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3. TRABALHO DOCENTE À LUZ DA ERGONOMIA E DA CLÍNICA DA ATIVIDADE

3.1 CONSTRUINDO UM CONCEITO DE TRABALHO

Acreditamos que se faz necessário uma análise acerca do termo trabalho e como o mesmo vem sendo utilizado e interpretado por nossa sociedade. Tal observação será realizada inicialmente dentro de um contexto mais amplo, para posteriormente podermos fazer um recorte e um direcionamento ao trabalho do professor.

Vemos este artifício como viável, pois segundo Bourdieu, Chamboredon e Passeron (apud MACHADO, 2007, p. 79) qualquer método científico deve ter como respaldo uma análise crítica sistemática do que eles chamam de prenoções sobre este objeto, que se agregam a uma tentativa de superação e reconstrução que vai além da percepção ingênua de mundo, realizando assim um estudo científico.

De acordo com Machado (2007), o sentido do vocábulo trabalho nas sociedades ocidentais remete à Bíblia e era saturado de negatividade, uma vez que o trabalho era visto como castigo, condenação de Adão e Eva em virtude do pecado capital.

Segundo Fragnière (apud MACHADO, op. cit, p. 83), um caráter de positividade foi atribuído ao termo trabalho com o advento da Reforma Protestante, que trazia como um de seus princípios a necessidade do bom cristão ser ativo na realidade social e econômica. Mas

foi no século XVIII, quando se deu início à revolução industrial na Europa que este valor positivo ganhou firmeza e o sentido do termo como o vemos hoje, começou a ser construído.

Na Grécia e em Roma, a atividade econômica de subsistência e produção de bens materiais só era reservada aos escravos, cabendo aos cidadãos livres as produções do espírito. O termo grego ergos era utilizado para designar o agir humano antes do século XVI e somente a partir deste século a expressão trabalho apareceu nas línguas românicas, derivando- se de tripalium que era um instrumento de tortura aos escravos romanos.

Como mostra Méda (apud MACHADO, 2007, p. 83), diversas definições e distinções para a palavra trabalho foram surgindo, como a dos economistas Smith, Say e Malthus, que entendiam por trabalho as atividades que produzissem bens materiais, o decompondo em trabalho produtivo e improdutivo: trabalho doméstico e intelectual respectivamente; e por fim Malthus define serviço como estando relacionado à atividade que produzisse riquezas, se opondo ao que ele chamava de verdadeiro trabalho.

No século XIX surgiram outras distinções que vinham a contrapor as anteriores. Ao analisarmos a definição de Marx (apud MACHADO, op.cit., p.84) que conceitualiza trabalho como universal e atemporal, constatamos que o ser humano é visto pela forma criativa que se expressa, realiza-se, aplica suas potencialidades, descobre e desenvolve sua realidade. Surge em decorrência desta ideia, o que Marx entende como verdadeiro trabalho e trabalho alienado.

Para o filósofo, verdadeiro trabalho é aquele a partir do qual o homem se entrega de forma absoluta, visando desenvolver suas habilidades da melhor maneira possível. E trabalho alienado é o contorno histórico adquirido pelo trabalho na sociedade capitalista, no qual o resultado do trabalho se prende ao objeto, a algo físico, o que o autor chama de objetivação do trabalho e que, segundo ele, funciona como um obstáculo ao desenvolvimento do trabalhador. É valido ressaltar que os sentidos utilizados anteriormente por Malthus e Marx para o termo verdadeiro trabalho são totalmente distintos e que, para nossas explanações futuras sobre este termo estaremos utilizando sua acepção marxista.

Para Machado (op.cit.,), considerar o significado da expressão verdadeiro trabalho, utilizada por Marx, é o mais propício para interpretar a afirmação de Bronckart (2004/2006)

que diz que “[...] há alguns anos, a atividade de ensino tende a ser considerada como um verdadeiro trabalho” (op.cit., p. 203). Assim, o trabalho do professor vem ganhando um novo contorno, sendo mais valorizado e visto como verdadeiro trabalho. Uma vez que o trabalho intelectual, que não produz bens materiais e tem seu resultado desprendido do meio físico, passa a ser considerado também como objeto de estudo.

