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CAPÍTULO 1 -O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA DA MEMÓRIA:

2. Predecessores e suas influências no pensamento de Halbwachs sobre a

2.2 Henri Bergson

Halbwachs estudou com Henri Bergson no Lycée Henry IV, ainda na adolescência, e mais tarde acompanhou seus cursos no Collège de France e na École

Normale Supérieure até o começo dos anos 1900 (Wetzel, 2009). Mais tarde, mesmo

já afastado de Bergson, a mãe de Halbwachs, em uma carta enviada a ele após ler Les

19 Dentro da linha do programa esboçada por Durkheim, (albwachs e Mauss vão, pouco a pouco,

falar de uma psicologia coletiva a qual eles se esforçarão por definir o domínio do obejto e não tanto da sociologia Simiand irá preferir o termo psicologia social . (á, nos anos -1930, uma certa identidade na postura intelectual que defende os textos de Mauss e Halbwachs: há um tipo de fenomenologia racionalista que se esforça por descrecer como o indivíduo vive seu pertencimento à sociedade Marcel, , p. .

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Cadres pela primeira vez, admite a influência pessoal e intelectual do filósofo ainda

presente no trabalho de Halbwachs: Este livro é magnífico e está escrito com muita clareza, inclusive para uma leiga como eu [...] me encontro emocionada de te ver tão próximo a Bergson que foi realmente o demônio de sua juventude (apud Namer, 1994, p. 306). Embora Bergson fosse a principal referência francesa contemporânea na filosofia para a geração de Halbwachs, sua influência sobre a teoria da memória de Halbwachs foi acima de tudo de caráter temático. Bergson despertou a sensibilidade de Halbwachs para o problema da memória, que ele parece ter perseguido nas últimas duas décadas de vida. De maneira sintética, a questão de Bergson era saber como é possível a existência de memórias individuais que são amplamente variáveis em um mundo de crescente uniformização de formas de medir o tempo. Bergson elaborou um problema de pesquisa de vida para Halbwachs, e para quem quisesse pesquisar sobre o fenômeno da memória. Nas palavras de Ollick, Vinitzky-Seroussi e Levy:

[O trabalho de Bergson] sobre memória chamou a atenção de Halbwachs para a diferença entre as apreensões subjetivas e as objetivas (frequentemente transcendentais) do passado: enquanto novas formas de recordação se mantêm à medida que o tempo as gravam na história de maneiras cada vez mais padronizadas e uniformes, as memórias individuais ainda seriam altamente variáveis, às vezes recordando breves períodos com imensos detalhes e longos períodos com contornos mais vagos. Seguindo Bergson, essa variabilidade da memória foi para Halbwachs o seu ponto real de interesse (2011, p. 17).

Na verdade, por causa do peso de seu trabalho, Bergson conseguiu fazer com que sua distinção entre tempo objetivo e tempo percebido subjetivamente e suas consequências fossem necessariamente consideradas por qualquer reflexão que envolvesse a percepção individual do tempo – seja para refutá-la ou para aceitá-la. A memória desempenhou um papel central na análise sobre a experiência do tempo de Bergson, sendo redefinida pelo conceito ontológico e epistemológico de duração no interior de sua filosofia subjetivista20. A duração caracterizaria a natureza do

tempo e, mais precisamente, a natureza do tempo experimentado por uma

20 Bergson rejeitou considerações objetivistas, argumentando que a subjetividade seria a ’nica fonte

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consciência21. Para Bergson, a existência é definida pela mudança. Ele afirma: não

há afeto, não há representação que não se modifique a todo momento; se um estado de alma parasse de variar, sua duração deixaria de fluir (...) A verdade é que mudamos sem parar e que o próprio estado já é mudança Bergson, 2011 [1907], p. 2). A duração como mudança incessante do estado de coisas tem a memória como protagonista na experiência do tempo. Diria Bergson que minha memória está aí, empurrando algo desse passado para dentro desse presente. Meu estado de alma, ao avançar pela estrada do tempo, incha-se constantemente com a duração que reunindo, por assim dizer, faz bola de neve consigo mesma Bergson, 2011[1907], p. 2). Vigoraria aqui, uma ideia de um presente alongado que abarcaria passado e futuro. Assim, um novo e constante presente sempre empurraria um presente mais antigo para trás.

O tempo definido como duração seria portanto não quantificável, indivisível e assim incomensurável. Bergson afirma que a duração real é o que sempre se chamou tempo, mas o tempo percebido como indivisível (Bergson, 2011 [1934], p. 16). Desta maneira, o tempo não seria algo pensado, mas algo vivido Bergson, 2011 [1907], p. 6). A divisão e quantificação do tempo ocorreriam artificialmente pelos homens quando estes, em estado de vigília, o empregam com alguma finalidade útil ao ser social. É nesse sentido que, o único tempo real seria o tempo da

duração22.

