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Construção do Estado de Direito – impulsão do positivismo à consolidação do monismo

3 PLURALIDADE DE FONTES E PLURALISMO JURÍDICO

3.1 DO MONISMO ESTATAL AO PLURALISMO DOS CENTROS DE PODER PARA CONSTRUÇÃO DE NORMAS

3.1.2 Construção do Estado de Direito – impulsão do positivismo à consolidação do monismo

O Estado Moderno (centralizado e absolutista) confundia-se com a pessoa do monarca, convertida em instrumento de arbítrio e opressão ilimitada, operando-se a suposta vontade divina. Este, pois, foi o terreno fértil à solidificação da racionalidade que buscava combater à ordem posta, com vistas a necessidade de objetivar os direitos fundamentais – para proteção do indivíduo frente ao despotismo do Estado, concedendo-lhe a garantia de uma liberdade inexpugnável. (SARMENTO, 2001, p. 378). A premissa de que “certo número de direitos preexistem ao próprio Estado, por resultarem da natureza humana, desvenda a característica crucial do Estado, que lhe empresta legitimação – o Estado serve aos cidadãos, é instituição concatenada para lhes garantir os direitos básicos.” (BRANCO; COELHO; MENDES, 2008, p. 232).

Iniciou-se, pois, a tentativa de pensar em uma Ciência Jurídica com bases racionais, conforme os moldes pregados pelo jusnaturalismo, corrente adepta do Direito Natural puramente racional. Esta admite que acima do sistema do Direito positivo, haveria um outro Direito ideal, expressão excêntrica da razão humana.

O Direito Natural perfaz-se na reunião de preceitos “dotados de caráter universal, imutável, que surge da natureza humana e que se configura como um dos princípios de legitimidade do Direito. Os direitos naturais são inerentes ao indivíduo, devem estar em qualquer sociedade e precedem a formação do Estado e do Direito”. (SIQUEIRA JUNIOR, 2011, p. 243). A sua origem é no homem (e não no Direito positivo) e por isto existem independente de ser reconhecido ou respeitado pelo Direito Positivo.

Após esse entendimento das garantias naturais do homem, passou-se a se questionar mecanismos pelas quais estas pudessem estar devidamente uniformizadas e consolidadas. Busca-se, então preservar a liberdade individual, mas sem perder de vista a necessidade de bem estar da vida em sociedade. Afloraram-se, então, teorias contratualistas, comuns à época, que ressalvavam a submissão da autoridade política à precedência atribuída ao homem sobre o Estado, admitida pelo direito natural do homem. Assevera José Afonso da Silva (2008, p. 151) que:

para tanto, contribuiu a teoria do direito natural que condicionou o aparecimento do princípio das leis fundamentais do Reino limitadoras do poder do monarca, assim como o conjunto de princípios que chamou humanismo. Aí floresceram os pactos, os forais e as cartas de franquias, outorgantes de proteção de direitos reflexamente individuais, embora diretamente grupais, estamentais [...].

Estas teorias contratualistas contribuem para o estabelecimento de normas e, a partir delas, anuncia-se, pois, um clima propício à compreensão da lei como fonte essencial e privilegiada do Direito. (REALE, 2001, p. 142). Essa tendência geral dos séculos XVII e XVIII reflete-se especialmente na obra de Rousseau, na qual se sustenta que o Direito genuíno é aquele que se consubstancia na lei como expressão da vontade geral. “O Direito é a lei, porque a lei é a única expressão legítima da vontade geral. Nenhum costume pode prevalecer contra a lei ou a despeito dela, porque só ela encarna os imperativos da razão”. (REALE, 2001, p. 142). Como enfatiza Luis Roberto Barroso (2005):

o jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximou a lei da razão e se transformou na filosofia natural do Direito. Fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e as codificações.

