• Nenhum resultado encontrado

PARTE II TORNANDO-SE MÉDICA: CLIVAGENS DE GÊNERO NA

3.2. Dificuldade de ingresso e excepcionalidade da admissão em um curso de

Porque é muito difícil de entrar. Então, quando você entra você está muito orgulhoso. Porque você ralou muito pra entrar aqui (fragmento da entrevista realizada pela autora com Stela, aluna do 3º ano de medicina de uma universidade pública localizada no estado de São Paulo).

Seja entre os amigos, no seio da família, da escola ou do cursinho, a celebração da aprovação no vestibular é, em geral, um momento de consagração para o estudante aprovado. Isso vale ainda mais para os que foram aprovados para os cursos de Medicina. Os estudantes aprovados em cursos de Medicina são celebrados como exemplos do modelo ideal de estudante. Modelo esse, altamente valorizado na sociedade brasileira. E o rito de consagração pelo qual esses estudantes passam no momento da matrícula contribui para construir a ideia de que os aprovados são seres especiais, portadores de qualidades positivas e raras, que merecem usufruir da formação dada pelas faculdades de Medicina.

Desde a criação das primeiras escolas médicas, no início do século XIX, a dificuldade de ingresso e a excepcionalidade da admissão tem sido uma realidade enfrentada pelos estudantes que buscaram uma vaga em um curso de Medicina no Brasil (COELHO, 1999; VARGAS, 2008), sendo esse, ainda na atualidade, um dos cursos mais disputados nos processos seletivos para a entrada no Ensino Superior74 (BRASIL, 2013).

De acordo com o relatório técnico sobre a relação oferta/demanda dos cursos de graduação no Brasil, divulgado pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2013), o curso de Medicina continuava, na ocasião, a ser o de maior concorrência nas Instituições de Ensino Superior brasileiras, tanto na rede pública (63,42 candidatos por vaga) como na rede privada de ensino (25,67 candidatos por vaga). Segundo o mesmo estudo, o curso de Medicina teve o maior número de inscritos nos vestibulares das Instituições de Ensino Superior da rede pública (440.391) e o segundo maior número de inscritos nos cursos presenciais da rede privada (251.838), perdendo apenas para o curso de Direito (473.993)75.

No quadro a seguir apresento dados recentes dos vestibulares de algumas das mais prestigiosas universidades públicas do estado de São Paulo e também dados do SISU (Sistema de Seleção Unificado).

74 Segundo a pesquisadora Hustana Maria Vargas (2010) os três cursos que se sobressaem como os de mais alto

valor na hierarquia dos cursos disputados nos vestibulares são aqueles cujas profissões também são consideradas as de mais alto prestígio e distinção social na sociedade brasileira desde a época do Império: Medicina, Engenharia e Direito.

75 Segundo dados do Mapa do Ensino Superior no Brasil 2015 (SEMESP, 2015), embora, os cursos presenciais

de Direito (677,8 mil), Administração (557,9 mil) e Pedagogia (213,1 mil) tenham sido aqueles com maior número de matrículas nas instituições de ensino superior privadas do Brasil no ano de 2013, e o curso de Medicina tenha ocupado a 17ª posição nesse ranking, foi o curso de Medicina que teve o maior percentual de concluintes (83,6%) nessa mesma rede de ensino. Os percentuais de estudantes concluintes nos cursos de Direito, Administração e Pedagogia foram, respectivamente, 48,9%, 46,9% e 59,9%.

Quadro 5- Relação candidato vaga e nota de corte dos processos seletivos dos anos de 2015 e 2016 de algumas universidades públicas do estado de São Paulo e do Sisu.

