizado para justificar a pouca representatividade das mulheres nas carreiras cirúrgicas é: “ a [...] necessidade de maior força e resistência física, a formação mais demorada, a exigência de maior disponibilidade de tempo e a dificuldade de coordenar práticas profissionais com a vida familiar...” (SCHEFFER, 2013, 148). Assim, o discurso continua, pelo menos aparentemente, o mesmo. Dessa forma, a estrutura das distâncias entre o valorizado/desvalorizado na relação de poder entre os sexos permanece, apesar das mudanças.

Quando o assunto é a sub-representação feminina no campo cirúrgico os principais fatores apontados como responsáveis pela abstenção feminina ainda são aqueles relacionados ao casamento, à constituição de uma família e à maternidade. Digo, “ainda”, porque esse era o discurso utilizado nos séculos XVIII e XIX para tentar afastar as pioneiras da medicina da especialidade cirúrgica (DALL’AVA-SANTUCCI, 2005; WIRTZFELD, 2009). A perpetuidade e a força com que esse discurso é disseminado e aceito ainda hoje, em uma época em que as mulheres-mães assumem, com competência, postos de trabalho nos mais diversos segmentos profissionais, deve ser objeto de uma análise mais aprofundada.

Tratar do processo de tomada de decisão dos sujeitos quanto à formação profissional é uma tarefa complexa. Como apontado por Nogueira (2004), ainda que os longos anos de socialização familiar e escolar exerçam forte influência sobre a construção dos projetos e perspectivas pessoais, é fundamental considerar que os indivíduos estão sob a influência de outras múltiplas (e até mesmo, aparentemente contraditórias) disposições. Como argumenta Lahire (2002), as disposições são forjadas através das experiências passadas interiorizadas do mundo social, mas essas disposições são também passíveis de transformação. Os indivíduos são produto das experiências passadas que foram incorporadas e interiorizadas. No entanto, socializados por diferentes instituições, em diferentes períodos de sua existência, os indivíduos acabam por interiorizar uma grande variedade de disposições que podem ser também heterogêneas e contraditórias. Com o tempo, as disposições vão se construindo e se transformando, se tornando mais duráveis ou menos duráveis. Tudo depende da intensidade, do tempo de socialização e do contexto onde a experiência de socialização se passa64.

Interpretando o pensamento de Lahire, principalmente relacionando-o ao conceito de habitus sexuado do qual fala Bourdieu (2007), embora haja um habitus sexuado profundamente impregnado no imaginário individual e coletivo, e que esse exerça, ainda hoje, uma força de coerção social sobre os modos de pensar e agir dos sujeitos masculinos e femininos é importante destacar que esse habitus sexuado vem passando por transformações65. Pode-se sim, falar em uma disposição de gênero, mas é preciso considerar que uma parte das práticas vivenciadas pelos indivíduos está relacionada às disposições incorporadas social e historicamente e outra parte, está relacionada ao contexto no qual se move o indivíduo, sempre em transformação. E, nesse caso, Bourdieu (1990), assim como Lahire (2002), argumentam que não é possível apreender como se dão as práticas individuais sem colocá-las em relação, ao mesmo tempo, com os processos de socialização e o espaço social no qual se manifestam. É nesse sentido que a Sociologia da Educação, especialmente

64Ao tratar da medicina como um dos mais longos ritos de passagem em termos de formação profissional Becker

(2005) comenta que o que vai transformar os jovens calouros em médicos não é simplesmente a aprendizagem das ciências básicas para a prática da medicina. A ciência e a habilidade no diagnóstico e tratamento de doenças não fazem o médico. Após passar um longo processo de instruções, cerimônias e provações os jovens neófitos devem interiorizar uma espécie de cultura médica e aprender a desempenhar o papel de médico no “círculo encantado” da medicina.

65 Elias (1990) explica que o desenrolar do processo que desencadeia as mudanças sociais não segue uma linha

retilínea, antes, se configura de uma complexa teia de avanços e retrocessos que ocorre no interior de um conjunto histórico específico. Embora com ritmo de variação imprevisível, podendo apresentar curvas de mudança ora mais longas, ora mais curtas, mudanças que envolvem costumes fortemente enraizados na estrutura de uma determinada sociedade podem passar por um longo e lento processo gestacionário. Pode levar séculos para que formas socialmente instaladas de conduta deem lugar a novos modos de pensar e agir.

por meio do estudo das trajetórias de mulheres cirurgiãs, como casos estatisticamente improváveis, pode contribuir para analisar as práticas de socialização de gênero que ocorrem nas escolas de formação médica e ajudar a compreender seus efeitos sobre as escolhas profissionais das mulheres. É nesse sentido que as novas formas de hierarquização de gênero no interior da medicina precisam ser entendidas, não somente a partir das questões referentes à divisão sexual do trabalho, mas também, a partir da permanência das desigualdades de gênero construídas nos diferentes níveis do sistema de educação médica. É preciso que se apreenda como os indivíduos constroem suas perspectivas quanto ao futuro profissional e ao fazerem isso transpõem para esse novo nível de ensino as desigualdades sociais historicamente incorporadas.

Para os interesses desta discussão, propomos então, sistematizar uma reflexão acerca das estratégias pouco evidentes de construção das identidades sociais de gênero. Procuramos mobilizar conceitos, autoras/es e uma sensibilidade do olhar sobre processos socializadores difusos e pouco sistemáticos. Consideramos que o desenvolvimento de uma sociologia da socialização relativa às questões de gênero, só tem a ganhar com a noção de disposição; ademais, para se compreender totalmente uma disposição precisamos reconstituir sua gênese, ou seja, suas condições ou modalidades de formação.

Se, nesta tese, abordo aspectos da educação médica referentes à formação técnica e científica, minha prioridade é, no entanto, entender como se dá, no contexto das interações pedagógicas, o processo de construção da identidade médica em articulação com o processo de formação que Riska (2009) denomina de “socialização de gênero”.

PARTE II - TORNANDO-SE MÉDICA: CLIVAGENS DE GÊNERO NA