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PARTE II TORNANDO-SE MÉDICA: CLIVAGENS DE GÊNERO NA

3.1 Socialização primária: o início da construção da distinção social

3.1.2 Entrevistadas oriundas de famílias de camadas médias

Quando em comparação com as famílias de camadas populares, as condições socioeconômicas e as condições de existência dessas famílias de todos os estratos das camadas médias eram bem diferentes. Todas as famílias dos estratos médios puderam oferecer a seus filhos condições de existência bem diferentes daquelas oferecidas pelas famílias dos estratos das camadas populares. Essa diferença foi especialmente percebida nas condições de moradia, no bairro onde se localizava a casa da família, nos tipos de bens adquiridos e consumidos pela família, nas modalidades de lazer praticadas, nos locais frequentados pela família e, especialmente, nas escolas frequentadas pelos filhos e nas estratégias de escolarização.

Por mais que as famílias das camadas médias estivessem em uma situação econômica superior em relação às famílias das camadas populares, nota-se grande diversidade econômica entre elas. Tome-se como exemplo a descrição que algumas médicas fizeram de como eram suas casas na infância e em que bairros estavam localizadas. As descrições apontaram para dois tipos de casa: aquelas menores, com três quartos, dois banheiros (sendo uma suíte no quarto do casal), sala e cozinha; e aquelas com mais de três quartos (todos com suíte), várias salas e grandes espaços de áreas de lazer com churrasquita e piscina. Havia, ainda, casas localizadas em bairros de complexos populacionais, como foi o caso da família de Marcela, que sempre morou em casas funcionais localizadas em vilas militares; e da família de Vívian, que morava em um complexo populacional de classe média financiado pelo governo de seu país (Venezuela) em muitas prestações.

Nas descrições das médicas entrevistadas também apareceram outros elementos que demonstram a superioridade socioeconômica sociocultural de algumas famílias com relação aos estratos populares e, até mesmo, com relação a outros estratos das camadas médias. Várias das entrevistadas me falaram que a família era sócia de um clube (que também era frequentado por outras pessoas de seus círculos de amizade) e que frequentavam o clube regularmente para práticas de esporte e momentos de lazer. Várias das entrevistadas também relataram que faziam cursos extracurriculares de pintura, piano, língua estrangeira (especialmente de Inglês) e ballet.

Corroborando o que têm apontado pesquisas sobre as origens econômicas e culturais das famílias de origem dos estudantes de medicina brasileiros realizadas por meio de questionários socioeconômicos aplicados por ocasião da inscrição para as provas do ENADE (RISTOFF, 2014) ou por ocasião dos vestibulares (ALMEIDA, 2009; ALMEIDA e ERNICA,

2015), a maior parte das médicas por mim entrevistadas (dezenove, dentre as vinte e nove) são oriundas de famílias de diferentes frações de classe das camadas médias.

Doze, dentre as dezenove entrevistadas das camadas médias, são filhas de pais e/ou mães com escolaridade de nível superior (vários com pós-graduação) envolvidos em ocupações profissionais que exigem alta qualificação educacional. Quanto à profissão dos pais, cinco são engenheiros, um é advogado, um é professor de Matemática para o Ensino Médio, um é biólogo em uma empresa multinacional, dois são médicos (com especialização em Ginecologista e Pediatra) e um é produtor rural formado em Engenharia Agronômica, mas exerce cargos políticos há muitos anos (já foi vereador e prefeito). Apenas um dos pais das médicas oriundas das frações das camadas médias intelectualizadas não havia se diplomado no Ensino Superior (mas sua mãe era professora de Matemática): o pai de Mirela, que havia feito um curso profissionalizante de piloto comercial e exercia a profissão de piloto de táxi aéreo, além de também administrar um pequeno comércio da família.

Uma característica marcante quanto à formação escolar e à inserção profissional das mães dessa fração mais intelectualizada das classes médias é que onze dentre elas tiveram formação em nível superior em licenciatura e dez dentre elas atuavam como docentes da Educação Infantil e da Educação Básica (no ensino de Matemática, História, Educação Física, Língua Portuguesa e Artes) ou atuavam na gestão/orientação escolar. Com as tias também não foi muito diferente. Muitas delas obtiveram um diploma de licenciatura e atuavam como professoras do nível básico ou diretoras de escola. Apenas uma, dentre as mães das camadas médias intelectualizadas não havia cursado o Ensino Superior e não exercia atividade profissional assalariada: a mãe de Joyce, que tinha escolarização a nível médio e era considerada pela filha como dona de casa.

