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SUMÁRIO

CONSTRUINDO A VÍTIMA DE CRIME SEXUAL 177 4.1 PASSIVA E INOCENTE: IDEALIZANDO A VÍTIMA DE

3 CAPÍTULO 2 – CONSTRUINDO O CRIMINOSO SEXUAL: ENTRE DEGENERADOS E REPRESENTANTES DA

3.1 A VIDA ERRANTE: HOMEM DE COR, DESREGRADO E SEM MORAL

O trecho acima trata do relatório do delegado responsável pelo caso de Estupro da menor Maria da Conceição em 1926. Um dos grandes elementos usados pelos delegados e pelos homens da justiça como forma de construir a imagem dos réus foi mostrar as polaridades físicas e psicológicas existentes entre os denunciados e as ofendidas. Esse trecho refere-se às imagens existentes na Ficha de Identificação do denunciado Manoel Norberto, que constava sua fotografia e a da vítima, além dos seus dados pessoais.

63 Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série:

Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1926/02. Relatório do Inspetor. p.18.

A fotografia como utensílio utilizado nos processos criminais na cidade de Fortaleza no início do século XX era algo bastante incerto, aparecendo mais constantemente a partir dos anos 1920, colaborando na identificação e qualificação dos acusados que chegavam às delegacias da cidade. Embora alguns dos processos utilizados nesta pesquisa possuam fotografias, e geralmente apenas dos réus, as imagens geralmente encontram-se desgastadas, dificultando a visualização das fisionomias fotografadas. Diferentemente da regra, no processo contra Manoel Norberto em 1926, além das imagens produzidas na delegacia se encontrarem em excelente estado de conservação, na Ficha de Identificação existia tanto a foto do acusado, como a da ofendida.

A fotografia retirada de Manoel Norberto, como todas as outras imagens existentes dos acusados, foi retirada na delegacia, e neste caso após a sua prisão preventiva; enquanto que a imagem de Maria da Conceição foi produzida no leito da Santa Casa de Misericórdia, no momento em que a menor se encontrava internada após o acontecido. É possível pensar o empenho realizado para se registrar a condição de enfermidade da vítima, já que houve todo um deslocamento para a produção de sua imagem no leito do hospital, situação não muito comum em comparação a outros processos.

Esses retratos compuseram um texto na Ficha de Identificação do acusado. Este aparece representado já no inquérito policial na condição de réu. Disposto em um retrato de frente e perfil em que se pode observar uma fisionomia séria, nessa imagem também foi demonstrada a mediação craniana do acusado. Essa apresentação de Manoel Norberto na Ficha de Identificação estabelece um conflito direto com a imagem exposta da vítima. Maria da Conceição foi apresentada a partir de uma composição que evidencia sua fragilidade e enfermidade. A fisionomia de sofrimento, juntada à exposição de sua imagem envolvida nos lençóis do hospital, produziram uma representação da figura da vítima nesse processo. Como afirmou o promotor acima, a imagem da “pequenina vítima” foi mostrada como forma de conflito à imagem construída sobre a figura do réu.

A existência da fotografia de Maria da Conceição na Ficha de Identificação, que teoricamente seria exclusiva para classificação, medição e representação do acusado, não foi feita de forma inocente. A tentativa de conflitar as imagens dos acusados e das ofendidas foi uma tática discursiva bastante explorada pelas diversas pessoas chamadas a

depor sobre os casos de crimes sexuais, pelos representantes da justiça, especialmente pela promotoria. Para se discutir a violência sexual era de fundamental relevância analisar os comportamentos, os hábitos, as sociabilidades, o “histórico” de acusados e ofendidas. O significado da violência, como visto no capítulo anterior, estava diretamente relacionado às condutas daquelas e daqueles que estiveram envolvidos(as).