Segundo Machado (op.cit.), a organização do trabalho industrial no início do século XX trouxe uma preocupação nova e estudos voltados para o trabalho, ou seja, a emergência de uma Ciência do Trabalho. O taylorismo e o fordismo proporcionaram que tais estudos iniciassem, tendo como foco a análise de técnicas e procedimentos das tarefas realizadas pelos trabalhadores nas fábricas, e eram dirigidos a um único objetivo: melhoria de produtividade e lucros.

Somente depois da segunda guerra mundial na Europa, surge um novo olhar para a questão do trabalho. Há uma total inversão de valores, pois o que se buscava não era mais adaptar os trabalhadores ao trabalho, mas proporcionar melhorias de trabalho a esses trabalhadores.

É a partir daí que emerge a Ergonomia de vertente francesa que tem como foco a análise da atividade humana em situação de trabalho e como objeto de estudo a relação entre conhecimentos gerais e específicos produzidos no contexto de trabalho. Para Souza-e-Silva (2004), a Ergonomia deve ser entendida “[...] como um conjunto de conhecimentos sobre o ser humano no trabalho e uma prática de ação que se relaciona intimamente à compreensão do trabalho e sua transformação” (op.cit., p. 84).

Para a autora, a abordagem ergonômica francesa se apóia em diferentes disciplinas e se ancora no duplo conceito de trabalho prescrito e trabalho realizado. Entendendo por prescrito a tarefa direcionada ao trabalhador, e realizado a atividade por ele realizada.

Mas existe ainda a noção de trabalho real que, de acordo com Lousada (2004), baseada nas teorias propostas por Clot (1999) e Clot, et al (2001), entendem que real é o trabalho que se refere não só à atividade realizada, mas também àquelas que por algum impedimento foram suspensas. Essas atividades são de suma importância para a compreensão do trabalho prescrito e realizado, e devem ser consideradas nas análises voltadas para situações de trabalho.

Em relação ao trabalho de ensino, é na Linguística Aplicada e com base na Ergonomia da Atividade e na Clínica da Atividade que as pesquisas têm ganhado um novo contorno, tendo como seus principais representantes no Brasil, Machado (2004), Souza-e-Silva (2004), Lousada (2004); na França, Saujat (2002 e 2004) e Amigues (2002, 2003 e 2004); e na Suíça, Bronckart (2004).

Para Ferreira (apud MACHADO, 2007, p.86), esta nova abordagem pode ser caracterizada como antropocentrada, visualizando o trabalhador em sua multidimensionalidade, observando no mesmo seu funcionamento cognitivo, fisiológico e afetivo social. Dessa forma, passa-se a “[...] considerar o trabalhador como um verdadeiro ator e não como um mero executor de tarefas” (MACHADO, op.cit., p. 86).

De acordo com Bronckart (2004), a interpretação do agir do homem, agir este voltado para o trabalho, precisa de uma análise mais aprofundada, observando aspectos filosóficos, sociológicos e psicológicos que circundam estas atividades e ações humanas. Sendo assim, podemos concordar com a afirmação de Machado (op.cit.), em relação à dificuldade em conceituar trabalho quando a autora assevera que:

Quanto ao conceito de trabalho, verificamos que, nas ciências humanas e nas ciências do trabalho, em particular, há muita dificuldade, até hoje (ou talvez, sobretudo hoje) de se encontrar uma conceitualização universal que abarque todas as formas do agir humano que se desenvolvem em espaços e momentos históricos diferentes, ou mesmo em um momento histórico, que, pré-teoricamente, poderiam ser rotuladas como tal (MACHADO, op.cit., p. 80).

A seguir, traremos algumas considerações sobre o trabalho de professor na tentativa de explicitar estudos e entendimentos que vêm sendo construídos a partir da investigação desta complexa profissão.