Dentre esses documentos pode-se destacar a Declaração do Bom Povo da Virgínia (1776) nos Estados Unidos e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que representaram avanços frente à constitucionalização dos direitos fundamentais uma vez que guardam “as características da universalidade e supremacia dos direitos naturais, sendo-lhes reconhecida a eficácia inclusive em relação à representação popular, vinculando, assim, os interesses públicos” (SARLET, 2009, p. 43).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão pode ser considerada como a mais importante das declarações, haja vista que influenciou, por mais de um

século e meio, diversas outras declarações de direitos, bem como Constituições, estando marcada por influências das teorias jusnaturalistas. Embora se entenda que neste período histórico os direitos do homem são naturalmente inerentes ao ser humano, antecedentes a toda norma jurídica, foi a partir destas Declarações de Direitos solenes que tais liberdades passaram a ser reconhecidas, assumindo, portanto, dimensão jurídica. José Afonso da Silva (2008, p. 167) enfatiza que:

“a questão técnica que se apresenta na evolução das declarações de direitos foi a de assegurar a sua efetividade através de um conjunto de meios e recursos jurídicos, que genericamente passaram a ser chamadas como garantias constitucionais dos direitos fundamentais. Tal exigência técnica, no entanto, determinou que o reconhecimento desses direitos se fizesse segundo formulação jurídica mais caracterizadamente positiva, mediante sua inscrição no texto das constituições, visto que as declarações careciam de força e de mecanismos jurídicos que lhe imprimissem eficácia bastante.”

A positivação constitucional destes direitos possuía o objetivo de que lhes fosse garantido status de supremacia constitucional, frente, sobretudo, aos Poderes Públicos; efetividade plena, inclusive através da consecução de medidas judiciais (especialmente as referentes ao controle de constitucionalidade); e ampla e rígida proteção aos seus dispositivos, pela dificuldade imposta à vontade de realização de futuras alterações.

Por conseguinte, neste período (final do século XVIII e início do século XIX), através da positivação constitucional dá-se início ao fenômeno jurídico conhecido como constitucionalismo, com a promulgação das primeiras Constituições escritas (norte americana e francesa7), rígidas, dotadas de supremacia e orientadas por princípios. Tal fato favorece a configuração do Estado Liberal. Este representava os interesses das classes burguesas (a exemplo da estipulação do voto censitário – com exclusão dos homens das classes menos favorecidas – e dos direitos civis que

7 Este período conhecido como constitucionalismo clássico obteve outras contribuições relevantes

oriundas das disposições nas Constituições norte americana e francesa. Assim tem-se que o constitucionalismo norte americano criou a primeira Constituição escrita, dotada de rigidez, supremacia e garantia jurisdicional; dotada de separação e equilíbrio ente os poderes estatais, promovendo ainda a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos; forma federativa de estado, republicana de governo, sistema presidencialista e regime político democrático; e declaração de direitos da pessoa humana. No mesmo sentido, o constitucionalismo francês, além de algumas das colaborações idênticas às norte americanas, trousse outras deveras importante como: manutenção da monarquia constitucional, com limitação dos poderes do Rei; e concepção da carta constitucional como projeto político destinado a promover uma transformação política e social (Lex Fundamentallis) (NOVELINO, 2010, p. 56-58).

legitimavam liberdades individuais como a de consciência, culto, propriedade, inviolabilidade de domicílio, religião).

Este Estado (Liberal) de Direito estava, pois limitado às liberdades individuais (e naturais) e organizado segundo uma tripartição de poderes. Porém, não se deve enganar que esta divisão de poderes remete a uma divisão vertical, e por consequência ainda impulsiona o monismo, já que a legitimação das principais formas de produção de normas jurídicas concentravam-se no Estado – só que agora repartido em “Poderes” com funcionalidades específicas – mas competentes a um único centro de poder, qual seja o estatal.

É nesse clima histórico que se destaca também os primeiros códigos modernos, tendo-se como marco fundamental da supremacia da lei frente as demais fontes do direito (e do monismo estatal) o Código de Napoleão, em 1804, também conhecido como “Código Civil francês”. Com a Revolução Francesa, por conseguinte, surge uma nova realidade histórica pautada: no direito nacional, único e unificado para cada Nação, perante o qual todos são iguais. (REALE, 2001, p. 143). “O princípio da igualdade perante a lei pressupõe um outro: o da existência de um único Direito para todos que habitam num mesmo território”. (REALE, 2001, p. 143).

Neste diapasão evidenciam-se críticas ao jusnaturalismo, por ser considerado metafísico, buscando-se uma objetividade científica a respeito do Direito. Já não se podia conceber um Direito em que as normas fossem concretas e individuais. Para este contexto histórico se fazia necessário a existência de normas abstratas e gerais, consubstanciadas em tipos genéricos que se relacionavam com situações fáticas. Surge, pois, a Escola Positivista (em oposição à jusnaturalista). Esta equiparou o Direito à lei e afastou cargas valorativas e filosóficas (típicas do jusnaturalismo), tendo dominado o pensamento jurídico a partir do início do século XX. (SIQUEIRA JUNIOR, 2011, p. 203-204).