No caso dos denunciados, saber suas procedências, suas características mais marcantes e suas reputações foram os principais questionamentos efetuados na condução da investigação policial, e também, das audiências judiciais. Dessa maneira, a vizinhança e a parentela eram peças chaves nessas construções, pois era a partir de seus depoimentos que se conhecia a “fama” das pessoas envolvidas, requisito fundamental na formação da culpa dos acusados e norteadores dos diferentes embates existentes nessas ações. E nesse sentido, o objetivo deste tópico é analisar os conflitos estabelecidos entre os “conhecidos” e os acusados que compuseram os crimes aqui estudados. Com o objetivo de problematizar quais as principais questões utilizadas como forma de acusação e de defesa dos homens denunciados por crimes sexuais, e quais as principais embates em torno dos ideais de masculinidade que circulavam em Fortaleza no início do século passado, neste ponto, pretendo discutir como esses elementos foram apresentados em âmbito judicial e puderam compor discursivamente os homens colocados em julgamento.

Compreendendo as diferentes relações de poder existentes no cotidiano dos populares busquei mapear os principais elementos mobilizados nos relatos dos depoentes para a qualificação ou desqualificação das pessoas acusadas nesses processos. E desse modo, pretendi refletir sobre as diferentes relações que essas pessoas estabeleceram com a cidade em inícios do século, atentando para a forma com que as interpretações sobre “o criminoso sexual” e a própria violência sexual se constituíam em âmbito judicial naquele momento.

A figura de Manoel Norberto é bastante interessante para pensar a imagem do criminoso debatido em fins do século XIX e inícios do século XX no Brasil. Retirante do interior, negro, pobre, “dado às bebidas”, possuidor de doenças venéreas, acusado de roubo, casado e reincidente em crime de estupro, o acusado tinha várias das características mais contrárias à figura do “homem de bem” da

sociedade cearense nesse período. A necessidade de se construir uma figura masculina cujos atributos centrais fossem marcados pelo bom trabalhador, pela disciplina, pela boa “higiene”, assim como pelo exercício da autoridade familiar, era diretamente confrontada com a vida de muitos dos acusados de diferentes crimes cometidos na cidade, em especial dos crimes estudados nesta pesquisa.

Os relatos das testemunhas que faziam parte do cotidiano das pessoas envolvidas em processos criminais – como familiares e vizinhos (e em muitos casos, as pessoas eram as duas coisas) – eram fundamentais na confirmação, ou não, da boa conduta daqueles que estavam comprometidos em ações judiciais. As intrigas cotidianas, os preconceitos raciais e as hierarquias sociais eram constantemente manifestadas nos relatos que buscavam construir as defesas e acusações durante essas ações. No caso dos acusados de crimes sexuais, as exigências dos “papeis de gênero” que teoricamente deveriam assumir, eram condutoras centrais de significação desses relatos.

O uso de referenciais de gênero podia ser percebido no seu entrelace com as características raciais e com a condição social em que estes acusados estavam inseridos, e, muitas vezes, buscavam mostrar “a vida desregrada” levada por esses homens, como forma de estigmatização social e racial. Essas questões marcaram diretamente o “julgamento” dos comportamentos e condutas de homens e mulheres na cidade de Fortaleza em inícios do século XX.

Como afirma a historiadora Margareth Rago, a intenção de fazer com que os homens pobres, especialmente os trabalhadores fabris, fossem disciplinados a assumir a rotina de trabalho como marcadora do seu tempo, a dedicar-se a um casamento monogâmico, e a aproveitarem o ambiente do lar como principal espaço de lazer e sociabilidade, fez com que vários setores da sociedade brasileira, como os médicos, juristas, burgueses donos de fábricas e a Igreja Católica, se somassem na propagação de um perfil de “homem ideal” para as cidades que se modernizavam. (RAGO, 1985, p. 180-181) Apesar de se referir a uma realidade de São Paulo, muitos dessas questões que visavam a disciplinarização dos homens, em especial dos pobres, também fizeram parte da Fortaleza de inícios do século XX. Assim, muitas das contendas diárias em que esses homens estavam envolvidos eram marcadas por essas referências, seja nas acusações e defesas entre as testemunhas, seja

pela atuação dos aparelhos estatais da polícia e da justiça, e dos médicos legistas.

