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4 O FILME-DIÁRIO

4.3 PARTICULARIDADES DO FILME-DIÁRIO

Antes de analisar especificamente os filmes-diário Walden e

Reminiscências de uma viagem para a Lituânia, na segunda parte deste

capítulo, serão apontados aqui alguns fatores que particularizam a questão do filme-diário na obra de Mekas. Será levado em conta não somente o contexto sócio-histórico, mas também as questões técnicas e narrativas que determinam a forma como Mekas concebe os seus filmes-diário. Esta parte do capítulo está dividida em duas questões: a forma como Mekas constrói

38 Parto aqui do entendimento de que single frame shot s o “tom s om um s oto r m ,

ou com velocidades variadas, de forma que o fotograma seja evidenciado durante a proj o” (J m s, 2013, p.180),

uma concepção poética a partir das imagens que registra, e a forma como ele procura ressignificar essas imagens através do processo de montagem.

4.3.1 A imagem como lampejos de beleza e felicidade

Para entender essa alteração de perspectiva na forma como Mekas concebeu os seus registros fílmicos através do contexto relacionado ao cinema de vanguarda norte-americano, parto, aqui, de um termo que percorre a sua obra ao longo dos anos e que delimita uma concepção poética:

lampejos. Nesse termo, habita não somente uma ideia de brevidade, de

construção do efêmero, de afirmação do fragmento, mas, sobretudo, de um sentido poético que se confere a um instante de revelação, de epifania39. O lampejo é um vislumbre que se produz na subjetividade do seu autor frente a uma determinada circunstância que o leva a um estado de encantamento. No lampejo, a profundidade está contida na superfície, na primeira impressão.

Mekas procura atrelar esse termo a um ideal de beleza e felicidade. É o que ocorre, por exemplo, num fragmento do ensaio Notas sobre alguns

filmes novos e a felicidade, on l ut l z xpr ss o “l mp jos

l ” p r s r r r l um s p ntur s pr m t v s os sé ulos XV X X, on “há l r s o s s omo l s são, como elas foram; de um campo calmo, com um caminho levando ao longe, uma flor na beira da str , ou um árvor , um ros r l t lv z” (M K S, 2013, p.49).

M k s r l on os “l mp jos l ” ss s p nturas primitivas aos filmes pertencentes ao contexto do cinema de vanguarda norte- m r no nos nos 1960, qu “ m „ l z s‟ m s h m r m „ lm s s ros‟” (M K S, 2013, p.45) qu pro ur m mostr r “ l um s p sso s sentadas, caminhando, pulando, dormindo, ou rindo, fazendo coisas inúteis, desimportant s, s m „ nt n õ s‟, s m „m ns ns‟” ( m, m.).

Ao relacionar essas pinturas primitivas aos filmes que cita no início do texto, Mekas busca conexões entre distintas formas de arte que se

39

Resgato aqui um fragmento do poema Transcrição de música de órgão, em que Allen ns r r l on qu st o o l mp jo um mom nto r v l o: “T v um l mp jo claridade, vi o s nt m nto no or o s o s s, s p r o j r m hor n o” ( NSB R , 2016,p.52)

construíram em distintos contextos, mas que se relacionam através de um mesmo ponto, os s us “l mp jos l ”. m m s as manifestações artísticas, ele procura um sentido poético não somente tr vés s “ o s s omo l s s o”, m ns r l on s o “ mpo lmo”, “um lor n beira str ”, m s so r tudo na forma como essas imagens são concebidas nas obras citadas por Mekas.

Um fragmento contido no artigo Filme-Diário elucida bem de que forma Mekas concebe os registros das imagens na sua obra e de que forma a questão do lampejo também se insere nessa perspectiva:

A árvore na rua é realidade. Mas aqui, eu a destaquei, eu eliminei toda a outra realidade que a cerca, e escolhi apenas aquela árvore específica. E a filmei. E se agora começo a examinar o que filmei, o que coletei, tenho uma coleção de muitos desses detalhes destacados, e toda vez que eles apareceram, eu não os busquei, eles me escolheram, e reagi a eles por razões muito pessoais, e é por isso que todos eles se conectam, para mim, por uma ou outra razão. Todos eles significam algo para mim, mesmo se não entendo por quê. (MEKAS, 2013, p.135)

Mekas traz nesse relato o que P. Adams Sitney identifica como os três estágios de construção das imagens nos registros do cineast : “o s rv o, fragment o r v l o” (S TNEY, 2008, p.92). A construção de um “l mp jo l z l ” ntifica-se justamente nesse encontro de Mekas com a árvore (observação), que acaba gerando um desprendimento da árvore do seu contexto originário (fragmentação), para fazer parte de um processo posterior de montagem que relaciona essa árvore à própria construção da subjetividade de Mekas (revelação). O lampejo afirma-se, assim, em três momentos: o extrafílmico, a relação de Mekas com o real; o registro fílmico, que fragmenta o objeto e o dissocia do real; a montagem, que ressignifica o objeto registrado e que coloca essa imagem em relação com as demais que compõem o filme-diário.

