• Nenhum resultado encontrado

CONSTRUINDO O LUGAR DA VIOLÊNCIA: ENTRE A CASA E O MATAGAL

SUMÁRIO

CONSTRUINDO A VÍTIMA DE CRIME SEXUAL 177 4.1 PASSIVA E INOCENTE: IDEALIZANDO A VÍTIMA DE

3 CAPÍTULO 2 – CONSTRUINDO O CRIMINOSO SEXUAL: ENTRE DEGENERADOS E REPRESENTANTES DA

3.3 CONSTRUINDO O LUGAR DA VIOLÊNCIA: ENTRE A CASA E O MATAGAL

A primeira metade do século XX significou para Fortaleza muitas mudanças estruturais e sociais que afetaram o espaço da cidade e também as relações entre as pessoas que cada vez mais se instalavam na

capital. A cidade desenvolvia-se ao mesmo passo que via a sua população crescer em grande escala, recebendo constantemente inúmeros migrantes do interior do estado. Linhas de bondes, novos espaços de sociabilidades, cafés, bares, ruas de comércio, iluminação pública, dentre outras mudanças, redesenharam a paisagem da capital e possibilitaram um sem número de relações sociais que tinham no espaço público o seu lugar de visibilidade.

No entanto, profundamente marcada por desigualdades de gênero, de raça e de classe, a cidade de Fortaleza era palco de diferentes experiências sociais, em que viver e sobreviver significava estar em redes muitos complexas de conflitos e relações humanas. Mulheres, homens, jovens, crianças e pessoas idosas vivenciaram e experimentaram esse espaço de formas diversas, observando, sentindo e interpretando de formas variadas essas redes de relações nas quais estavam inseridas. Como afirmou a historiadora Marta Emísia, “a cidade não podia mais ser pensada no singular” (BARBOSA, 1996, p. 15), eram muitas cidades construídas aos olhos das mais diferentes experiências.

Nesse sentido, as fontes criminais são bastante importantes para a observação das diferentes relações entre as pessoas e a cidade, pois possibilitam o contato com um espaço em disputa, com uma cidade que se constrói nas relações cotidianas entre as pessoas que a habitavam, uma cidade marcada por normas, visíveis ou invisíveis, e também, pelas subversões a essas normas. Marcadas pelas contendas cotidianas que envolviam os mais diferentes segmentos sociais, essas fontes são frutíferos registros da pluralidade de vivências dos indivíduos com os espaços que compunham a capital de inícios do século XX. E nesse sentido, o espaço da cidade deve ser pensado como imbuído de diferentes significados entre aqueles sujeitos sociais que os constroem e lhes dão vida.

As fontes criminais possibilitam mais do que uma observação diversificada das vivências das pessoas. Elas permitem, também, pensarmos sobre as disputas discursivas em torno de elementos que faziam parte do cotidiano e das relações de poder entre as pessoas. No que se refere aos crimes sexuais, a realização do crime, as pessoas envolvidas e os elementos morais que circunscreviam toda a situação criminal eram, a cada depoimento, disputadas e construídas. No entanto, além desses elementos que intervinham diretamente na elaboração de

uma defesa ou de uma acusação, a narrativa sobre o momento de ocorrência da violência e dos lugares em que os crimes eram cometidos também foram pontos fundamentais de fabricação das versões existentes nos processos criminais e indicavam relações diversas com os espaços de sociabilidade, de vivência, e as condições simbólicas que configuravam esses lugares.

A cidade iluminada – denominada por muitos cronistas como a “loura desposada do sol” – que se modernizava e desenvolvia, dava lugar, muitas vezes, a uma cidade escura, cheia de perigos e marcada por relações conflituosas entre os que buscavam embelezá-la e moralizá-la, e aqueles que sobreviviam às desigualdades também tão marcantes do seu processo de desenvolvimento urbano. Um lugar sublinhado pelas influências comportamentais francesas, pelo desenvolvimento comercial de modernos artigos de consumo, pela introdução do automóvel na vida urbana e pelo cultivo dos melhores valores morais, aparecia, nos relatos contidos em muitos processos criminais, como uma cidade bastante diferente desses discursos elitistas.