Para o caso da capital cearense, além dos desafios colocados para as elites da cidade sobre a disciplinarização para fins de modernização e para a construção da imagem de um “homem de bem”, o contra fluxo de misérias, representado pelos aumentos populacionais periódicos, decorrentes das migrações de pessoas pobres para a capital, fez com que os embates cotidianos relacionados à criminalidade se expressassem de maneiras mais complexas e específicas. Nesse sentido, os discursos sobre a masculinidade, a violência e a sexualidade assumirem outras referências sociais.

No caso do acima citado Manoel Norberto, esse entrelaçamento foi bastante característico dos diferentes depoimentos que compuseram os dois processos em que esteve envolvido. Grande parte dos adjetivos atribuídos a ele foram lembrados, enfatizados e debatidos pelas diferentes pessoas que depuseram no inquérito policial e no processo de acusação, e também, pelas “autoridades científicas” que trataram de “decifrar” as origens de seus comportamentos desviados. Dos testemunhos ouvidos nos dois processos contra Norberto, as características que mais lhe foram atribuídas, se referiam à sua cor, e também, ao fato de que o acusado possuiria uma vida “desregrada”.

O caso em que fora acusado em 1926, consistia em um estupro realizado contra a menor Maria da Conceição, de 11 anos, no momento em que sua mãe encontrava-se trabalhando fora de casa. Essa menor (retratada na imagem mostrada anteriormente) era filha única de uma mãe viúva, e teria sido estuprada no momento que se encontrava sozinha em casa. A cor do acusado foi elemento marcante na descrição da vizinhança sobre a figura de Manuel Norberto, o que por sua vez, pode ser explicado pela falta de proximidade deste com a vizinhança que fora chamada a depor no caso, pois se encontrava a pouco tempo na cidade. Esse elemento fez com que Manuel Norberto fosse descrito no decorrer da formação da culpa, principalmente, pelas suas características físicas. A questão da cor apareceu com frequência como a principal característica e a principal desqualificação encontrada nos relatos das pessoas que depuseram em sua acusação.

O denunciado era pouco conhecido das pessoas, vivendo a não muito tempo no bairro do Alagadiço, lugar em que teria acontecido o crime, e, portanto, poucas questões sobre seus antecedentes conseguiram

ser exploradas durante o julgamento. No entanto, é possível perceber que a vizinhança ocupou papel fundamental na caracterização do acusado, ressaltando as características que pareceram melhor definir o seu aspecto de criminoso, e o crime em questão. A demonstração de seus caracteres físicos, e o relato de um furto que teria sido cometido na oportunidade do estupro da menor, buscava indicar como o acusado era um homem “desregrado”, que além de violentador de menores, era também um “bêbado” e um “ladrão”.

Manoel Norberto era um retirante oriundo do Crato64 e estava há alguns anos “indo e vindo” tentando a vida em diferentes cidades. Sua profissão – declarada apenas no segundo processo – é de “agricultor”, e segundo ele, estava em Fortaleza em busca de outros “afazeres”. As sequentes secas na região, certamente, tiveram grande influência nas frequentes migrações efetuadas pelo acusado, especialmente na década de 1920. A vinda para Fortaleza em meados do ano de 1926 foi mais facilitada porque durante esse período ainda não havia sido construído, na região do Crato, o Campo de Concentração do Buriti que tinha o objetivo de barrar a vinda de retirantes da seca de 1932 para a cidade de Fortaleza. No primeiro processo contra Norberto, em 1926, pouco foi aprofundado sobre o seu histórico de vida, o que aconteceu de forma bastante intensa em 1933 quando já era reincidente em crime de estupro, e se encontrava novamente na cidade de Fortaleza, mesmo com as iniciativas de conter muitos retirantes em suas terras natais.