O positivismo jurídico tinha como fundamento o Direito positivo, ou seja, aquele posto, imposto e positivado pelo Estado, renegando-se outras fontes. Observa-se a eclosão da Escola da Exegese, que reduzia o Direito a normas gerais escritas, emanadas por órgãos especialmente competentes. O direito positivado pela lei apresentava naquele cenário duas vantagens: certeza e segurança. Comportava um conteúdo delimitado, certo para todos e suscetível de indagação lógica e segura. (REALE, 2001, p. 143).

Compreende-se que nesse clima histórico surgem as primeiras manifestações do positivismo, fundamentado no legicentrismo, que apresentou uma contribuição crucial para a consolidação do monismo estatal. Isto porque, “ para o positivismo jurídico, o Direito legislado é a única fonte de Direito e em consequência reduz a jurisprudência, o costume e a doutrina como fontes secundárias do Direito [bem como outras possibilidades de fontes do direito]” (SIQUEIRA JÚNIOR, 2011, p. 247). O positivismo jurídico defende que o Direito é tão somente um conjunto de leis emanadas pelo Estado. O Estado seria, portanto, a única fonte do direito, já que as normas jurídicas somente seriam admitidas mediante processo legislativo monopolizado pelo Estado – fato que assegura a consolidação do monismo.

A escola monista do Direito admite a existência de apenas um sistema de Direito, derivado do exercício do poder estatal – atributo através do que decorrem seus princípios de estatalidade, unicidade e positividade. A estatalidade garante que somente haverá Direito se assim for imposto e positivado pelo Estado. A unidade enfatiza que o Direito deve ser compreendido como um sistema único de normas jurídicas, pelo fato dele decorrer de uma única fonte (o Estado). Desta feita, não admite o conflito de normas, já que tal concepção importa em uma contradição lógica. Pelo princípio da positividade, por sua vez, entende-se que todo o Direito se reduz aquilo que está positivado e que o Estado configura-se como a única fonte de positivação. (CAIRO JR., 2001, p. 12).

Por conseguinte, de acordo com o monismo, “somente a sociedade politicamente organizada através do Estado pode criar e aplicar normas de conduta de caráter coercível”. (CAIRO JR., 2001, p. 12). Logo, apenas um grupo social, qual seja o político, representado exclusivamente pelo Estado, é que possuía a prerrogativa de determinar o Direito.

Vale ratificar que a escola monista reconhece a existência de normas paraestatais, mas estas somente recebem o cunho de obrigatoriedade ou coercibilidade quanto positivadas pelo Estado através de atos formais e solenes. (CAIRO JR., 2001, p. 13). Sem a legitimação estatal estas normas não teriam a condição de se configurar como normas jurídicas. Tendo em vista que “fonte do direito” remete à possibilidade de edição de normas jurídicas, tem-se que a única fonte admitida seria a fonte estatal.

Nesse sentido, cumpre enfatizar os esclarecimentos de Norberto Bobbio (2010, p. 201 a 205) quando informa que o ordenamento surge de um poder originário (estatal), conhecido como “fonte das fontes”. Este visa satisfazer a necessidade de uma

normatização sempre atualizada e, para tanto, cria diretamente novas centrais de produção jurídica, podendo ser elas classificadas em fontes reconhecidas ou delegadas. As primeiras representam um fato social pré existente que produz regra de conduta, que pertencem a ordenamentos não jurídicos, que podem ser recepcionadas pelo sistema jurídico – tendo-se como exemplo o costume. Já as segundas (fontes delegadas) são normas produzidas por descentralização de órgãos inferiores sem competência originária para produção de normas jurídicas (como a regulação emitida pelo órgão executivo).

Desta feita, resta claro que o monismo se identifica como a centralização do poder na estatalidade, na unicidade e positividade produzidas exclusivamente pelo ente estatal. Todas as fontes reconhecidas como produtoras de regras de conduta deveriam ser avalizadas, ratificadas ou absorvida pelo Estado para que pudessem adquirir a legitimação como normas jurídicas.

3.1.3 Do Estado de Direito ao Estado Democrático de Direito – crise do monismo e