Processo Seletivo 2015 Processo Seletivo 2016

Relação C/V* do curso de maior concorrência Relação C/V do segundo curso de maior concorrência Maior nota de corte para aprovação/ curso Segunda maior nota de corte para aprovação/ curso Relação C/V do curso de maior concorrência Relação C/V do segundo curso de maior concorrência Maior nota de corte para aprovação/ curso Segunda maior nota de corte para aprovação/ curso UNESP 222,4 Medicina 47,9 Engenharia Química 59 Medicina 56 Engenharia Civil 243,8 Medicina 45 Engenharia Química 70 Medicina 52 Engenharia Química USP 55,02 Medicina 40,69 Psicologia 72 Medicina 61 Engenharia 71, 93 Medicina 59,80 Psicologia 73 Medicina 62 Psicologia UNICAMP 203,8 Medicina 114,08 Arquitetura e Urbanismo 665,5 Medicina 612,8 Engenharia Química 220,1 Medicina 211,4 Arquitetura e Urbanismo 688,2 Medicina 626 Engenharia Química UNIFESP 125,02 Medicina 37,32 Engenharia Química Informação não disponível Informação não disponível 125,74 Medicina 25,15 Ciências Biológicas Informação não disponível Informação não disponível UFSCAR 213,82 Medicina 137 Psicologia 801,11 Medicina 783,37 Engenharia da Computação 177,55 Medicina 122,77 Psicologia 786,46 Medicina 802,44 Engenharia da Computação SISU *¹ *¹ 830,39 Direito UFF 821,46 Medicina UFRJ *¹ *¹ 824,74 Medicina UFRJ 811,94 Engenharia Química UFRJ

Fonte: Fuvest, Vunesp, Comvest, Unifesp, Ufscar, Sisu. * C/V – candidato/vaga

*¹A relação candidato/vaga é diferente para cada Instituição de Ensino Superior. Nas instituições que têm o curso de Medicina esse tende a ser, em geral, o curso de maior concorrência.

A dificuldade de ingresso e a excepcionalidade da admissão em um curso de Medicina podem ser evidenciadas por meio da comparação entre o número de candidatos concorrentes e número de vagas ofertadas, mas também, por meio da nota de corte para a aprovação dos diferentes cursos disputados nos vestibulares. Conforme observado no quadro destacado, em geral, o curso de Medicina se sobressaiu como sendo o de maior concorrência e o de maior nível de dificuldade de ingresso dos vestibulares analisados.

Além da relação candidato/vaga e da nota de corte, outro indicador que atesta a dificuldade de ingresso no curso de Medicina é a necessidade de recorrer a cursos pré- vestibulares – inclusive a consideração do tempo de preparo em cursinho pré-vestibular – e o número de vezes em que houve tentativa de entrada na faculdade de Medicina. Dentre as 29 médicas que entrevistei, apenas quatro não fizeram curso pré-vestibular76, sendo que uma dessas fez aulas particulares para se preparar para o vestibular, outra foi aprovada para o curso de Medicina em uma faculdade da rede privada77 após a primeira tentativa de ingresso e duas

76 Ver o quadro sobre o ingresso na faculdade que se encontra no Apêndice A (p. 372).

77 A concorrência para a entrada na faculdade de Medicina da rede privada também é acirrada (BRASIL, 2013).

Dentre as 29 mulheres médicas que entrevistei 6 delas fizeram a faculdade na rede privada de ensino e apenas uma não fez curso pré-vestibular, mas todas elas cursaram a educação básica em escolas consideradas de elevado nível acadêmico. Com exceção de Denise, que cursou Medicina em uma faculdade da rede privada com subsídio do governo municipal e advinha socialmente das camadas médias intelectualizadas, as outras mulheres

delas são venezuelanas e fizeram faculdade em seu país de origem78. Todas as 20 entrevistadas que ingressaram em universidades públicas brasileiras79 fizeram um ou dois anos de curso pré-vestibular após o término do Ensino Médio80.

