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DIÁRIO FÍLMICO E FILME-DIÁRIO: O DESLOCAMENTO DO PRIVADO PARA O PÚBLICO

4 O FILME-DIÁRIO

4.1 DIÁRIO FÍLMICO E FILME-DIÁRIO: O DESLOCAMENTO DO PRIVADO PARA O PÚBLICO

Assim como foi analisado na parte inicial do capítulo anterior – as implicações que se constroem quando um diário é publicado em forma de livro –, o mesmo ocorre com a questão do diário no âmbito cinematográfico. É preciso entender a diferença entre os registros fílmicos que o autor realiza como uma prática integrada à práxis da sua vida cotidiana (e que se restringem a sua esfera privada) em relação ao desejo do autor em utilizar esses mesmos registros para a realização de filmes que se deslocam para a esfera pública.

Uma perspectiva importante para assumir como ponto de partida sobre essa questão é o artigo Diário em filme/ Filme-diário: prática e produto em

Walden, de Jonas Mekas, cujo autor, David E. James, procurou estabelecer

uma distinção entre o que ele denomina como diário em filme (film diary) e

filme-diário (diary film)30.

O diário em filme inaugurou funções para o aparato que recusaram radicalmente tanto o uso industrial quanto o de vanguarda, com as extravagâncias, deficiências e contradições do novo (não) gênero desafiando as normas hegemônicas do suporte numa nova prática privada do cinema que integrou à práxis da vida. O filme-diário devolveu tal prática privada a um contexto público e à produção de um produto, uma obra de arte esteticamente autônoma. (JAMES, 2013, p.168)

James identifica o diário em filme como os registros fílmicos que Mekas realizou de forma integrada à práxis da sua vida e que – pelo menos num primeiro momento – não foram concebidos para virem a se tornar um filme, mas uma prática que recusou tanto um uso comercial como vanguardista sobre esses arquivos. O diário em filme constitui-se, assim, num

30

Assim se encontra a tradução de ambos os termos do original em inglês para o português, como é possível comprovar no livro MOURÃO, P. (org.). Jonas Mekas. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil; Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária – USP, 2013, p.165-205, e na versão original em JAMES, David. To free the cinema: Jonas Mekas and the New York Underground. Princeton, New Jersey – EUA: Princeton University Press, 1992. p.145-179.

registro audiovisual de fragmentos da vida íntima e cotidiana do autor, os quais não revelam um sentido de obra, mas um fluxo contínuo de imagens inseridas na sua esfera privada.

É diante dessas questões relacionadas ao diário em filme que James procura distinguir o que Mekas veio a realizar posteriormente com essas imagens. O filme-diário apresenta-se como a realização de um filme que assume um processo de retomada desses diários fílmicos, propondo-se a “ volv r t l prát pr v um ont xto pú l o”. No ilme-diário, constrói- se essencialmente um sentido de obra, fazendo-se do deslocamento da esfera privada para a pública uma busca por ressignificar os registros do seu diário fílmico e reconstruí-los narrativamente em forma de relato.

Um filme-diário se encontra numa economia de filmes, economia esta que privilegia o artefato completo como um todo, o momento da projeção, o público espectador e, de uma forma ou de outra, o valor de troca. Ao trazer suas inovações do primeiro aspecto para o segundo, o projeto antimodernista de Mekas passou a existir dentro das condições sociais do cinema modernista de vanguarda. As tensões entre seu diário em filme e os filmes-diário subsequentemente montados por ele a partir do mesmo material – e cada um deles deve ser considerado um texto individual com propriedades formais específicas situadas entre as atividades sociais que o produzem e as relações sociais igualmente específicas que são postas em movimento por tal texto – são encontradas na intervenção dele no cinema. (JAMES, 2013, p.168) Essa diferenciação realizada por James é importante já que traz um primeiro referencial para se analisar as especificidades contidas no processo de elaboração diarístico na obra cinematográfica de Mekas. O diário em filme afirma-se tanto na ideia de reagir com a câmera a um momento presente vivido pelo autor, como também na ideia de fragmento, de uma nota fílmica que procura captar o instante. O diário fílmico basta-se a si mesmo, pois pertence ao âmbito privado do autor (à sua integração com a práxis da vida de Mekas), fator este que não cria uma necessidade causal ou narrativa na relação entre os registros. O diário em filme não está sendo concebido enquanto um filme, mas como uma prática fílmica.

Já os filmes-diário, mesmo incorporando o caráter fragmentário e inorgânico que contém cada registro do diário fílmico, ainda assim constrói um sentido de unidade, à medida que estabelece uma estrutura narrativa que

“ mol ur ” ss v rs r stros p r , assim, poder concebê-lo enquanto filme. Mesmo que os seus filmes-diário não assumam uma estrutura clássica de início, meio e fim, de enredos ou desenlaces, de clímax ou suspenses, Mekas concebe-os tanto por capítulos, como por delimitações temporais e por escolhas sobre quais tipos de registros fílmicos pretende utilizar em cada um. Esses fatores acabam estabelecendo procedimentos narrativos que fazem com que as imagens não pertençam ao acaso.

Um filme-diário é antes de tudo um filme, na medida em que acaba estabelecendo um recorte temporal sobre os arquivos utilizados e uma unidade narrativa gerada no protagonismo da montagem. Ao contrário do

diário em filme, que se constrói pelo registro fílmico, o filme-diário faz da

montagem o seu tour de force, construindo, nos reencontros e rememorações com os registros fílmicos, uma afirmação do processo de teceduras na sua obra. Essa distinção traz, assim, uma perspectiva para se pensar a importância das imagens desde a sua origem, antes mesmo de serem concebidas por Mekas como filmes-diário.

Essa questão, entretanto, também se torna mais problemática, uma vez que Mekas não restringiu o seu diário fílmico ao uso doméstico ou somente à ideia de diário enquanto prática. A diferença entre o diário em

filme e o filme-diário revela uma distinção bastante clara enquanto conceito,

mas que muitas vezes se mostra frágil e relativa na sua obra. Mekas comenta como a relação entre ambas formas tornaram-se complementares:

Por volta de 1961 ou 1962, vi pela primeira vez todo o material que tinha coletado durante todo aquele tempo. [...] Enquanto estudava esse material e pensava sobre ele, tornei-me consciente da forma de um filme-diário e, é claro, isso começou a afetar minha maneira de filmar, meu estilo. E em certo sentido isso me ajudou a ter paz de espír to. u ss p r m m m smo: “B m, mu to m – se não tenho tempo para dedicar seis ou sete meses à produção de um filme, não vou me abalar; irei filmar notas curtas, dia a dia, todos os s”. (MEKAS, 2013, p.132)

Ao ter consciência da perspectiva do filme-diário enquanto forma e de que isso afetou a sua maneira de filmar, permanece aqui a questão sobre o quanto os registros do diário fílmico de Mekas também começaram a ser pensados frente a um futuro processo de montagem. Assim como ele fez seus filmes-diário a partir das imagens do seu diário fílmico, as imagens

registradas também podem assumir uma perspectiva de serem pensadas para a elaboração da sua obra. Ao mesmo tempo em que é necessário entender as particularidades em ambas formas de Mekas proceder com os seus registros, também é necessário pensar sobre um sentido de complementaridade que existe nessa relação.