A questão do lampejo potencializa, assim, o sentido poético40 de sua concepção poética. É um termo que evidencia um desprendimento da sua

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Quando me refiro ao termo poético, procuro identificar essa característica com determinados filmes que assumem uma concepção poética em que “o l r smo é um t tu existencial, uma maneira poética de estar no mundo, filmes que são eles próprios experiências, tanto para os personagens e o cineasta quanto para o espectador, filmes, n m, qu s st n m o qu s sp r l s. “Poét ” r m t qu st m ntos m

busca inicial pela imagem como testemunho histórico ou pela intenção em r l z r lm s “ v r ”, para encontrar nessa forma de conceber as imagens, um caminho que afirma a sua subjetividade e integra de outra forma os registros à práxis da sua vida cotidiana.

Como no início dos anos 60 Mekas abandonou gradualmente sua esperança de um cinema narrativo reformado e moldado a partir das novas ondas europeias, o trabalho de filmagem amador adquiriu para ele um novo status. Os tipos de infrações associados a isto passaram a ser reconhecidos como um vocabulário plenamente articulado com impressões éticas intrínsecas: vislumbres da vida cotidiana se tornaram mais importantes do que õ s n rr t v r n nt ; um m m “l r ” r m ntár , insubstancial e imperfeita era preferida em lugar de uma imagem realista, completa e consciente da própria presença. (JAMES, 2013, p.179)

tr vés su us por “l mp jos l l z ”, M k s constrói uma premissa que irá atravessar as imagens do seu diário fílmico e a sua obra a partir de Walden. É no caráter fragmentário e breve das imagens, que ele encontra outra forma para conceber “p qu nos s m ntos imagens arrancados ao fluxo da vida, celebrações efêmeras de gestos, mov m ntos s ns o” (GONÇALVES, 2014, p.14). Nas imagens que constituem filmes como Walden e Reminiscências de uma viagem para a

Lituânia, é preciso ter em conta que “estamos diante de outra abordagem do

mundo: uma postura que ensaia novos processos de subjetivação, outros modos de ser e de estar que se conectam a experiências cujo intuito não é m s om n r ou nt rpr t r o mun o” (Idem, ibidem.).

Quando Mekas mostra a si mesmo tomando café e dando migalhas de pão para um gato em Walden, ou quando decide mostrar sua mãe elaborando uma torta de batatas no jardim de casa, em Reminiscências de

uma viagem para a Lituânia, não se está lidando com imagens que se

restringem a sua banalidade, mas imagens que, justamente na sua banalidade, assumem uma transcendência. A premissa da imagem como lampejo instaura-se à medida que Mekas inscreve a sua subjetividade nessas imagens que fazem parte da sua vida cotidiana.

relação a normas narrativas ou genéricas que não são explicadas, mas percebidas como objetivas. O papel do espectador é então acrescido já que, como qualquer leitor de poesia, ele deve participar plenamente da elaboração de um sentido que não é dado de ime to”. (COHEN; REVERSEAU, Qu‟est-ce qui est „poétique‟ ?, 2013, p.177, tradução nossa)

É dentro dessa perspectiva que pouco ou nada se sabe sobre quem são as pessoas ou os acontecimentos que Mekas mostra nos seus diários fílmicos. Salvo em breves cartelas sobre a imagem, que delimitam datas, locais e pessoas, ou quando ele faz o uso reflexivo da voice-over, a tendência no uso dessas imagens é muito mais por produzir um caráter mais poético e menos factual, mais lírico e menos autobiográfico, mais fragmentário e menos narrativo. Os seus filmes-diário se constroem no paradoxo de que mostram imagens da sua intimidade, mas, ao mesmo tempo, “s mos pou o ou qu s n os mov m ntos qu r m su int m , s u s m nto ou v os s us lhos” (MOUR O, 2013, p.14).