As mães professoras ou gestoras, pertencentes a uma fração de classe mais rica em capital cultural e portadoras de todo um patrimônio de informações sobre o funcionamento do sistema escolar (com seus trâmites, e hierarquias) apresentam aquele tipo de estratégia apontada por Bourdieu (1998b) como sendo geradora de distinção e vantagens quando diante da acirrada competição por uma vaga nos cursos e instituições mais disputadas. Essas vantagens estão diretamente relacionadas a investimentos escolares e estratégias de escolarização voltados para a escolha do estabelecimento de ensino, dos ramos de estudo, dos caminhos a serem percorrido.

O ascetismo e a boa vontade cultural aplicados à educação da prole foram alguns dos atributos distintivos que fizeram parte das estratégias de escolarização dessas famílias das camadas médias (e especialmente as mães desse estrato mais escolarizado). A forma diligente

e orquestrada como acompanhavam a vida escolar dos filhos são exemplos típicos daquele tipo de família das frações médias descritas por Bourdieu (NOGUEIRA, 1991; NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2006) que, munidas do ethos da ascenção social via escola investem pesadamente na educação escolar dos filhos. Para essas frações das camadas médias “[...] a criança representa um investimento através do qual se garante a manutenção da posição de classe média ou se prepara o ingresso nas elites. E a escola servirá como o canal por excelência utilizado nessa empreitada de promoção social” (NOGUEIRA, 1991, p. 97).

O ethos de classe que movia as estratégias dos pais (mas especialmente, das mães) em função do rigor ascético e da boa vontade cultural com vistas a um projeto de futuro para as filhas também foi uma característica marcante dessas famílias das camadas médias intelectualizadas. Trata-se daquelas famílias que Bourdieu chama de “convertidos” e de “oblatos”. “Convertidos”, porque adquiriram o capital cultural de que dispõem via escolarização e “oblatos”, porque depositam todas as suas aspirações e chances de ascenção social na escola (NOGUEIRA, 1991).

Os pais e as mães das entrevistadas que pertenciam às frações de classe média provinham de famílias cujos avós pertenciam aos estratos populares e eram muito pouco escolarizados. A maior parte dos avôs e avós dessas mulheres não havia concluído o Ensino Fundamental73. Se, nas famílias das entrevistadas oriundas das camadas populares, o maior salto de mobilidade geracional ascendente se deu da geração dos pais para a geração das filhas (as médicas que entrevistei), nas famílias das entrevistadas oriundas das camadas médias esse salto de mobilidade ascendente se deu uma geração antes. Mas isso aconteceu, especialmente, na fração de classe das camadas médias intelectualizadas. Da geração dos avós para a geração dos pais das médicas entrevistadas houve um importante salto de mobilidade econômica e escolar ascendente nas frações dos estratos intelectualizados. Na transição da geração dos avós para a geração dos pais grande parte da nova geração formada pelos pais e pelos tios/tias passaram a ter um diploma de Ensino Superior e também a se colocarem em uma situação econômica melhor do que a geração dos avós.

Era dessa geração em ascenção econômica e cultural que a maior parte dos pais das frações das camadas médias intelectualizadas faziam parte e sempre foi muito importante

73 Sobre a escolarização dos avôs e avós das médicas advindas das camadas médias a primeira característica que

se destaca é o fato de não haver grande diferença entre os avôs e avós desses estratos sociais e os ancestrais das médicas advindas das camadas populares. O nível de escolarização da maior parte dos avôs e avós dos estratos médios (independentemente, da fração de classe) se enquadrou nas categorias Ensino Fundamental incompleto e Ensino Fundamental completo. Nessas categorias, as avós se sobressaíram em relação aos avôs. Mais avós do que avôs e enquadravam na categoria Ensino Fundamental (completo e incompleto). Quatro avôs e avós dos estratos das camadas médias proprietárias não eram escolarizados e nem alfabetizados/as.

para esses pais fazer com que seus filhos conservassem e superassem essa condição via investimento escolar. Essas famílias...

por serem pouco providas das diferentes espécies de capital (econômico, cultural ou social), necessitam, para realizar sua trajetória ascensional, constituir uma “acumulação inicial” e, para isso, fazem uso de recursos morais (na forma de privações, renúncias, sacrifícios) como meio de compensação. Essa disposição pode ser claramente ilustrada pelos sacrifícios (renúncia à compra de bens de luxo, redução de gastos com passeio, etc) que essas famílias realizam para garantir boa escolarização para a prole. Esse ascetismo se traduziria, ainda – em termos da forma de educar os filhos – num “rigorismo ascético”, numa valorização da disciplina e do autocontrole, e na exigência de uma dedicação contínua e intensiva aos estudos” (NOGUEIRA, 1991, p. 77).

