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CAPÍTULO 1 -O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA DA MEMÓRIA:

2. Predecessores e suas influências no pensamento de Halbwachs sobre a

3.1 Sigmund Freud

Não é possível saber se Freud chegou a ler Halbwachs23, mas certamente

Freud já ecoava no meio intelectual francês na época da publicação de Les Cadres (1925). Freud é lido e citado por Halbwachs não apenas pela importância que a Psicanálise estava tomando na época, como também pelo fato de o psicanalista austríaco tratar de dois temas caros a Halbwachs: a memória e os sonhos. É válido lembrar que o Freud lido por Halbwachs é aquele anterior à década de 1920, quando ainda não havia acontecido a guinada histórica em sua obra – que se concretiza nos anos 1930, embora já apresentasse algumas formulações em Totem e Tabu (1913).

Em vários momentos, Halbwachs evoca Freud e outras abordagens clássicas da Psicologia para negar sua ideia subjetivista da memória (da mesma maneira que faz em relação a Bergson e Ribot):

Nos surpreendemos quando lemos os tratados de Psicologia, onde se trata da memória e se considera o homem como um ser isolado. Parece que para compreender nossas operações mentais, é necessário partir do indivíduo e cortar, sobretudo, os laços que o unem com a sociedade. Contudo, é na sociedade onde normalmente o homem adquire suas recordações, que as evoca, as reconhece e as localiza [...] (Halbwachs, 1994 [1925], p. VI).

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No começo de Les Cadres (1925), Halbwachs faz referências à A Interpretação

dos Sonhos (1900) de Freud. Ao passo que Freud apresenta a noção de inconsciente

a partir de sua manifestação nos sonhos, Halbwachs apresenta os sonhos exatamente como um contraste argumentativo para a introdução da noção do conceito de quadros sociais da memória. De acordo com Halbwachs, os sonhos não trariam imagens armazenadas no inconsciente tal como defende Freud, mas seriam fragmentos de memórias desorganizados por conta da ausência (ou presença fraca) dos quadros sociais da memória: é no sonho, que a mente se encontra mais afastada da sociedade (albwachs, 1994 [1925], p. 39). Da mesma maneira que os sonhos seriam o momento de menor manifestação dos quadros sociais da memória, o esquecimento também teria um funcionamento parecido, ou seja, esquece-se algo quando os quadros sociais da memória estão ausentes ou se transformaram ao longo do tempo. Essa ideia se contrapõe à concepção freudiana de esquecimento, que implica necessariamente na repressão de certas memórias que são relegadas ao inconsciente – e muitas vezes formadoras de traumas (Freud, 1976 [1920]).

Muito diferentemente de Halbwachs, Freud postula dois tipos de memórias: as memórias conscientes e as memórias inconscientes, sendo que todas as primeiras seriam passíveis de resgate, independente da presença/ausência de determinados fatores. Por outro lado, para Halbwachs, como veremos, uma memória (que só é possível em estado consciente) só pode ser resgatada quando há presença de

quadros sociais da memória.

A estaticidade da memória freudiana também é negada por Halbwachs, quando ele entende que toda e qualquer recordação é uma reconstrução constante do passado à luz do presente. O estudo do sonho já havia nos dado argumentos consistentes contra a tese da permanência e estaticidade das recordações no estado inconsciente, contudo, era necessário mostrar que fora do sonho o passado, na verdade, não se manifestava como ele é, e tudo parece indicar que não se conservava mais, mas sim que reconstruíamos desde o presente Halbwachs, 1994 [1925], p. VIII). Dada essa ideia de reconstrução do passado a partir do presente, tem-se a tentativa de derrubada do uso do inconsciente como uma espécie de baú que conservaria as memórias tais como elas são, ou seja, a ideia de uma essência das recordações das memórias.

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As referências que Halbwachs faz com Freud em Les Cadres (1925) parecem se encerrar nestes pontos de afastamento do primeiro em relação ao segundo, já que em suas obras posteriores Halbwachs não menciona mais os argumentos de Freud. É interessante notar que há algumas afinidades posteriores entre os escritos de Freud e Halbwachs, embora Halbwachs possivelmente não tenha mais recebido influência de Freud e nem ao menos tentado estabelecer algum diálogo com ele. Em

Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud faz um exercício muito similar àquele realizado

por Halbwachs em La Topographie (1941) dois anos mais tarde, que é traçar a correspondência entre escritos e locais religiosos com os acontecimentos reais que eles retratam. Em Moisés e o Monoteísmo (1939), Freud deixa claro que a Psicanálise também deve estabelecer uma oposição entre ilusão e verdade, sendo a última definida como uma correspondência à realidade : Até o ponto em que é deformada, ela pode ser descrita como um delírio; na medida em que traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade (Freud, 1976 [1934-1938], p. 125). Em Moisés e o Monoteísmo, a questão central repousava sobre a nacionalidade (ou local de nascimento) de Moisés – figura central para o judaísmo. De maneira análoga, a questão de Halbwachs em La Topographie (1941) é a autenticidade dos lugares sagrados do cristianismo. Ambos buscam verificar a correspondência destes com os acontecimentos reais. Enquanto Freud lança mão do método histórico- psicanalítico para chegar a uma resposta, Halbwachs articula sua teoria da memória coletiva.

A partir de um paralelismo, já conhecido na obra freudiana, entre os planos ontogenético e filogenético24, é possível buscar historicamente uma verdade

inconsciente a ser descoberta no processo de análise psicanalítica. No plano filogenético, o monoteísmo judaico seria o efeito desta verdade inconsciente, isto é, um trauma. O trauma teria sido causado pelo fato de que o povo hebreu teria matado um Moisés egípcio (já que, de acordo com Freud, havia dois Moisés, sendo que nenhum deles era hebreu: um egípcio e outro midianita). A tradição oral que dá origem ao antigo testamento teria tido origem no próprio Moisés, sendo que o hiato entre esta tradição e sua inclusão na doutrina seria explicada pelo conceito

24 Busquei estabelecer, de maneira mais detida, esta relação entre memória e os planos ontogenético

e filogenético no artigo O legado freudiano na Dialética do Esclarecimento: a importância da memória nos planos ontogenético e filogenético. Aurora (UNESP. Marília), v. 7, p. 1- , . , Cordeiro, Veridiana D.

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psicanalítico de latência. A retomada da memória de Moisés depois de tanto tempo seria, portanto, fruto de uma culpa inconsciente do povo hebreu que depois de matá- lo, passa, depois de muitos anos, a venerá-lo: É plausível conjecturar que o remorso pelo assassinato de Moisés forneceu o estímulo para a fantasia de desejo do Messias, que deveria retornar e conduzir seu povo à redenção e ao prometido domínio mundial (Freud, 1976 [1934-1938], p. 86-7).

O caminho percorrido por Halbwachs para entender a autenticidade dos locais sagrados cristãos é oposto ao de Freud: não há verdade inconsciente que se expressa no plano filogenético, mas um cotejamento de documentos históricos de épocas anteriores que relatam a (in)existência de determinados locais com as representações (monumentos e escritos) contemporâneas.