Fortaleza era delineada nos processos criminais como perigosa, cheia de hierarquias, escura, ruralizada, marcada pela violência, vigiada, e, principalmente, misógina. A capital cearense em inícios do século era lugar profundamente marcado por uma supremacia de poder masculino, cuja rua era constantemente vista como espaço que por direito pertenciam aos homens. Ocupar os espaços públicos significava, para as mulheres, atrever-se a estar em um espaço que parecia não ser seu por direito. Em sintonia, a casa era reforçada em muitos dos discursos construídos nessas ações como um espaço que primeiramente simbolizava um lugar de proteção para as mulheres. Era no espaço doméstico que as mulheres pareciam não estarem à mercê dos “perigos” que o espaço urbano representava para elas. Não sem resistências, seja para as mulheres ricas, ou principalmente para as mulheres pobres, essa cidade, cheia de novas sociabilidades, lazeres e valores se apresentava constantemente como um lugar de muitas restrições e segregações, e que simbolicamente se construía como um lugar não-feminino.114

114 A dissertação de mestrado de Idalina Freitas, ao analisar os casos de crimes

contra as mulheres na cidade de Fortaleza, também se refere às simbologias e discursos sobre as relações entre mulheres e espaço urbano. Ter acesso ao espaço urbano, em especial para as mulheres que inevitavelmente ganhavam a vida nesse espaço, significava estar suscetível a uma série de violências, sejam

É a partir desses conflitos que esse tópico busca analisar a forma com que apareceram os lugares em que as violências sexuais foram realizadas. Não em uma perspectiva que vê os relatos judiciais apenas como informações sobre o crime que era julgado, ou mesmo sobre a Fortaleza de inícios do século, mas principalmente, que os vê como elaborações discursivas feitas pelas pessoas que eram chamadas a depor. A demonstração do lugar de acontecimento do crime e suas circunstâncias foram fundamentais na composição dos depoimentos construídos pelos que elaboravam denúncias e pelos que buscavam defender alguma das partes envolvidas. O lugar em que se dava a prática criminosa demonstrava muito do ambiente em que as pessoas ofendidas e denunciadas circulavam, e apareciam como significantes do nível de violência do próprio ato sexual.

Um dos pontos que mais me chamaram atenção durante o desenvolvimento dessa pesquisa se referiu à forma como os lugares em que aconteceram essas violências eram explorados nas versões elaboras pelas pessoas depoentes. O quintal, a moita, o matagal, os caminhos desviados, as “casas desonestas”, dentre outros espaços, foram recorrentemente ressaltados nos depoimentos e pareceres como forma de evidenciar o caráter violador, pernicioso, perverso e imoral desses crimes, além do caráter simbólico construído sobre esses espaços. Dos processos aqui estudados, um total de noves casos – cinco Estupros (art.268 e 269) e quatro Atentados ao Pudor (art. 266) – foram representados, pelas mais diversas falas testemunhais, a partir de uma exploração das imagens sobre as cenas constituidoras dos crimes.

Construir um relato marcado pela escuridão, pela “cumplicidade da noite”, pelos lugares ermos ou pelas “matas silenciosas” significou em muitos desses casos construir discursos sobre a própria violência sexual. Esses lugares podiam demarcar desconfianças entre aqueles que não souberam diretamente sobre o crime, mas que “ouviram falar” que aconteceu “nas matas”; ou mesmo, que a única coisa que sabiam era o fato de os envolvidos terem o hábito de “ir para as matas”; ou que o acusado teria perversamente levado a vítima para o matagal e lá saciado “seus instintos bestiais”.

Os casos de Atentados ao Pudor, majoritariamente compostos por meninos, foram relatados no sentido de explorar muitas dessas cenas em

elas físicas ou simbólicas. O domínio masculino estava, também, relacionado ao

que a violência teria sido praticada. Na década de 1920, os casos de Atentado ao Pudor tiveram nesse elemento um importante e frequente constituidor dos depoimentos analisados. Os crimes contra Francisco Simphonio em 1922, Oswaldo Rodriguez em 1926, e Ligia Bezerra em 1929 foram apresentados em âmbito judicial como violências marcadas por essa questão, em que os espaços da violência eram os espaços do ilícito, do escondido, do escuro e do matagal.