Segundo pude apreender das narrativas de várias das mulheres que entrevistei, uma peculiaridade bem conhecida dos(as) estudantes que prestam o vestibular para Medicina no estado de São Paulo é a tendência a que os(as) candidatos(as) que prestam vestibular em uma das universidades estaduais paulistas (UNESP, USP, UNICAMP, FAMERP, FAMEMA), também o façam para as outras. Essa tendência é tão difundida que os calendários dos vestibulares das universidades estaduais paulistas são feitos de forma a que a data de uma prova não conflite com a da outra. Além dessas universidades públicas estaduais ainda é comum que os(as) candidatos(as) também tentem uma vaga em uma universidade federal pelo Sisu e até mesmo em várias faculdades particulares (com bolsa do Prouni81, com financiamento FIES, ou contando apenas com o apoio de suas famílias). Como pode ser observado no quadro “Ingresso na faculdade” (que se encontra no Apêndice A, p. 372), todas as entrevistadas que fizeram faculdade no estado de São Paulo (vinte e uma, dentre as vinte e nove das entrevistadas) utilizaram-se dessa estratégia da multiplicidade de inscrições nos vestibulares para terem uma maior chance de ingresso na faculdade de Medicina.

pertenciam a famílias detentoras de elevado capital econômico e cultural, sendo que três delas eram filhas de pais e mães médicos e uma delas era filha de empresários. Ver no Apêndice A (p. 372) quadro sobre o ingresso na faculdade

78 Entrevistei duas cirurgiãs venezuelanas e uma colombiana que fizeram faculdade em seus países de origem

mas vieram fazer residência em Cirurgia Cardiovascular no Brasil. As três afirmaram que em seus países a disputa por uma vaga no curso de Medicina é muito acirrada. Vívian usou as seguintes palavras para explicar como é essa disputa: “Quase que impossível. Faculdade de Medicina... assim, três mil pessoas, duas mil pessoas... e a vaga para a faculdade... não entra. Medicina é bem, bem difícil. O maior número de pessoas concorre para Medicina. Mas as vagas são bem poucas”. As duas cirurgiãs venezuelanas que não fizeram curso pré-vestibular foram, também, aquelas, dentre todas as entrevistadas, que entraram na faculdade de Medicina com a menor idade (15 e 16 anos). Devido a legislação do país quanto às formas de ingresso no ensino superior e o excelente desempenho escolar que obtiveram durante toda a sua trajetória escolar ambas entraram na faculdade logo após o término do ensino médio. Vívian me explicou que na Venezuela há duas formas de se entrar em uma universidade pública para fazer Medicina (não existem faculdades de Medicina da rede privada). Uma das formas consiste em fazer uma prova a nível nacional, como é realizado o ENEM no Brasil. A outra forma, aberta apenas para aqueles estudantes que tenham cursado todos os anos de escolarização a nível primário e médio em um instituto público, é através da nota final do desempenho escolar do estudante em toda a sua trajetória escolar. Em uma escala de 0-20 essa nota precisa ser acima de 19. Vívian terminou a educação básica com honras e média geral acima de 19,50 e Jéssica obteve nota 19,80 na prova do exame nacional.

79 Embora tenham diferentes perfis de configuração, por serem gratuitas e serem consideradas de alta qualidade

acadêmica, as Instituições de Ensino Superior públicas (especialmente, as federais e as estaduais paulistas) são consideradas as mais prestigiosas do país (MARTINS, 2000).

80 Conforme pode ser observado no anexo D desta tese (p.386), que apresenta a porcentagem de alunos da USP e

da UNICAMP que fizeram matrícula no período entre 2013-2016, mais de 85% dos estudantes matriculados nessas duas universidades fizeram cursinho e aproximadamente 50% dos estudantes matriculados fizeram mais de dois anos de cursinho.

81 O Programa Universidade para Todos (Prouni) é uma política pública estabelecida em 2004 pelo Ministério da

Educação do Brasil que oferece bolsas de estudos, integrais e parciais (50%), em instituições particulares de educação superior, a estudantes brasileiros sem diploma de nível superior.

