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02 O DIÁRIO COMO UM PROCESSO DE DESLOCAMENTOS

2.2 A CONSTRUÇÃO DE TEMPORALIDADES

Outro ponto determinante para entender como o diário se constrói é a relação que se estabelece com o tempo e a forma como os registros constroem temporalidades. Nessa questão, é importante ter em conta o protagonismo do calendário como fator ontológico do diário e o quanto isso se torna essencial à própria construção narrativa dos registros.

O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na ordem e na desordem que se quiser, é submetido a uma cláusula aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário. Esse é o pacto que ele assina. O calendário é seu demônio, o inspirador, o compositor, o provocador e o vigilante. (BLANCHOT, 2005, p.270).

Ao ser demarcado pelo calendário, o diário estabelece uma ação que materializa o tempo e implica a integração desses registros à práxis da vida cotidiana do seu autor. O calendário “é o sinal da tensão de escrita que mora no diarista e é o motor das anotações cotidianas. O diário é uma história pessoal cuja forma mínima é a inscrição do desejo de escrever na sucessão os s” (BR U , 2006, p.114, trad. nossa).

Manter um diário é um ato que evidencia o caráter transitório do seu autor na sua relação com o tempo. É um registro demarcado pelo tempo, assim como também é um registro que ressignifica o tempo, ao construir temporalidades que inserem a objetividade do calendário na subjetividade do seu autor.

É nesse caráter transitório que o diário se constrói a partir de fragmentos. Mesmo diante da sua linearidade cronológica, o diário afirma-se diante da imprevisibilidade do dia seguinte, frente à impossibilidade de narrar algo que ainda não aconteceu, fator este que acentua um sentido fragmentário nos registros. Ao mesmo tempo em que o diário assume uma posição de expressar a subjetividade do autor sobre o que procura narrar, também é importante ressaltar que tanto a elaboração como a leitura de um diário lidam com um constante processo de estar à deriva. Afirmando o momento presente do autor, o diário constrói rastros de um passado pelo seu sentido acumulativo, mas que, ao mesmo tempo, defronta-se continuamente com a questão do porvir.

Ter em conta o estabelecimento do calendário não somente como ordenamento cronológico, mas também como uma condição que delimita a própria narrativa acaba fazendo com que o diário assuma um sentido de integração à práxis da vida cotidiana do seu autor. Este fator é essencial, na medida em que o particulariza frente às demais formas de elaboração do eu. Ao evidenciar o seu caráter fragmentário e de simultaneidade entre viver e

registrar o vivido, o diário possibilita identificar as inconstâncias que se relacionam as próprias vivências cotidianas do seu autor. A ordem do diário está intimamente ligada à ideia de processo, à construção de uma autorrepresentação que não assume um caráter uniforme e orgânico.

O diário é um texto fragmentário, no qual cada anotação permanece aberta sobre as outras, nunca se fecha sobre sua própria significação. No entanto, não é um texto produzido por junção de anotações esparsas (como uma compilação de fragmentos), mas por acumulação cronológica ordenada. (BRAUD, 2006, p.181, tradução nossa)

Outro fator que demarca o sentido ontológico do calendário na elaboração do diário é justamente a distinção que muitos estudos procuram realizar entre diário e autobiografia. Mesmo que o diário se constitua enquanto um registro de cunho autobiográfico, isso não o torna necessariamente uma autobiografia, se colocarmos em perspectiva a questão dos gêneros. Como afirma Duhart:

Na autobiografia, o tempo só tem uma forma: o passado, e é com esse tempo que o sujeito se relaciona. Por outro lado, no diário, o tempo é multiforme, uma vez que há referências ao presente, ao passado e ao futuro. O tempo não fica enclausurado já que uma das características do diário é o fluxo da subjetividade em movimento. Memórias e autobiografia supõem um relato retrospectivo em um plano de conjunto, o que resulta, de certo modo, em uma escritura panorâmica [...] A autobiografia requer do sujeito uma subtração de suas circunstâncias imediatas, e o tempo da escrita não coincide com a sua atualidade, sendo fiel ao plano total da biografia. Por sua vez, no diário íntimo, o sujeito expressa seus pensamentos e sentimentos de acordo com as vicissitudes de sua cotidianidade. (DUHART, 2009, p. 62, tradução nossa)

Enquanto na autobiografia afirma-se uma estrutura panorâmica que recorda uma trajetória já vivida, no diário afirma-se o fragmento, um recorte que se sobrepõe a uma ideia de totalidade, uma recordação embebida pelo

agora da sua cotidianidade. Se na autobiografia evidencia-se um fator

retrospectivo, um olhar que se volta para o passado e que revela uma distância temporal mais ampla entre os acontecimentos e o seu processo de rememoração, nos registros de um diário o ato de rememorar revela muito mais sobre o momento presente do autor do que propriamente sobre o seu passado. “A escrita de si combina essa dupla exigência: relatar o presente

(na obsessão ou na negação da morte) e constituir com esses instantes su ss vos um h st r ujo m n o stá pro r m o” (BRAUD, 2006, p.140, trad. nossa).