Quadro 4- Tipo de rede de ensino frequentada durante a escolarização básica pelas entrevistadas oriundas de famílias das camadas médias

Cursou toda a escolarização básica na rede pública de ensino

Raíssa (a mãe era diretora de escola)

Vívian (escola pública de prestígio na Venezuela)

Cursou toda a escolarização básica na rede privada de ensino

Denise (colégio de freiras) Mirela

Patrícia (escola de prestígio localizada em bairro elitizado) Pietra (rede Anglo)

Teresa (Rede Darwin) Nayara

Cursou o Ensino Fundamental na rede pública e o Ensino Médio na rede privada

Alice

Jéssica (Parte do Ensino Fundamental e o Ensino Médio em colégio de freiras) Kátia (rede Objetivo)

Stela Paula

Marcela (durante o Ensino Fundamental frequentou um colégio militar) Ilary (Colégio de freiras)

Cursou o Ensino Fundamental na rede privada e o Ensino Médio na rede pública

Joyce

Isabel (escola pública de prestígio)

Sara (escola pública de prestígio mais conceituada do que as escolas da rede privada - Colômbia)

Tamara (Ensino Fundamental em uma escola da rede privada de pouco prestígio e o Ensino Médio técnico em Química em uma escola técnica estadual de grande prestígio)

Fonte: Entrevistas realizadas pela pesquisadora

Conforme pode ser observado no quadro apresentado, o tipo de estabelecimento de ensino frequentado pelas entrevistadas das camadas médias variou entre aquelas que fizeram toda a escolarização básica na rede pública de ensino (Raíssa e Vívian), toda a escolarização básica na rede privada de ensino (Denise, Mirela, Patrícia, Pietra, Teresa, Nayara e Ilary), o Ensino Fundamental na rede pública e o Ensino Médio na rede privada (Alice, Jéssica, Kátia, Stela, Paula e Marcela) ou o Ensino Fundamental na rede privada e o Ensino Médio na rede pública (Joyce, Isaabel, Sara e Tamara).

Duas, dentre as dezenove entrevistadas das camadas médias são filhas de pais e mães que pertencem às frações das camadas médias com escolaridade de nível médio técnico ou superior incompleto e ocupações ligadas a cargos técnicos ou administrativos. O pai de Ilary havia concluído o Ensino Médio Técnico em desenho industrial e exercia a profissão de projetista de peças de carros em uma montadora multinacional e sua mãe concluiu o curso médio-técnico de secretariado, mas não exercia atividade profissional. O pai de Vívian havia iniciado duas faculdades (de Economia e de Ciências Políticas), mas não havia concluído nenhuma das duas e a escolaridade de sua mãe se limitava ao Ensino Fundamental e a um curso profissionalizante de secretariado.

A despeito de não terem formação de nível superior as estratégias dos pais de Vívian quanto à escolarização das três filhas se assemelhava, em alguns aspectos, àquelas empreendidas pelas famílias mais intelectualizadas. Especialmente, no que se refere ao estilo de vida familiar quanto à ordem moral doméstica. Como Vívian explica, no fragmento de entrevista abaixo, quando me falava sobre as condições econômicas de sua família durante sua infância, do ponto de vista dos estudos ela e suas irmãs eram diferenciadas das crianças das outras famílias que moravam no mesmo complexo habitacional.

V- Minhas duas irmãs e eu crescemos em uma casa onde tínhamos tudo, não faltava nada, mas nada de luxo. Era um apartamento simples. Éramos três meninas, meu pai e minha mãe. Morávamos todos juntos. Era um apartamento de três quartos e um banheiro. Uma cozinha... assim, bem, bem simples. Não sei se você tem ideia... Era um bairro residencial grande, grande, grande. Todos os apartamentos tinham a mesma estrutura. Os prédios todos são iguais, cada certa distância tem escola. São moradias populares feitas pelo governo e pagas com prestações longas... A muito, muito longo prazo. Então eles ficaram trabalhando e pagando esse apartamento. Minha mãe também trabalhou, fez de tudo, mas dentro de casa. Ela falou que... Ela não fez faculdade, mas sempre teve habilidades para contas e para vendas. Então ela vendia tudo. Qualquer coisa que ela conseguia no caminho ela vendia. Vendia roupas, vendia prendas, vendia tudo, sapatos, vendas à prestação, tudo.

R- Você se lembra da época da sua infância... você se achava economicamente parecida com as pessoas que moravam perto de você ou a sua família era de um nível superior aos vizinhos?

V- Economicamente todos que morávamos em Cana de Açúcar (nome do bairro) éramos iguais. Famílias modestas, mas extrato social médio. Todo mundo ao redor de nós na escola era mais ou menos do mesmo tipo, mas nós éramos diferenciadas. A minha irmã mais velha e a mais nova, nós três éramos bem diferenciadas porque todo mundo reconhecia que nós éramos muito boas na parte acadêmica. Nós fomos muito boas desde cedo (fragmento de entrevista realizada pela pesquisadora com Vívian, R4 de cirurgiã cardiovascular).