Como visto no capítulo 1, o caso de denúncia de Atentado ao Pudor contra a menor Ligia Bezerra de Menezes teria acontecido quando esta saía em direção à casa de seu tio com a finalidade de levar uma garrafa de leite. Segundo o depoimento das vítimas, Ligia teria sido pega no meio do caminho por um cabo da polícia, que ao levá-la a “uma moita” teria tentando praticar atos libidinosos. Os testemunhos do vizinho José Norberto dos Santos, 40 anos, casado, agricultor, não sabendo ler nem escrever, e da também vizinha Maria Joaquina de Amorim, 35 anos, casada, vivendo de serviços domésticos referiram-se principalmente ao lugar e a forma com que a menor fora abordada para fundamentar seus relatos quanto ao episódio. Disseram, respectivamente:

(...) que soube de ouvir da menor Lygia que vindo da casa do seu tio onde fora buscar uma garrafa de leite e ao saltar uma cerca foi pegada por um soldado de Policia e levada a força para debaixo de uma moita, onde o mesmo soldado tentou affendel-a chegando a desatar os cordões de sua calça (...)115

(...) que momentos apoz a passagem do soldado ahi chegou o Senhor Bezerrinha pai da menor Lygia procurando dito soldado que soube pela própria menor que neste dia e hora vinha da casa de uma tia onde fôra buscar uma garrafa de leite e ao abaixar-se para passar numa cerca de arame farpado viu-se de surpresa agarrada, por um braço por um soldado que a levou a força para debaixo

115

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1929/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 38 e 39.

de uma moita não sabendo a testemunha o que lá foram fazer; Que dito pela própria criança soube que na moita o soldado ainda chegou a levantar-lhe a roupa não sabendo a testemunha para que. (...)116

Embora não quisessem enunciar diretamente que o cabo a teria violentado – receio que poderia ser explicado pelo fato de tratar-se de um cabo de polícia, ou mesmo pelo medo de demarcar publicamente que a menor Lygia teria sido “manchada” –, os testemunhos desse caso buscaram afirmar que souberam do acontecido por “ouvirem dizer” que dito acusado teria desviado o caminho da menor, e que em uma “moita” teria feito algo – que parecia subentendido – que não sabiam afirmar. Dessa mesma forma, a testemunha Maria José Mendes, de 15 anos, lavadeira de roupa em lugar próximo ao local do crime, afirmou em seu depoimento:

(...) que pela própria menor Lygia soube a depoente que esse soldado havia lhe pegado a força a ella Lygia quando vinda da casa de um tio e ao passar por baixo de uma cerca de arame levando-a a força, para debaixo de uma moita, lhe arrancou, digo arrancou-lhe do corpo a calça que vestia, que não sabe nem ouviu dizer para que este soldado fez isto com Lygia; que desconhece o acusado presente e nunca o viu passar naquele trexo do caminho. (...)117 (grifos meus)

Em resumo, a denúncia elaborada pelo promotor João Jorge de Pontes Vieira, após ressaltar o pouco controle dos instintos por parte do réu, também foi marcada pela demonstração do momento e do lugar em que a violência aconteceu.

(...) Vindo a menor Lygia da casa de um tio, onde fora levar uma garrafa de leite, encontrou-se no caminho com o referido cabo que, segurando-a pela mão, fez-lhe uma pergunta qualquer e levou-

116 (APEC), Processo Nº 1929/01. Auto de declaração das testemunhas. p.36-37. 117 (APEC), Processo Nº 1929/01. Auto de declaração das testemunhas. p. 38.

a para junto de uma moita, onde obrigou-a a deitar-se, practicando actos de libidinagem em suas coxas. (...)118

A moita era retratada nessas versões como um lugar em que atos pervertidos e imorais eram praticados. Assim, ou como informação dada e defendida pelos que acusavam, ou como tímidas afirmações de “ouvi dizer que foi na moita” que o caso aconteceu, era que a relação com o proibido e com o violento era construída em muitos desses casos. Esse mesmo aspecto estava colocado nos casos dos menores Francisco Simphonio e Oswaldo Rodriguez, ambos de sete anos de idade. Como abordados no capítulo anterior, os dois casos tiveram a mata como o lugar da prática sexual imoral.

