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Construindo conceito de transdisciplinaridade

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CAPÍTULO 1: SOBREVOANDO A ÁREA

1.4 EXPLORANDO O TERRITÓRIO: bases teóricas da pesquisa

1.4.3 A abordagem transdisciplinar e suas nuances

1.4.3.1 Construindo conceito de transdisciplinaridade

Não é novidade que a racionalização e a fragmentação, em diferentes situações, sejam uma prática constante. Ambas têm acompanhado a ciência durante séculos. Esta, por sua vez, tem determinado distintos comportamentos e distintas compreensões acerca da vida, da sociedade e não somente, da educação. As disciplinas curriculares escolares, por sua vez, aparecem nessa perspectiva, como partes isoladas de um todo. Esse todo seria o conhecimento. A construção do conhecimento, segundo uma visão cartesiana, seria a divisão do todo em pequenas partes, na qual sua somatória resultaria no “saber científico”, na compreensão de mundo ou no próprio conhecimento.

Esse cartesianismo, ou seja, essa racionalização e fragmentação do conhecimento, ao que nos parece correto afirmar, não foram superadas, ou pelo menos não de forma expressiva. Esta ideia, talvez até pudesse chamar de prática, permitiu compreender e explicar a ciência, o conhecimento, os sujeitos, a sociedade como se fossem uma máquina, constituída de partes isoladas e que atuam de forma mecânica, pouco dialógica, quase nunca contextual. As bases da ciência moderna ou dessa ciência racionalizada e fragmentada surgem, tendo como fundamentos as ideias do filósofo e matemático René Descartes e do físico Isaac Newton. Para ambos, cada um em seu tempo e de seu modo, a verdade é algo alheio ao imaginário e à linguagem humana.

A racionalização e a fragmentação contribuíram (e contribuem até hoje) para a proliferação de disciplinas acadêmicas hierárquicas e descontextualizadas. Constantemente novas disciplinas surgem para “preencher” o vazio entre uma disciplina e outra, ou até para responderem questões levantadas pelas necessidades específicas de cada parte isolada desse todo. Nessa perspectiva, as especializações aparecem na proposta de produzir conhecimento específico numa área específica. No dizer de Maria Cândida Moraes (2010, p. 26), esse tipo de educação que valoriza as dicotomias “é uma educação baseada em uma lógica que

aprisiona a mente e o coração do aprendiz, que nega seu pensamento, sua emoção, sua criatividade e sua consciência em processos de evolução”.

A abordagem transdisciplinar, assentada em três pilastras: a) complexidade, b) níveis de realidade diferentes e c) lógica do terceiro incluído, que propõe que tanto a racionalização, quanto a fragmentação do conhecimento sejam revistos e que as repercussões dessa revisão possam ser sentidas em muitos elementos da vida humana. No nosso caso, queremos analisar essa revisão nos processos educativos do IPJ, mais precisamente nas variáveis que compõem a prática educativa desse dado Instituto. A transdisciplinaridade, assim como aqui a entendemos, refuta os conhecidos axiomas da lógica moderna:

1. O axioma da identidade: A é A;

2. O axioma da não-contradição: A não é não-A

3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T que deriva de “terceiro incluído” onde A é não-A ao mesmo tempo.

O axioma da identidade A é A considera que não existe diferença entre identidade. O axioma da não-contradição A não é não-A explica que uma identidade não é outra identidade. Ambos os axiomas, portanto, podem existir de modo paralelo, porém não se complementam, uma vez que não existe a hipótese coexistência de pares contraditórios num mesmo espaço e num mesmo tempo. A transdisciplinaridade, no entanto, desfaz essa rigidez axiomática, presente na disciplinaridade.

A rigidez axiomática presente na disciplinaridade prevê, por exemplo, que o currículo escolar se organize de modo que uma disciplina não possa ser confundida com outra e que jamais tenha seu campo epistêmico e metodológico descaracterizado. A rigidez axiomática dos axiomas 1 e 2 impede que haja mais de uma forma de se explicar o mesmo fenômeno e que a ocorrência do fenômeno exija explicações que uma só episteme e um só método não consigam dar conta. A rigidez axiomática ignora que os fenômenos humanos ocorrem assentados em multirreferências e multidimensões.

Nesse sentido, a abordagem transdisciplinar, para além das três pilastras que a sustentam, precisa ser compreendida, tendo como premissa a ocorrência de

fenômenos humanos, assentados em referências variáveis e diversas, oriundas e repercutindo em dimensões também diversas. Numa leitura transdisciplinar, a verdade é um processo oriundo de muitas referências (étnica, cultural, espiritual, social, histórica, afetiva, geográfica, linguística e biológica), do mesmo modo de muitas dimensões (étnica, cultural, espiritual, social, histórica, afetiva, geográfica, linguística e biológica). Sob a ótica transdisciplinar, não devemos tratar a formação identitária de um jovem, por exemplo, estritamente a partir da ideia dos axiomas clássicos, posto que faríamos reducionismos com a variação de referências e dimensões constituintes dessa dada identidade.