Norberto, depois de cumprir pena pelo primeiro caso de estupro e de ter sido preso várias outras vezes por delitos como roubo e agressão física, aparece no segundo processo como um criminoso perigoso, tendo o seu histórico social e biológico estudado durante o julgamento.65

64 O Crato é um município que se encontra no extremo-sul do Ceará e que faz

divisa com o estado de Pernambuco, compondo a Microrregião chamada Cariri. Essa região sofrera grandemente com as secas que assolaram a região em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Foi um dos lugares onde foram construídos campos de concentração com o intuito de barrar a migração do interior do estado para a cidade de Fortaleza. O “campo do Buruti” construído em abril de 1932, e popularmente conhecido como o “curral do Buriti”, chegou a abrigar, segundo o historiador Frederico Neves, cerca de 60 mil retirantes da seca de 1932, e ficou conhecido como um dos maiores campos de concentração construídos no Ceará durante esse período. (NEVES, 1995, p. 109)

No processo em 1926, a participação da vizinhança fora fundamental para a sua identificação, prisão e condenação. O crime acontecera no bairro do Alagadiço, lugar onde vivia grande parte das famílias pobres de Fortaleza, e também, lugar de morada de muitas pessoas originárias do antigo Campo de Concentração do Alagadiço, construído na seca de 1915 na própria cidade de Fortaleza.66 Segundo os testemunhos do Inquérito policial, o acusado antes de praticar o crime contra a menor, esteve em uma taberna onde “comprou pão, bananas, bebeu aguardente e retirou-se” 67; e depois de já encontrar-se bêbado, teria se dirigido à casa da ofendida e praticado o estupro. A vizinhança, que primeiramente prestou socorros à menor, ao relatar e denunciar o caso ao sub-delegado, apresenta o acusado a partir de suas características físicas mais marcantes. Essas características observadas a partir dos Autos de declaração foram expressas referindo-se às suas características raciais, em especial, a sua cor.

Podemos observar tais questões nos testemunhos de Antonio Ferreira da Silva, de 28 anos, trabalhador, residente no Alagadiço, não sabendo ler nem escrever; Alvina Ferreira da Silva, 16 anos, lavadeira, residente no Alagadiço, não sabendo ler nem escrever; e de Abel de Oliveira, carpinteiro, residente no Alagadiço, não sabendo ler nem escrever, sendo este, o dono da taberna em que o réu teria bebido antes do momento do crime. Nos relatos emitidos para o inquérito policial, respectivamente, declararam:

(...) Que mais tarde, soube ter sido preso o negro acusado, cujo crime confessou; Que uma vez preso o acusado soube chamar-se Manoel Norberto dos Santos (...) Que elle testemunha sabe ter o acusado, após a perpretação do crime, furtado da casa de Maria Pedra dois pratos e

será melhor explorada no tópico 2.2 desde capítulo.

66 Segundo Neves, a tática utilizada pelos administradores públicos sobre a seca

de 1915 fora marcada por uma tentativa de isolar os retirantes na própria cidade de Fortaleza, aglomerando-os no Campo de Concentração do Alagadiço, como forma de limitar a circulação desses na cidade. Já na seca de 1932, o objetivo era controlar a vinda dos retirantes ainda no interior, buscando limitar ao máximo a chegada destes na capital. (NEVES, 1995, p. 109)

uma tijella e vendidos em uma bodega (...) 68 (grifos meus)

(...) Que mais tarde a depoente soube ter sido preso o auctor do crime da menor Maria, o qual é um negro de nome Manoel Norberto (...); Que o acusado depois de haver commetido o crime, furtou da casa de Maria Pedra dois pratos e uma tijella os quaes vendeu em uma bodega (...)”. 69

(grifos meus)

(...) Que logo depois, chegara na bodega da testemunha duas praças do “Esquadrão de Cavalharia”, montadas, as quaes de ordem do sub- delegado de Barro Vermelho, Tenente David, indagaram da testemunha se por alli não havia passado um preto vestindo uma calça escura e uma camisa de riscado (...); Que sendo lembrado por uma moça o nome do accusado, ella testemunha informou então as praças que, de facto, em sua bodega estivera o accusado o qual lhe vendera dois pratos e uma tijella; Que, nessa ocasião, as duas praças referidas contaram á testemunha o que havia se passado, isto é, que o tal preto que procuravam havia estuprado uma menor (...); Que logo que soube que os objectos que havia comprado ao accusado eram furtados, fez entrega immediata dos mesmos ao Tenente David, os quaes foram restituídos ao seu dono, que era Maria Pedra, mãe da offendida, de cuja casa o accusado havia furtado (...) 70. (grifos meus)

Além das narrativas desses testemunhos, a descrição realizada pela vizinha da menor Joanna Ferreira da Silva, 40 anos, lavadeira, residente no Alagadiço, não sabe ler nem escrever; e pela mãe da ofendida, Maria Pedra, 38 anos, lavadeira, não sabendo ler nem

68

(APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 13-14.