No caso do menino Simphonio, o Atentado ao pudor de que fora vítima teria acontecido no momento em que este se dirigia para a mata com o também menor Francisco Gomes da Silva, para buscar lenha. Quase todos os depoimentos colhidos sobre o caso utilizaram-se da espacialidade como elemento importante para a descrição do crime. Ao relacionar o mato com a prática de imoralidade, muitos desses depoimentos afirmavam os perigos dos lugares ermos e a potencialidade desses locais para o exercício dessas práticas. Neste caso, mesmo que os menores fossem reconhecidamente colegas, e que toda a vizinhança já os tivessem visto brincando e fazendo coisas juntos, foi somente no momento que “foram para a mata” que o ato sexual aconteceu. O relato do próprio denunciado demonstra essas questões. “Respondeu que hontem, cerca das quinze horas, saiu com o menor Francisco Simphonio, filho do cego Simphonio, para o mato (...) que ali convidou o menor, que pode ter de sete a oito anos, a fazerem imoralidade (...).”

119

Já no caso do menino Oswaldo, o acusado João Alves da Silva se utilizou desse elemento para justificar a sua própria defesa. Ao referir-se ao fato de que o menor já era conhecido por praticar “atos de pederastia”, João Alves declarou que convidou o menor para ir às

118 (APEC), Processo Nº 1929/01. Parecer do Promotor. p.2. 119

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1922/01. Auto de declaração do acusado. p.13.

“capoeiras” – lugar de matagal – e que este teria aceitado justamente por saber o que iria ali fazer.

(...) que já tendo ouvido dizer que Oswaldo era pederasta passivo, o depoente o convidou para ir para as capoeiras, perguntando-lhe se já tivera relações com alguém; que respondendo Oswaldo já ter andado com outros, que lhes davam dinheiro, o depoente o levou para os mattos e contra ele praticou actos de libidinagem (...).120 Esses relatos expõem não apenas a descrição de uma Fortaleza marcada pela escuridão, por ambientes ruralizados, que contrastavam com as imagens iluminadas e com as propagandas de desenvolvimento que recorrentemente eram divulgadas no início do século XX sobre a capital. Como nos mostra Marta Emísia, para refletir sobre a Fortaleza de inícios do século é necessário sair do perímetro central da cidade, que tanto era marcado pelos discursos que buscavam os “aformoseamentos”, mas que devemos ingressar nos vários outros recantos que nos mostram “outras cidades”. (BARBOSA, 1996)

No entanto, as reflexões que gostaria de trazer para esse tópico não se remetem apenas à contraposição existente nesses relatos entre uma cidade vivenciada pelas pessoas pobres e uma cidade vivenciada por aqueles que construíam um perímetro urbano, mesmo que as vezes fictício, de modernidade e desenvolvimento. Nesses relatos, há também a construção de um discurso sobre os lugares de violência sexual, dos espaços em que o “pervertido”, o “ilícito”, o “cruel” e o “bestial” acontecem. A violência sexual era marcada pela escuridão, pelas oportunidades fortuitas, pelo “outro” que ameaçava uma ordem moral. O policial imoral, o alcoólatra, o desregrado, o pervertido, e o violento eram os sujeitos dessas violências.

Nesse sentido, durante a exploração das narrativas desses crimes cheguei a algumas indagações: Seria mesmo a violência sexual algo vivenciado apenas em ambientes ermos e distantes? Seria esse tipo de violência marcada pela casualidade de um momento propício, ou a uma situação de “descuido”? Diante do fato de não terem sido encontrados

120

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 01, Processo Nº 1926/01. Auto de declaração do acusado. p. 10.

crimes como incestos ou crimes praticados de forma intrafamiliar nessa pesquisa, podemos perguntar: Será que esse tipo de crime não existiu nesse momento? Atentados ao pudor, Estupros, Corrupção de menores ou Lenocínios não faziam parte de violências praticadas no cotidiano familiar da cidade? Teriam, esse tipo de crime, não encontrado lugar em um espaço de disputas públicas como o processo criminal?

