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CAPÍTULO 2 UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO E CONCEITUAÇÃO

2. A noção de grupo

2.2 Construção positiva da noção de grupo

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Quais são as características específicas da noção de grupo para que Halbwachs o aponte como aquele que se relaciona mais diretamente com os fenômenos da memória? Propomos que um grupo é formado quando há a) uma intersecção de conteúdos representacionais comuns relacionados ao passado e b) uma corrente de pensamento coletivo. Tentaremos demonstrar que o primeiro possibilita a delimitação analítica de um grupo, enquanto o segundo, uma corrente

de pensamento coletivo, seria o conjunto de opiniões, interesses e preocupações, que

em conjunto, se tornariam coletivas, uma vez que transcendem os indivíduos. Desta maneira, a massa de indivíduos que possui conteúdos representacionais passados comuns comporiam um grupo, sendo que os indivíduos em determinadas situações se alinhariam à corrente de pensamento coletivo de um dado grupo. Devemos assinalar que a corrente de pensamento coletivo aparece como um dado para Halbwachs, em algumas passagens de maneira explícita. Não problematizaremos assim essa noção.

Todavia, para compreendermos melhor o que é um grupo, é necessário assim que identifiquemos o quê são dos conteúdos comuns relacionados ao passado produzidos por ele. Se os conteúdos estão relacionados ao passado, iremos denominá-los aqui de conteúdos mnemônicos. Todo conteúdo mnemônico tem origem na cognição individual, por isso optamos por chamá-los de conteúdos

mnemônicos epistêmicos. Como vimos, Halbwachs se contrapõe à teoria

psicologista da memória, entendendo que a memória não é um fenômeno exclusivamente inerente à mente humana, mas que tem certa objetividade. Assim, é possível dizer que embora epistêmicos e de origem cognitiva e subjetiva, esses conteúdos, ganham, em certo momento, objetividade34. Isto é, são abertos a outros

indivíduos; tornando-se, assim passíveis de acessibilidade. Essa objetividade, ou melhor, essa acessibilidade é possível, pois todos os conteúdos mnemônicos

34 Esse caráter objetivo dos conteúdos mnemônicos já é algo esboçado por Émile Dukheim em Les

Formes Élementaires de la Vie Religieuse. Tanto para Durkheim, quanto para Halbwachs, não há como ter conteúdos mnemônicos (o que podemos chamar mais livremente de recordações ou lembranças se não forem passíveis de acessibilidade por outros indivíduos. Na passagem a seguir é possível verificar a argumentação de Durkheim, quando ele identifica os símbolos como uma, dentre outras, possíveis objetivações (e não objetificações, as quais são necessariamente materializadas) de um dado conteúdo mnemônico: Aliás, sem símbolos, os sentimentos sociais não poderiam ter senão uma resistência precária. Muito fortes enquanto os homens estão reunidos e se influenciam reciprocamente, eles não subsistem quando a reunião termina, a não ser na forma de recordações que, se forem abandonadas a si mesmas, irão se pagando cada vez mais (Durkheim, 2003 [1912], p. 241).

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epistêmicos são amparados por uma corrente de pensamento coletivo. Por fim,

optamos por chamar todos os conteúdos compartilhados por um determinado

grupo de conteúdos mnemônicos epistemicamente acessíveis (ou simplesmente

sob a abreviatura de CMEAs), os quais estão sempre repousam sobre uma corrente

de pensamento coletivo.

Quando dizemos que um grupo pode ser identificado pela intersecção de

CMEAs, não estamos dizendo que há, necessariamente, uma intersecção física dos

indivíduos que compartilham esses conteúdos. Por isso, a conceituação de grupo não está relacionada com uma delimitação espaço-temporal do mesmo, sendo possível que um indivíduo participe, portanto, de dois ou mais grupos concomitantemente; como afirma Halbwachs: [...] cada indivíduo está mergulhado ao mesmo tempo, ou sucessivamente, em vários grupos. Cada grupo pode se fragmentar e se contrair no tempo e no espaço (Halbwachs, 1997 [1950], p. 167). Embora a justaposição de indivíduos no espaço seja uma maneira bastante evidente de se identificar um possível grupo, ela não é sua condição necessária e definidora.

Antes de tudo, o grupo existe na mente dos indivíduos. Isso fica claro quando, nas primeiras páginas do texto La Mémoire Individuelle et La Mémoire (1950), Halbwachs narra o passeio de um indivíduo por Londres. Ao se rememorar certos eventos, que vão sendo evocados à medida em que monumentos aparecem a sua frente, ora ele se coloca no ponto de vista de arquitetos e ora no ponto de vista de historiadores. Isso demonstra a prescindibilidade da presença física do grupo para que ele opere na mente do indivíduo. Isso diferencia também grupo de sociedade, já que ele não precisa estar fixado geograficamente e nem mesmo estabelecer interações face a face; como também seus indivíduos não precisam compartilhar necessariamente de traços culturais comuns ou ofícios semelhantes. Assim, enquanto grupo se define por uma produção de conteúdos representacionais comuns relativos ao passado, a sociedade se define apenas por uma estrutura social, que pode ter subdivisões funcionais. Assim, é possível dizer que a sociedade dá a forma, enquanto o grupo fornece os conteúdos relativos à dimensão representacional. Por isso, jamais seria possível dizer que uma sociedade tem memória , mas somente que os grupos têm memória . Quando se associa uma memória a uma sociedade específica, na verdade, se identifica apenas uma memória

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de um único grupo, presente no interior dessa sociedade, que possivelmente se sobrepôs à memória de outros grupos.

Outro bom exemplo é aquele em que Halbwachs, ao citar a memória do grupo econômico, diz que embora os comerciantes se constituam como o corpo fixo daquele grupo, os compradores só participam da vida e memória do grupo quando se aproximam dos interesses comerciais, para fazer uma compra ou um negócio pontual (Halbwachs, 1997 [1950]). É neste sentido que podemos afirmar que pertencer a um grupo não quer dizer excluir-se de outro. Um indivíduo pode participar de diversos grupos e se colocar sob o ponto de vista de um deles para evocar um determinado evento passado e reconstruí-lo. Qualquer elemento inserido no grupo que desloque sua órbita de preocupações e representações faz com que ele se subdivida e se torne outro grupo.

Se um evento contrário, se a iniciativa de um ou vários de seus membros ou de circunstâncias externas são introduzidas na vida do grupo e se este novo elemento é incompatível com a representação de seu passado, um novo grupo35 deve nascer com sua memória própria, uma memória que

não se confunde com a memória que precedeu sua crise (Halbwachs, 1997 [1950], p. 139).

Sendo o grupo passível de reconstrução a partir da intersecção de conteúdos representacionais (ou apenas CMEAs como nomeamos aqui), seu produto e ele próprio são maiores do que a simples justaposição de indivíduos e de seus respectivos CMEAs que os compõem; ele é um novo ente; um ente resultante, que por consequência tem características específicas.

Grupo deixa de partilhar de sua acepção corrente, para se tornar um conceito

central nesta reconstrução. Assim, sempre que citarmos o termo grupo, estamos nos referindo à ideia de grupo mnemônico , aquele que reúne indivíduos que compartilham de conteúdos mnemônicos comuns e partilham, em alguma situação, uma corrente de pensamento coletivo comum.