Mesmo quando existem essas breves informações através das cartelas, ainda assim não estabelecem uma melhor contextualização além de informar quem, onde e quando foram registradas as imagens. É o que ocorre, por exemplo, numa sequência de Walden, na qual são mostradas imagens de um encontro de Mekas com o cineasta Carl Theodor Dreyer (figura 22). Pouco se sabe como foi esse encontro e o que ocorreu nele além das breves imagens que mostram em distintos ângulos Dreyer sentado em frente a uma janela, com a mão apoiada sobre a mesa e, por momentos, olhando diretamente a câmera. Sem diálogo algum, sem o uso da voice over, sem uma explicação sequer sobre quem é Dreyer, o que as imagens revelam são “l mp jos l ” r os p lo s u n ontro om o n st su o.

Em outra sequência de Walden, Mekas mostra um incêndio ocorrendo em pleno centro de Nova York, na 87th Street (figura 23), mas o filme não contextualiza as causas e consequências desse acontecimento. Em imagens como essas, Mekas constrói uma perspectiva que se desprende da necessidade em ter que explicar o uso dessas imagens.

Figuras 22 e 23: frames de Walden (Mekas, 1969)

Trata-se de devires, mais do que histórias, de um conjunto de imagens que aparecem como descrições puras, que emergem como potências sensoriais e afetivas, fora de um finalismo ou de um esquema sensório-motor. Trata-se de um cinema de vidência, uma prática audiovisual que acredita na constituição de um novo olhar sobre o mundo – um olhar que se propõe mais livre, poético, sensorial. (GONÇALVES, 2014, p.17)

Só que, por outro lado, é preciso ter em conta que o sentido de beleza e felicidade contido nos lampejos também têm um sentido subliminar que precede tais registros. Um lampejo inevitavelmente se constrói através de um r l o lét om o s u oposto. “ omp ns o l z t o intensa é o esquecimento das agonias pregressas; beleza, para Mekas, redime, ou ao menos ofusca nossa visão Qu ” (S TN Y, 2013, p. 226). Por trás de uma busca pela beleza e pela felicidade, também existe um contexto de exílio que remete ao contraponto de perda e tristeza. Mekas busca na premissa dos lampejos, um contraponto a eloquência da sua condição h st r . “ ên s n r v ss s mom ntos n o p n s descreve seu modo característico de filmar, mas também sugere que os brilhos de beleza e felicidade se destacam contra um pano de fundo de n úst prolon ” (S TN Y, 2013, p.225).

É dentro dessa perspectiva que Mekas constrói os seus filmes-diário. A partir de títulos como Ao caminhar entrevi lampejos de beleza (As I was

Moving Ahead..., 2000), ou intertítulos como o que ele chama de “os 100

v slum r s L tuân ”, o mostr r m ns o s u retorno a Lituânia em

Reminiscências de uma viagem para a Lituânia, a questão do lampejo

através de uma outra perspectiva, mas sobretudo, por demarcar uma concepção poética na sua obra.

4.3.2 A montagem como rememoração

Como já foi analisado na primeira parte deste capítulo, existe na essência de um filme-diário, a busca pela retomada e confrontação do autor diante dos seus registos fílmicos. Se no seu diário fílmico, Mekas buscava reagir ao instante, ao momento em que assumia a decisão em filmar determinado acontecimento, os seus filmes-diário se constroem como uma reação a estes registros fílmicos, fazendo do reencontro com essas imagens, um exercício de rememoração e deslocamentos. N su ssên , “o filme- diário confronta as ruínas de um tempo agora irrecuper v lm nt p r o” (JAMES, 2013, p.189).

É diante desse caráter de ressignificação das imagens que também se acentua o caráter retórico nos filmes de Mekas. No filme-diário se estabelece o protagonismo na relação entre a palavra e a imagem, entre a reflexão sobre o ato de ressignificar os seus arquivos fílmicos. Através das reflexões realizadas com o uso da voice over – pelo próprio cineasta, em forma extradiegética –, Mekas costura sentidos, ressignifica fragmentos e faz da montagem um ato de confrontar o tempo e construir temporalidades.

Num primeiro momento, é possível relacionar as reflexões ditas em

voice over nos seus filmes-diário com as notas do seu diário escrito e

publicado em forma de livro. No entanto, mesmo que Mekas utilize fragmentos do seu diário escrito nos seus filmes-diário – como foi possível identificar no capítulo anterior -, é necessário observar que ambas formas se constroem a partir de diferentes perspectivas. Ao não existir a necessidade em realizar descrições sobre pessoas, lugares ou acontecimentos vividos além do que já é identificado no uso das cartelas sobre a imagem, as reflexões ditas em voice over são mais um processo de rememoração sobre um material fílmico pré-existente, do que propriamente uma inserção dessas reflexões à práxis da sua vida, como ocorre no seu diário escrito.