O diálogo a seguir, que estabeleci com a cirurgiã cardiovascular Raíssa, dá alguns detalhes dessa estratégia de entrada na faculdade de Medicina:

RE- Bom... então, aí... um ano de cursinho e aí você prestou nas particulares também. E aí o que que aconteceu?

RA- A primeira que saiu o resultado foi a PUCCAMP e eu passei super bem. Eu passei em 5º lugar, uma coisa assim. Eu saí da PUCCAMP tendo certeza de que eu tinha passado. Quando eu saí de XXX eu tinha um sonho enorme de fazer XXX82

porque XXX era estadual e eu podia morar em casa. Então, como dá menos de 30 km da minha cidade eu falei: "Puxa vida, poder morar em casa, fazer a faculdade onde meu pai fez". Meu pai falava muito que iria falecer cedo porque meu avô faleceu com 61 anos de morte súbita. Então eu queria ficar perto do meu pai e queria fazer a mesma faculdade que ele. Aquela coisa de veneração com o pai. Aí juntava tudo de bom. Eu fiz a prova e saí contente. Falei: "pai, deu pra passar". E minha mãe foi olhar e olhou errado. Ela foi olhar e olhou a classificação geral. Deu 111 da classificação geral. Ela falou: "É... Não deu". Tinha 60 vagas, não ia rodar tanto assim e eu pensei: “não deu”.

RE- E você tinha passado? RA- E eu tinha passado. RE- Quase perde a matrícula?

RA- Aí quando eu saí da prova da PUCCAMP eu falei para o meu pai: "Cara, eu fui muito bem nessa prova. Eu não só passei, mas eu passei muito bem". Ele: "Ah, não, filha... Vamos lá, prestar Bragança". Eu não queria prestar em Bragança. Ainda mais que eu fiz cursinho em Campinas, o povo falava muito mal de Bragança. O povo falava muito mal da PUCCAMP, apesar de ser ótima. Cursinho foca na UNICAMP. Por muito pouco eu não passei na UNICAMP. E o meu pai falou: "Vamos fazer Pouso Alegre". E eu falei: "Não quero fazer Pouso Alegre, pai". E assim: "Pai. Acredita em mim que pelo menos na PUCCAMP eu sei que eu passei". Aí ele me levou pra fazer prova lá. Daí eu fiz e a primeira resposta veio de Pouso Alegre mesmo. Mas eu fui mal-humorada fazer a matrícula. "Pai, não precisa fazer a matrícula porque eu passei na PUCCAMP". "Não. Vamos fazer a matrícula". Tanto que no caminho, quando a gente estava voltando de Pouso Alegre eu recebi um telefonema do meu cursinho dando a notícia que eu tinha passado na PUCCAMP. E aí eu falei: "Tá vendo, pai". Eu passei na PUCCAMP” E fui frequentar PUCCAMP. Frequentei a primeira semana, tomei uns trotes. De repente a minha mãe me liga e diz: "Raíssa, faz cara de triste porque eu tô indo aí te buscar porque você passou aqui em XXX [nome da cidade]. E tem que fazer a matrícula até amanhã” (fragmento da entrevista realizada pela pesquisadora com Raíssa, cirurgiã cardiovascular).

A estratégia de tentar o vestibular em múltiplas faculdades faz com que as listas de chamada para a matrícula no curso de Medicina tenham grande rotatividade83. Para exemplificar melhor essa estratégia transcrevo, a seguir, a conversa que tive com a residente em gastrocirurgia Aline sobre esse momento de sua trajetória:

R- Qual foi a tua reação, a primeira coisa que você fez quando ficou sabendo que tinha sido aprovada?

82 O nome da universidade foi omitido por acordo entre a pesquisadora e a estudante entrevistada, mas trata-se de

uma universidade pública de grande prestígio no Brasil. Essa estratégia de ocultar o nome da universidade e a cidade onde se localiza será utilizada em outras partes da tese.