Nesta definição de duração, os momentos presentes são transformados sucessivamente em momentos passados que se acumulam sobre outros momentos passados anteriores. Dessa maneira, o presente estático, tal como um momento zero, não existiria. Com isso, do que se ocuparia a percepção, senão de algo que potencialmente se torna um passado que cobrirá outros passados? Então, qual seria a diferença entre a percepção e a memória, de modo que a função da memória seria algo similar ou até mesmo equivalente a isso? Bergson argumenta:

21 Apenas a título de nota, é válido lembrar que é possível conceber a duração de uma maneira muito

próxima à concepção da estrutura da consciência interna do tempo formulada por Edmund Husserl. Não por acaso Bergson é apontado para percursor de algumas noções presentes posteriormente na fenomenologia e Husserl como o pai da fenomenologia.

22 Esta ideia de que em nosso estado de vigília agimos no mundo visando uma utilidade para uma

determinada ação é posteriormente refutada por Halbwachs em Les Cadres Sociaux de la Mémoire (1925).

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Ou o presente não deixa nenhum vestígio na memória, ou então ele se desdobra a cada instante, em dois jatos simétricos: um cai para o passado, enquanto o outro se lança para o porvir. Este último, que chamamos percepção, é o único que nos interessa. Não temos o que fazer com a recordação das coisas enquanto temos as próprias coisas. A consciência descarta essa recordação como inútil e a reflexão teórica a considera inexistente. Assim nasce a ilusão de que a lembrança sucede a percepção. Mas essa ilusão tem outra fonte, ainda mais profunda. Provém de que a lembrança reavivada, consciente, causa em nós a impressão de ser a própria percepção ressuscitando sob uma forma mais modesta, e nada mais que essa percepção. Entre a percepção e a lembrança haveria uma diferença de intensidade ou de grau, mas não de natureza (Bergson, 2011 [1919], p. 50).

Portanto, para Bergson não há oposição radical de natureza entre percepção e memória, tão pouco a última seria uma etapa posterior da primeira, reavivando-a. A diferença entre ambas seria de intensidade. Diferentemente, para Halbwachs, percepção e recordação são fenômenos distintos. Para Bergson, nossas recordações são envelopadas pelo curso de nossas experiências passadas, mas as recordações podem ser contingenciais e até mesmo arbitrárias. Além disso, ele faz uma importante distinção entre tipos de memória existentes: a memória-hábito e a

imagem-recordação. Com o conceito de memória-hábito, Bergson cobre todo tipo de

memória adquirida por esforços sucessivos de repetição motora, como qualquer habilidade física ou mesmo os esforços de aprendizado de gestos e palavras envolvidos no processo de socialização. O conceito de imagem-recordação cobriria os eventos singulares e não reproduzíveis, por isso de caráter não mecânico, mas evocativo.

Para Bergson, por exemplo, as memórias estão ordenadas cronologicamente naquilo que ele chamou de cone da memória , de modo que a proximidade ou distância em relação ao presente desempenharia papel crucial na rememoração. Não obstante, mesmo as memórias mais antigas poderiam ser reacessadas pelo puro esforço mental individual, inserindo-as novamente em um momento mais presente da corrente da duração. Esta ação mental aproximaria as memórias ao presente que estariam localizadas mais distantemente dele, alterando todas as memórias anteriores em geral. Isso é recusado por Halbwachs, pois os eventos, para ele, não estariam armazenados cronologicamente. As recordações são mosaicos de eventos passados, sendo possível justapor, em uma mesma recordação, eventos cronologicamente distantes.

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O ponto de afastamento entre o pensamento de Bergson e Halbwachs sobre a memória pode ser evidenciado na afirmação de Ansart (2004):

A teoria da memória desenvolvida por Bergson foi especialmente desafiadora para Halbwachs, pois estava no debate metafísico do dualismo, que afirmava a realidade do espírito e a realidade da matéria sem qualquer questionamento acerca da influência do milieu social – o que foi exatamente o tema fundamental de Halbwachs (p. 23).

A crítica enunciada por Asnart no último período da citação acima é uma abreviação sintética das críticas feitas por Halbwachs à filosofia da memória de Bergson, que fundamenta a experiência do mundo nas estruturas do pensamento individual. Halbwachs foi crítico do individualismo desde o princípio, estando assim muito mais próximo ao projeto durkheimiano. Como veremos ao longo deste trabalho, a memória, para Halbwachs, assim como outros fenômenos individuais, somente são compreensíveis quando sua fundamentação está em uma psicologia social, ou até mesmo uma ontologia social. Sendo Halbwachs um crítico de posturas individualistas em geral, foi crítico de seu primeiro mestre. Ainda que Bergson tivesse tentado superar o dualismo cartesiano tradicional, sua filosofia era eminentemente individualista.

No entanto, como veremos, o pioneirismo de Bergson em sua concepção sobre a memória e a percepção do tempo deixarão um problema de extrema dificuldade que Halbwachs tentará resolver ao longo de toda sua obra: como

acomodar a perspectivação subjetiva da percepção e a memória dos indivíduos dentro de estruturas sociais que possibilitam e, até mesmo, determinam, a possibilidade e inteligibilidade de tais experiências como a memória?