Mekas pensa esse caráter discursivo dos filmes-diário não como uma prática relacionada a sua vida cotidiana, mas como uma forma narrativa que

produz determinadas intenções na elaboração dos seus filmes-diário. Essa perspectiva traz não somente um desprendimento de um caráter descritivo, mas potencializa o caráter reflexivo construído pelo distanciamento temporal sobre os acontecimentos vividos.

Desde a intenção de repetir ideias ou expressões, assim como construir distintas entonações e ritmos visando a uma pontuação sobre o que busca abordar, o cineasta assume tonalidades na sua locução que também fazem das suas reflexões um ato performático. É possível identificar não somente um autor que reflete sobre as imagens e os acontecimentos que permearam a sua vida, mas também a um narrador que costura distintas instâncias no seu processo de construção do eu. “Rica em valores performáticos, a voz de Mekas funciona como um instrumento de grande poder lírico – ponderada, mus l m su s v r õ s, h s t o r p t o” (RENOV, 1992, p.231, tradução nossa).

É diante das reflexões contidas no uso da voice over – assim como outros recursos narrativos, como é o caso da divisão dos filmes por capítulos, o uso da trilha sonora, a sobreimpressão de imagens ou a inserção de cartelas sobre a imagem –, que Mekas fez dos seus filmes-diário uma

tecedura de sentidos diante de imagens tão diversas entre si. Se o seu diário

fílmico assumia uma concentração temporal (a busca pelo imediatismo em registrar determinado acontecimento), o filme-diário se constrói por diferentes camadas temporais geradas no seu processo de montagem. A montagem dos filmes de Mekas é tanto um reencontro com as imagens que registrou como uma reescritura da sua própria memória.

Por meio dessas camadas temporais, é possível identificar como a demarcação temporal também é responsável por estabelecer escolhas narrativas. “ s circunstâncias que envolvem esta reescrita são elas próprias sujeitas ao tempo, às mudanças da ideia que Mekas faz do formato de sua pr pr v omo st po r s r xpr ss omo lm ” (J M S, 2013, p.191). É justamente nesse processo de rememoração com as imagens, que o processo de montagem imprime diferentes perspectivas sobre a construção do eu nos seus filmes-diário.

Conforme varia o período entre o passado e o presente no qual seus restos são contemplados, variam também os termos do diálogo possível entre cinegrafista e editor. Quanto maior a distância, maior a sensação de perda e maior a sensação de irrecuperabilidade do tempo, ao passo que, quanto mais próxima for a montagem da filmagem, menor é a impressão da incidência dos flagelos do tempo. Assim sendo, as imagens de Walden, recentemente registradas no momento da sua montagem, apresentam questões inteiramente diferentes para o Mekas- montador do que as imagens do fim da década de 40 de Lost Lost Lost, que só foram montadas 30 anos após terem sido registradas. (JAMES, 2013, p.191)

Mekas fez dos seus filmes-diário um processo que procura refletir sobre a construção do tempo, tanto na sua própria materialidade (o fotograma como a retenção do tempo), como na elaboração de temporalidades através da subjetividade do autor. Os seus filmes-diário revelam um caminho para pensar as implicações que a passagem do tempo assume na construção do

eu.

Nesse sentido, é possível identificar duas tendências nos filmes-diário de Mekas:

- filmes-diário em que a distância cronológica entre o registro do diário fílmico e o processo de montagem do filme é mais próximo. É o que ocorre, por exemplo, com Walden (imagens registradas entre os anos de 1964 a 1968, montagem entre 1968 a 1969), Reminiscências de uma viagem para a

Lituânia (registros que pertencem especificamente aos anos de 1950, 1952,

1957 e 1971, montagem realizada em 1971-1972).

- filmes-diário em que a distância cronológica entre o registro do diário fílmico e o processo de montagem do filme é maior. É o que ocorre, por exemplo, com Lost Lost Lost (com imagens registradas entre os anos de 1949 a 1962 e cuja montagem e finalização foi realizada em 1976) e As I Was Moving

Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses Of Beauty (com imagens

registradas entre os anos de 1973 a 1982 e o seu processo de montagem e finalização tendo ocorrido em 2000).

Para entender melhor essas questões, serão analisados aqui Walden –

Diaries, Notes and Sketches e Reminiscências de uma viagem para a Lituânia. Essa escolha parte do ponto de que ambas obras trazem diferentes

perspectivas para analisar a trajetória cinematográfica e autobiográfica do autor. Walden é a afirmação de uma concepção poética, de preceitos e

escolhas narrativas que afirmam um caminho na sua obra; Reminiscências é não somente um retorno ao seu país de origem 25 depois, mas também um encontro com as suas memórias e com as escolhas narrativas que assume na inscrição do tempo dentro desse processo.