83 Tome-se como exemplo a rotatividade da lista de convocação para a matrícula da Unicamp. No processo

seletivo do ano de 2016 foram feitas 9 chamadas de convocação para matrícula de todos os cursos. Na primeira chamada para a matrícula no curso de Medicina foram convocados 110 estudantes aprovados e, após a 9ª chamada, o último candidato convocado para a matrícula ocupava a 251ª posição (COMVEST, 2016).

A- Ah, eu lembro também. Foi bem interessante porque... R- Foi na primeira chamada?

A- Não. Eu sempre quis passar na "porcada". R- “Porcada”?

A- É. Na USP Pinheiros. A gente fala “Porcada”. Eu sempre quis passar lá. Aí eu prestei as provas. Eu nem fui pra segunda fase da Fuvest. Então, lá e na Santa Casa da USP Ribeirão já cortou. Então, já foi um baque. Aí, quando eu fui prestar a prova da XXX [nome da universidade] eu não conhecia nada de XXX [cidade onde fica a universidade]. Eu só prestei XXX porque falavam que era boa e era pública. Então, eu tinha que prestar. E eu também só queria fazer faculdade pública. Nada de particular. Tinha também essa neura. Aí eu prestei lá. A minha mãe lembra até hoje... e eu também. Porque eu fui pra prova da XXX bem assim, desencanada. Eu estava meio assim, desiludida. Eu queria FUVEST. Não sabia, não conhecia. Aí quando eu passei... foi assim [rindo], eu lembro até hoje, eu estava na depilação [rindo]. Meu pai ligou e falou: "Filha, tenho mais uma má notícia". Eu falei: “o que é que foi, pai”? E ele disse: "Então, você está em 300 na lista da XXX". "O que? [Aline fala com um ar de felicidade e admiração]. Pai, como assim? Eu vou passar". Porque na XXX era a maior concorrência, na época. Era 115 por vaga e tem 100 vagas, só que rodava bastante a lista. Eu falei: "pai, eu vou passar. Tenho certeza". Aí o meu pai ficou: "Será?" E eu já estava na lista do ABC para ser chamada. Então, quando eu fui chamada para XXX [nome da cidade] foi a maior festa. Só que aí, o meu pai falou: "Mas, será? XXX [nome da cidade]?" Ele não é médico, nem minha mãe. "Mesmo que seja boa, será que não é melhor você ficar aqui em São Paulo, na ABC?" Porque um dos filhos do amigo do meu pai, que é médico... o filho faz no ABC. Então meu pai ficou falando: "É melhor ficar em São Paulo". Aí eu falei: "Não, pai. Espera um pouquinho. É uma faculdade pública. Todo mundo fala bem dela". Eu entrei na faculdade... estava muito deslumbrada, tinha estudado muito (fragmento de entrevista realizada pela pesquisadora com Aline, R384 de cirurgia do

Aparelho Digestivo).

É importante destacar dois aspectos da fala de Aline que foram reincidentes nas narrativas de outras médicas que entrevistei e que, segundo Aline, são comuns entre os(as) estudantes que concorrem a uma vaga em um curso de Medicina no estado de São Paulo. O primeiro aspecto diz respeito ao fato de que, embora a família de Aline tivesse uma situação financeira muito confortável e pertencesse aos estratos sociais mais bem remunerados do Brasil, ela não queria fazer o curso de Medicina em uma faculdade particular. Como ela disse, “existe uma ‘neura’ entre os estudantes que fazem cursinho: querem ser aprovados em uma faculdade pública”. O segundo aspecto diz respeito à preferência pela USP Pinheiros (segundo Aline, especialmente para quem faz cursinho em São Paulo, a USP Pinheiros é tida como a primeira opção de ingresso85).