69 (APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 14-15. 70 (APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 15-16.

escrever, também expressaram essas referências quanto aos marcadores físicos do acusado. Disseram, respectivamente:

(...) Que no dia dezoito do corrente, mais ou menos a uma hora da tarde, Maria Pedra, que se achava lavando roupa juntamente com a testemunha, fora avisada de que sua filha Maria havia sido estuprada por um negro; Que Maria Pedra sahiu correndo em procura de casa, sendo acompanhada pela testemunha (...).71 (grifos meus)

(...) Que ao encontrar sua filha, foi perguntando o que havia acontecido, ao que esta respondeu que um negro chegando em casa havia pedido um caneco de agua (...); Que o accusado ao retirar-se de sua casa, onde cometteu o crime, conduziu um casal de pratos e uma tijella, os quaes vendeu em uma taberna (...); Que, mais tarde, soube que o criminoso fôra preso por praças de Cavallaria e ter confessado o crime; Que soube depois igualmente que o autor do estupramento de sua filha é um negro de nome Manoel Norberto Maximiano dos Santos (...)72. (grifos meus) Dos relatos emitidos pelas testemunhas acima, as referências feitas ao acusado Manoel Norberto, em grande maioria, realizadas junto aos termos “negro” ou “preto” pareciam indicar mais do que a cor da sua pele, mas também, ser usadas como atribuição às dimensões social, econômica e psicológica do acusado. Nesse sentido, as questões raciais somaram-se às qualificações destacadas pela vizinhança acerca do denunciado. Como afirma Stuart Hall, descrevendo a sua compreensão do conceito de raça, afirma que:

(...) raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais

71 (APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p. 15-16. 72 (APEC), Processo Nº 1926/02. Auto de declaração das testemunhas. p.10.

(discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como também marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro. (HALL, 2006, p. 63)

Nesse sentido, foi na “frouxidão” desses usos e dessas representações sociais, identificados nos elementos de diferenciações físicas e simbólicas, que os processos contra homens negros na cidade de Fortaleza estavam repletos de termos que marcavam diferenciações entre as pessoas e os grupos. O elemento da cor da pele era notoriamente evocado como forma de hierarquização entre as partes interessadas que compunham as ações criminais.

No caso de Norberto, além de uma evidente identificação, a hierarquização colocada para sua cor foi amplamente utilizada como uma característica desqualificadora entre os populares que depuseram sobre o ocorrido. A marca dessa referência física esteve presente nas duas ações que o envolveram. A cor foi o elemento que mais o identificou no momento da deflagração do delito e foi um dos principais adjetivos acusatórios usados no caso.

Dos processos de crimes de Estupro analisados entre os períodos de 1900 e 1940, a referência à cor dos acusados de forma tão repetida foi feita, principalmente, entre os casos que envolviam homens declaradamente negros, como nos processos contra Manoel Norberto (em 1926 e 1931). Este foi um dos poucos acusados marcadamente apresentados como “negro” ou “preto”, e hierarquicamente exposto como característica inferiorizada. Durante esse período, poucos acusados tiveram suas características raciais tão evidenciadas nos relatos testemunhais. Na maioria dos casos, não é feita nenhuma menção à cor dos acusados, como pode ser percebido na tabela abaixo.

Tabela 02: Número de processos com referência à cor dos acusados Nº total: 25 casos Estupros Atentados ao pudor

Com referência 03 01

Essas “ausências” podem ser entendidas pelo fato de que para casos que envolvessem pessoas brancas, ou mesmo pardas, a relevância em se ressaltar a cor de forma desqualificadora, ou mesmo referir-se a ela, não fosse um elemento eminentemente importante, diferentemente dos casos que envolvessem pessoas negras. O uso da referência à cor na