Para a transdisciplinaridade, a complexidade, aquilo que advém do

complexus, logo aquilo que advém das inter-relações, das conexões, das

interconexões, das interações, das sociointerações, das redes de vasos que se comunicam, é uma das características centrais da realidade e do real. Numa explicação transdisciplinar, a realidade é complexa. Isto é, não se deve tratar realidade como sendo única e legítima. A realidade, de fato, são as realidades. A existência de uma pressupõe, nela mesma, a coexistência em rede, de muitas. Numa mesma identidade, numa mesma realidade, há variações diferentes de outras identidades, de outras realidades.

A complexidade conhecida também como pensamento complexo pressupõe a ruptura, ainda que não abrupta, com a racionalização e a fragmentação. Edgar Morin, sistematizador de uma teoria sobre a complexidade, defende que o problema da racionalização e da fragmentação do real e da realidade é que sempre ocorre amputação, retaliação, separação, hierarquização, mutilação. Isto é, a realidade é sempre simplificada de acordo com a ótica que a compreende e explica, podendo, nesse caso, ser compreendida e explicada de modo opressivo e totalitário, bárbaro e ineficaz. Morin entende que o ensino escolar, por exemplo, tem por “missão primordial” ensinar a religar e simultaneamente a problematizar (MORIN, 2013, pp. 70-71).

A transdisciplinaridade entende que não exista um só nível de realidade. Numa abordagem trans, existem níveis de realidade que também podem ser entendidos como matrizes de realidades. Os níveis podem ser cronológicos, espaciais, psicológicos, biológicos, sociais, culturais, etários, geográficos,

linguísticos, afetivos. A teoria quântica, por exemplo, trata sobre um nível de realidade, o micro atômico, diferente da teórica da mecânica celestial, o macro espacial. De acordo com Nicolescu (2000), as regras que mensuram os céus de Newton não servem para mensurar o universo atômico de Planck. Em outras palavras, não devemos utilizar regras universais para analisar fenômenos variados, pois cada fenômeno tem regras próprias.

Assim, a complexidade e os diferentes níveis de realidade exigem que seja repensada a lógica axiomática da ciência clássica. Tal exigência permite que outra lógica venha à tona. Para a transdisciplinaridade, portanto, o terceiro axioma da ciência clássica deve ser refutado e outro deve emergir. Nesse outro, no lugar de dizer que não existe contradição coexistente, deve ser dito que A e B podem ser, num mesmo lugar e num mesmo tempo, uma só coisa. É o caso, por exemplo, do quantum, onda e corpúsculo dentro do átomo.

A abordagem transdisciplinar quando utilizada nos processos educativos faz rever a base que sustenta a escola tradicionalista. Na nossa pesquisa, vimos que o IPJ, como demonstrado mais adiante, utiliza em seus processos educativos, uma abordagem transdisciplinar e por essa razão consegue se distanciar das bases que fundamentam a escola tradicionalista. O tradicionalismo escolar se baseia nos axiomas da identidade e da contradição para formar e conformar suas práticas, entre elas as suas práticas tanto de ensino quanto de aprendizagem.

A lógica do terceiro incluído é uma pilastra essencial na abordagem transdisciplinar, uma vez que é esse axioma que, não destruindo os demais, os desconstrói. Por meio da lógica do terceiro incluído, a transdisciplinaridade explica não somente a existência de níveis diferentes de realidade num mundo complexo, como consegue explicar a possibilidade de um nível entrar em contato com outro nível de modo sempre cíclico, respeitando singularidades de níveis, mas, ao mesmo tempo, elucidando a impossibilidade de níveis estanques e não comunicáveis, logo ilesos, uns aos outros.

Queremos dizer que não existem níveis puros, alheios. Por meio da lógica do terceiro incluído, podemos afirmar que não existem purezas conceituais quando tratamos dos termos jovem ideal, jovem delinquente, jovem em desenvolvimento e jovem de direito, porém existem níveis de realidade social e históricos nos quais

esses conceitos são forjados, muitas vezes, de modo exógeno ao contexto, logo de modo impositivo e pouco reflexivo. A lógica do terceiro incluído permite percebermos que em todo jovem ideal há um delinquente e em todo delinquente há um consciente de seus direitos e em todos os jovens conscientes de seus direitos há juventudes.

Essas noções da transdisciplinaridade no que diz respeito à construção de identidades juvenis abre-nos um leque amplo de possibilidades infinitas. Numa abordagem sustentada pela lógica positivista, a identidade juvenil seria percebida de forma unilateral, determinista e excludente. Por exemplo, neste tipo de perspectiva um jovem nascido numa família pobre só teria um único destino: a pobreza. A pobreza seria a identidade única possível para esse sujeito, não importa o que ele fizesse. Por sua vez, numa abordagem sustentada pela lógica transdisciplinar, as possibilidades são infinitas. Em um nível de realidade específico, o exemplo que demos da pobreza pode ser determinista para toda a construção social e identitária do sujeito, no entanto, se adentrarmos noutro nível de realidade, como a transdisciplinaridade possibilita, será possível abrir o leque identitário desse sujeito.

Estamos dizendo que a transdisciplinaridade nos permite um olhar complexo. O real não é determinado por uma fração específica da realidade. Ele é composto por uma complexidade de realidades, de situações mutáveis, flexíveis, cambiantes e contextualizadas. Nesta perspectiva, a construção das identidades das juventudes não pode ser encarada de forma linear, pois as realidades que fazem parte da vida das juventudes são flexíveis e multifacetadas.

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