Além do status de curso de grande concorrência nos vestibulares a distinção atribuída ao curso de Medicina se deve também ao prestígio social da profissão médica e ao

84 A denominação R3 é utilizada no jargão de formação médica para se referir aos residentes do 3º ano, R2 para

os residentes do 2º ano e R1 para os residentes do 1º ano. Essa denominação também é usada para os residentes em estágios mais avançados (em algumas especialidades, como a Neurocirurgia, pode haver até R5 e R6).

85 Essa preferência das camadas sociais economicamente e culturalmente privilegiadas pelos cursos mais

imaginário popular que confere ao curso de Medicina o status86 de curso de elite (VARGAS, 2010a; 2010b).

Essa alta valorização do curso de Medicina, principalmente daqueles oferecidos pelas universidades públicas, faz aumentar, é claro, sua seletividade social. Assim como também discutido por Martins (2000), Setton (2002), Queiroz (2004), Guimarães (2007) e Vargas (2008, 2012 e 2015) ao tratarem, no contexto brasileiro, da relação existente entre a origem social e a seletividade econômica e racial no acesso aos cursos de elevado prestígio social, Bourdieu e Passeron (1973) explicam que as chances e probabilidades de acesso aos diferentes níveis e cursos não são iguais para os estudantes das diferentes camadas e grupos sociais. As desvantagens escolares inerentes às desigualdades sociais se manifestam por meio de restrições quanto à escolha das carreiras possíveis. Quanto menos favorecido o meio social de origem mais limitadas são as opções, que se mostram condicionadas e hierarquizadas em função da posição social (situação econômica, raça, gênero)87. Nesse quadro, o acesso aos cursos de maior prestígio tende a ser alcançado por estudantes provenientes dos estratos e grupos sociais já privilegiados88. Especificamente com relação ao curso de Medicina, os autores franceses apontam que a probabilidade de acesso é muito pequena para os estudantes de origem popular.

No Brasil, a faculdade de Medicina tem se configurado, desde sua origem, como um espaço condicionado e hierarquizado em função da origem socioeconômica, racial e de gênero dos seus estudantes, sendo frequentada predominantemente por homens brancos de

86 Ao estudar de forma relacional as diferenças de status entre os cursos de ensino superior e o acesso a

diferentes profissões, Vargas (2008) argumenta que a construção social do status de distinção dos cursos superiores que oferecem formação para as chamadas “profissões imperiais” precisa ser dimensionada não somente em função da dificuldade de ingresso, da excepcionalidade da admissão ou da aprovação de estudantes de camadas sociais economicamente privilegiadas em carreiras de prestígio. A construção social do prestígio e distinção de um curso superior não se esgota nessas variáveis. Segundo a autora, para se entender o círculo de influência que coloca esses cursos em uma posição de destaque é preciso que se leve em consideração também a dimensão de análise referente à preservação do status do monopólio profissional das carreiras de alto prestígio consolidado através da atuação de suas associações corporativas, que no caso da profissão médica no Brasil, seriam: o Conselho Federal de Medicina, os conselhos regionais de Medicina e as sociedades representativas das diferentes especialidades.

87 Sobre a combinação das desigualdades de gênero e raça no ensino superior no Brasil ver, dentre outros, os

trabalhos de Beltrão e Teixeira (2004), Queiroz (2008), Rosemberg e Andrade (2008), Barreto (2015).

88 Como forma de combate às desigualdades sociais que, historicamente privilegiaram o acesso à universidade

pública (e aos cursos de maior prestígio) aos estudantes provenientes dos estratos e grupos sociais já privilegiados, diferentes programas de ação afirmativa têm sido implementados nas universidades públicas brasileiras. Essas políticas têm como principal objetivo ampliar as oportunidades de negros e estudantes de escolas públicas de ingressarem nas universidades públicas brasileiras (inclusive em cursos de maior prestígio), oportunidades essas, que antes eram restritas ou inexistentes. Tais políticas têm sido apontadas pela literatura