A naturalização do espaço da casa como um lugar feminino, e do ambiente privado como um lugar eminentemente de proteção às mulheres ainda hoje é um discurso que invisibiliza muitas violências contra as mulheres, violências intrafamiliares e domésticas. Como afirmou María Luisa Feminías, ao pensar o estatuto cultural que historicamente marca as legislações sobre o tema na América Latina, a compreensão do privado como um aspecto “natural” do feminino é um dos principais desafios para a construção de legislações mais complexas sobre o tema. Disse:

Ese lastre histórico y conceptual ha impedido por siglos generar figuras penales que reconozcan, hagan visible y apliquen pena para los delitos de violencia contra las mujeres, sobre todo en el espacio “domestico”. Debido también al peso de la tradición y de “las buenas costumbres” tales delitos no suelen denunciarse o, si se los denuncia, pasan a formar parte del gran conjunto de los “delitos menores” (…) (FEMENÍAS, 2009, p. 52) Nesse sentido, a divisão do espaço público e privado como elementos constituídos de um discurso de proteção feminina, ou de proteção familiar – já que é possível estender a compreensão para as crianças – deve ser entendida não como simples esferas da sociedade, mas como “clasificaciones culturales y etiquetas teóricas”. (FEMENÍAS, 2009, p. 52) Ou seja, pensar dessa forma nos ajuda a entender muitas das disputas discursivas em torno da violência sexual, e também, sobre os acusados de crimes sexuais.

Pensar as espacialidades narradas e disputadas nos depoimentos desses processos é reflexionar sobre quais os lugares de violência sexual que chegavam aos tribunais de justiça e que construíam discursos sobre o próprio caráter desses atos. A excepcionalidade que marcava a construção de muitos dos denunciados, assim como as narrativas em torno dos lugares em que as agressões aconteciam, também eram fatores

importantes na construção de discursos sobre a sexualidade sadia e sobre a violência sexual. Segundo grande parte dos casos, o quintal, a mata, o matagal, a moita, assim como outras “localidades” em que se davam os crimes, eram os lugares privilegiados pelos agressores que buscavam saciar seus “instintos bestiais”.

No processo contra “José Sodoma”, o ambiente no qual o crime teria acontecido também mobilizou diferentes relatos e foi objeto de disputa entre as pessoas envolvidas. Enquanto os que corroboravam com a versão denunciativa afirmavam que a violência teria sido praticada nas “matas do Urubú”, no momento em que a menor Anna Elias fora buscar lenha no mato, a versão sustentada pelo acusado buscava salientar que o primeiro ato sexual que teria tido com a vítima – que segundo essa versão não seria a primeira relação da menor – acontecera dentro de sua própria casa, sob a vista dos pais de Anna Elias. O acusado declarou:

(...) que é verdade – que no dia 8 (oito) de março deste anno, cerca das 12 (dôze) horas (meio dia), têve pela primeira vêz, relações sexuais com a sobredita menor – Anna Elias França Moura, familiarmente tratada por “Naninha”, em a própria casa da mesma (...) que o acto, têve logar na rêde do declarante, na sala de vizitas, sendo que por essa occasião tanto Elias França de Moura, vulgo “Pereira”, como sua mulher – que se chama -Maria – paes de Naninha estavam em casa, deitados no quarto vizinho a dita sala, descançando pois era um dia de domingo (...). (grifos meus) 121

A tentativa de deslocar o lugar do ato sexual para dentro da casa da menor foi uma tentativa de descontruir o próprio caráter de violência da ação. Enquanto grande parte das testemunhas relatavam saber que a menor teria sido violada nas matas, e que justamente por isso um resgate aos pedidos de socorro era quase impossível, o acusado buscava salientar que Anna Elias era filha de pais displicentes, e por isso, o acusado teria se permitido ter práticas sexuais com a garota. No entanto,

121

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04. Auto de declaração do acusado. p. 45.

a maioria dos depoimentos, em especial o da própria Anna Elias, ressaltavam a mata e a impossibilidade de reação como os elementos principais do momento do crime. Disse que o acusado,

(...) ali chegando e encontrando a declarante sozinha, a enganou e dizendo que a prima dele (...)