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Construção diacrítica da noção de grupo: milieu social e societé

CAPÍTULO 2 UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO E CONCEITUAÇÃO

2. A noção de grupo

2.1 Construção diacrítica da noção de grupo: milieu social e societé

Há duas noções relativas a estados coletivos que frequentemente podem ser confundidas com a noção de grupo nos textos sobre memória de Halbwachs: milieu

social e societé. Diferenciá-las é o primeiro passo no delineamento de um conceito

de grupo. As aparições das três noções estão esparsas em sua obra, excedendo os livros relativos à memória. Assim é possível encontrá-las em Morphologie Sociale (1938) e Conscience individuelle et esprit collectif (1939). Em uma leitura inicial dos textos, a única certeza que podemos ter é que os termos não são intercambiáveis, pois aparecem lado a lado de maneira distinta:

[...] para que certas recordações incertas e incompletas reapareçam, é necessário que a sociedade onde se encontra [o indivíduo] no momento presente, mostre-lhe, pelo menos, imagens que reconstituam o grupo e o milieu de onde ele [indivíduo] foi arrancado (Halbwachs, 1994 [1925], p.VI).

Comecemos por milieu social. De acordo com a citação acima, é possível notar que milieu se refere a um espaço de onde o indivíduo pode ser arrancado . Em outras passagens, podemos observar que o milieu social não é apenas um meio social qualquer, mas, sim, um ambiente social com certa delimitação espacial.

Basta que, às vezes, mudemos de lugar, de profissão, que passemos de uma família a outra, que algum grande evento como uma guerra ou uma revolução transforme profundamente o milieu social que nos rodeia para que um período inteiro de nosso passado não nos deixe mais do que um pequeno número de recordações (Halbwachs, 1946 [1925], p. 21).

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Miilieu social32 parece ser um entorno que circunda o indivíduo – é o milieu

que nos envolve (Halbwachs, 1939, p.4)33. Definir milieu como ambiente seria uma

alternativa adequada, dado que sua tradução para o inglês é environment, que proveniente do francês significa: En – Entorno; Viron – variação do verbo virar. É, portanto, um ambiente espacial socialmente ordenado, que circunda um dado indivíduo ou até mesmo um grupo, onde se estabelecem relações materiais e sociais quaisquer. Em relação à memória, o milieu não tem capacidade per se de produzir conteúdo mnemônicos, em relação ao conhecimento o milieu também é incapaz de produzir per se conteúdos quaisquer. Aquilo que tem capacidade de produzir memórias ou qualquer conteúdo comum são, a princípio, ou os grupos ou os indivíduos destes grupos que podem fazer parte do milieu de um indivíduo ou de um grupo em dado lugar e momento. Há, portanto, uma diferença de natureza entre ambos, pois o milieu social é um termo relacional e que não possui agência, sua própria constituição depende de um centro de referência, que será uma entidade dotada de agência (grupos ou indivíduos).

Outro termo recorrente é sociedade (societé). Embora a noção de sociedade seja ainda mais amorfa que a de milieu e de grupo, ela teria uma forte relação de interdependência com o grupo. Sabemos que a sociedade seria formada pelos diferentes grupos, porém ela não poderia ser reduzida ou idêntica a eles, pois em várias passagens, Halbwachs afirma que uma sociedade abarca vários grupos: Em todo caso, também se poderia dizer que aquilo que foi atingido foi a faculdade em geral de entrar em relacionamento com outros grupos que compõem a sociedade (Halbwachs, 1997 [1950], p. 60). Mesmo em uma sociedade hipotética, composta por um único grupo (como a horda, presente nos escritos durkheiminianos), a sociedade não poderia ser reduzida ao grupo.

Assim como milieu e grupo, possui diferenças de natureza, o mesmo ocorre com sociedade e grupo. Halbwachs aceita a tese central da teoria de Durkheim sobre a ontologia da sociedade, como apontado no capítulo anterior: esta emergiria de um

32 Ao buscar a etimologia da palavra milieu, encontramos que ela é uma composição de duas palavras

mi (contração da palavra latina medium) e lieu (em francês lugar, do latim locum).

33 Verificando na versão do único livro de Halbwachs traduzido para o português (A Memória Coletiva,

Ed. Centauro, 2009, trad. Beatriz Sidou) foi possível perceber que o termo milieu social ora é traduzido como ambiente social (como é no caso da citação acima) e ora, simplesmente, não é traduzido, permanecendo milieu social.

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estado de efervescência coletiva possibilitando assim a própria existência dos grupos por fornecer a este as categorias de referência de seu próprio pensamento. Observamos isso quando Halbwachs ilustra a diferença entre o tempo dos grupos e o tempo social mais geral . O tempo social concernente à sociedade fornece o

background para que os grupos possam estabelecer alguma correlação e

comunicação:

Primeiramente, a uniformidade pesa sobre nós. O tempo é divido, da mesma maneira para todos os membros da sociedade (Halbwachs, 1997 [1950], p. 14).

É necessário que assim seja, sem que as durações dos diversos grupos, dentro dos quais se decompõe a sociedade, comportassem divisões diferentes, nós poderíamos estabelecer alguma correspondência entre seus movimentos. Ora, precisamente porque esses grupos estão uns separados dos outros, que cada um tem seu movimento próprio e que os indivíduos passam de um grupo a outro constantemente, as divisões do tempo devem ser, por toda parte, uniformes (Halbwachs, 1997 [1950], p. 167).

Embora haja um background comum, os grupos não deixam de se diferenciar e diferenciar suas próprias concepções de tempo:

[...] Entretanto, ainda que subsistam essas divisões, isso não resulta que não tenha um tempo social único, porque apesar de sua origem comum, elas tomam uma significação muito diferente entre os diversos grupos [...] o ano escolar não começa no mesmo dia que o ano religioso (Halbwachs, 1997 [1950], p. 170).

Na sociedade estariam elementos transcendentais aos grupos. Se tomarmos a concepção durkheiminiana de sociedade, há o pressuposto de algum agrupamento físico de indivíduos – e físico não quer necessariamente dizer que estão fixos ao solo, visto que há as sociedades nômades. Isto é, a sociedade é também um agrupamento de indivíduos que pode se subdividir em funções distintas, mas que precisam ter algum tipo de interação face a face para pertencer a essa sociedade. Portanto, sociedade seria composta pelos grupos, mas não redutível a eles, pois dela que as categorias de pensamento se originariam.