Como Vívian relata, se economicamente todas as crianças e adolescentes que moravam no mesmo complexo residencial e frequentavam a mesma escola tinham um padrão econômico semelhante, o mesmo não acontecia com relação ao padrão cultural. A situação econômica da família de Vívian na primeira fase de sua escolarização se mostrou uma das

mais simples dentre as famílias de camadas médias das mulheres entrevistadas, no entanto, as estratégias escolares empreendidas em casa, pela mãe, exerceram grande influência sobre os destinos escolares das filhas (duas formaram-se médicas e Vívian ingressou precocemente na faculdade de Medicina aos 16 anos). Vívian descreve algumas das estratégias utilizadas por sua mãe nessa empreitada fortemente caracterizada pela regularidade das regras e dos horários de estudo e pela inculcação precoce e sistemática de uma espécie de ethos ascético racional:

A responsabilidade disso foi de minha mãe. Minha mãe nos ensinou bem de cedo, ainda bem crianças, ensinou a escrever, ler, multiplicar. Tínhamos três ou quatro anos e já sabíamos fazer tudo isso. Uma coisa que acho admirável.

[...] eu sempre fui a mais nova da minha turma. De todas as turmas onde estive eu sempre fui a primeira. A mais nova e sempre a primeira da turma.

R- Você falou que a sua mãe ensinou inglês. Ela sabia falar inglês?

V- Não. Não. Ela comprou... naquela época K7. Vídeos, esse tipo de coisa. Uma de minhas tias que era artista, gostava muito... tinha várias coisas que levava para casa, emprestava para minha mãe e deixava para nós. Porque era fácil, era inglês para criança, entendeu? Tinha figuras, cores. Era em áudio e a parte visual eram as figuras. Então, minha tia trazia para casa os discos, minha mãe colocava e deixava para as três praticarem.

Como disse Lahire ao comentar sobre a ordem moral doméstica empreendida por uma família por ele pesquisada: “É, sem dúvida, no estilo de vida familiar como um todo, na ordem moral doméstica, que é, indissociavelmente, uma ordem mental, que podemos reconstruir os princípios de produção de comportamentos adequados do ponto de vista escolar” (LAHIRE, 1997, p. 204).

Quatro, dentre as dezenove entrevistadas das camadas médias são filhas de pais e mães que pertencem às frações das camadas médias proprietárias. Trata-se, em sua maioria, de pais e mães com escolaridade de nível médio ou Ensino Fundamental e ocupações profissionais como administradores(as) do próprio negócio. No caso, dois deles, pequenos empresários do ramo da construção civil (os dois pais são construtores) e um pequeno empresário do ramo hoteleiro. Apenas um dos pais das camadas médias proprietárias tem Ensino Superior (é um empresário formado em Direito).

Um destaque entre as famílias dos estratos das camadas médias proprietárias é a família de Isabel. Embora seus pais tivessem apenas formação escolar a nível Médio (com complemento em formação técnica em construção civil e corte e costura), tratava-se de uma família de migrantes nordestinos que apresentava características distintas de muitos dos demais migrantes nordestinos que chegaram na cidade de São Paulo entre as décadas de 1950- 1970 (a família migrou em 1957). A família da mãe de Isabel era uma tradicional família de políticos, magistrados (juízes e desembargadores) e grandes proprietários de terra em seu estado de origem. Embora os pais de Isabel tivessem migrado do Nordeste para São Paulo em

uma situação adversa de conflito com os avós e tios maternos, a mãe de Isabel herdou de sua família uma condição financeira bastante favorável.

Diferente de muitas famílias de migrantes nordestinos que chegavam a São Paulo na época, a família de Isabel teve uma condição financeira suficientemente boa para que a viagem do Nordeste para São Paulo fosse feita de avião e, ao chegar em São Paulo pudesse se estabelecer em um tradicional bairro de classe média. O pai contratou pedreiros e montou uma empreiteira de construção civil e a mãe montou uma boutique que tinha como clientes senhoras abastadas do bairro onde residiam (as roupas vendidas na boutique eram de criação e fabricação da oficina de confecção da mãe).

Na entrevista Isabel contou alguns detalhes que dão mostras das condições de existência da família, como por exemplo: o pai dela era dono de um Buick 1951 (considerado um carro de luxo para a época) e era sócio fundador do clube Corinthians (condição que implicava na compra do título do clube por um preço elevado).

Uma outra subdivisão das camadas médias é representada pela família de Marcela que pertencia aos estratos militarizados das camadas médias. O pai de Marcela concluiu o Ensino Médio, ingressou na marinha e especializou-se como instrutor de artilharia. Sua mãe concluiu o Ensino Médio e não exercia trabalho remunerado.