Existe um sentido de envolver o diário na imersão do tempo, em registros que podem ser realizados ao longo de anos, acompanhando o autor na própria construção da sua trajetória pessoal e fazendo com que as fronteiras entre viver e elaborar um diário se tornem ainda mais difusas. Como afirma Girard, “um diário íntimo se estende necessariamente sobre um período bastante longo de tempo. Não é possível precisar ainda mais a ur o ss p r o o” (GIRARD, 1986, p.04, trad. nossa), questão essa que remete justamente aos longos períodos em que Mekas registrou (e acumulou) os seus diários, os quais, posteriormente, tornaram-se fundamentais para a construção da sua obra.

É justamente nesse fluxo contínuo de registros, que acompanham o dia a dia do autor, que o diário encontra-se propenso aos movimentos na subjetividade de quem o escreve. O diário é uma forma narrativa sujeita não somente a registrar um sentido reiterativo que há no cotidiano do seu autor, mas também a potencializar as contradições e mudanças de perspectiva que o autor assume ao longo do tempo. O diário revela tanto o sentido progressivo do tempo, como um sentido descontínuo e inorgânico que o autor assume na sua relação com o tempo.

Tendo em conta que essa forma narrativa caracteriza-se como um registro que acompanha a trajetória do seu autor, também entra em questão se o diário possui ou não um sentido de obra. Existe uma recorrência nos estudos sobre o tema em afirmar que o diário pode vir a se constituir como obra, mas isso não necessariamente o condiciona como tal durante o seu processo de elaboração. Philippe Lejeune, por exemplo, traz um pos on m nto qu “o ár o n o é, m su or m ss n lm nt , uma obra: é uma prática, e sua finalid é v o s u utor” (2015, p. 11), n m m qu “o o j t vo pr m ro o ár o n o é pro u o to sobre o leitor, mas o acúmulo de rastros e o acompanhamento da vida de seu autor. É da ordem o rqu vo, n o o r ” (2015, p.14-15). Alain Girard segue a mesma linha de Lejeune, ao partir do entendimento de que “o diário pára quando a obra começa” (1965, p.107, tradução nossa).

Um diário não é uma obra. Ele não tem as características essenciais de uma. Ele não tem nem começo nem fim; ele obedece apenas à regra das circunstâncias ou ao humor de seu autor. Não há nisso nada de grave, pois essa é a lei do gênero: o autor pode colocar ali, como ele quiser, o que ele quiser e na ordem em que quiser. Uma obra, ao contrário, é o fruto de um certo encadeamento e de uma longa reflexão, ela obedece a uma lógica interna; cada pedaço que a compõe é necessário. Romance, poema, estátua ou monumento, ela se impõe em seu conjunto, como em todas suas partes. O diário vai de um passo negligente e não teme os redizeres, uma página ou várias podem ser suprimidas sem alterar o conjunto. Embora achemos charmoso esses meandros infinitos, todo diário é de alguma maneira longo demais. Uma obra é lida de uma só vez, a leitura de um diário é necessariamente interrompida. (GIRARD, 1965, p. 105, tradução nossa)

Salvo as premissas levantadas até aqui (a inscrição do eu, a demarcação do calendário, a integração do registro à práxis da vida cotidiana do autor, a demarcação do espaço e a escolha do dispositivo técnico), não existe uma fórmula para se realizar um diário. Cada registro constrói-se de acordo com o modo como o autor procura ir integrando essa prática à práxis da sua vida cotidiana. Desde relatos de viagem, passando por escritas sobre o processo de criação de uma obra, até situações mais extremas, como descrever os dramas vividos no front de uma guerra ou num processo de exílio – entre outras circunstâncias diversas –, o que o diário evidencia é um caminho pelo qual o eu é atravessado pelo tempo.

O diário aprofunda assim uma busca pelo inacabado que constitui o fluxo contínuo da vida do seu autor. A partir do seu sentido fragmentário e acumulativo, o diário não se afirma pelo processo de reescritura. O diário encontra-se mais precisamente na ordem de um material bruto, diante da necessidade de contemplar o momento presente. Manter um diário não aponta a necessidade de uma estrutura que procure efeitos sobre um leitor/espectador ou uma costura narrativa que harmonize os intervalos entre as notas.

Por outro lado, entretanto, faz-se necessário observar: quais seriam as fronteiras que separam uma obra de uma prática, um rastro do cotidiano para uma intenção literária? Ao se ter em conta que, desde o século XIX, existe

uma recorrência de diários íntimos sendo publicados em forma de livro17, até que ponto podemos identificar se um autor escreve o seu diário pensando em restringi-lo a uma esfera íntima ou escreve visando a uma produção de efeitos sobre o leitor, pensando numa futura publicação? Por trás dessas indeterminações encontram-se caminhos para não reduzir o diário somente a um simples registro de atividades cotidianas, mas a uma narrativa que potencializa a subjetividade do seu autor e a inscrição do tempo nesse processo.