• Nenhum resultado encontrado

DE DESREGRADOS A DEGENERADOS: ALCOOLISMO E DOENÇAS VENÉREAS

SUMÁRIO

CONSTRUINDO A VÍTIMA DE CRIME SEXUAL 177 4.1 PASSIVA E INOCENTE: IDEALIZANDO A VÍTIMA DE

3 CAPÍTULO 2 – CONSTRUINDO O CRIMINOSO SEXUAL: ENTRE DEGENERADOS E REPRESENTANTES DA

3.2 DE DESREGRADOS A DEGENERADOS: ALCOOLISMO E DOENÇAS VENÉREAS

O Primeiro Promotôr de Justiça apresenta a Vª. Ex.cia. denuncia contra José Pereira do Nascimento, vulgo José Lobato, também conhecido como José Sodoma, pelos factos delictuosos que passo a expôr. Factos delictuosos: – O denunciado depois de ter sido prêso, processado e condemnado varias vezes por alguns dos muitos crimes que cometteu, aqui e alhures, em Maio do corrente, nas mattas do Urubú estuprou, com o emprego de seducção e de ameaças, a menor impúbere Anna Elias de França, com cujos paes morava ha alguns dias. Effectuoso o estupro, Lobato capta referida menor e com ella vagueia pelo interior do Estado, onde provia sua subsistência e de sua victima com o produto de roubos que diariamente fazia, até que foi prêso no município de Acarape e para aqui remetido, tendo sido encontrado em companhia de sua victima. O denunciado, pela insensibilidade moral, destaca-se como um dos elementos mais perniciosos ao convívio social que tem inscripto seus nomes na crônica judiciaria do Estado. Confessa, com o maior cinismo e mais revoltante sangue-frio todas suas proezas. (...).93 (grifos meus)

No trecho da denúncia elaborada pelo Promotor de Justiça contra “José Sodoma”, o caráter “pernicioso” mostrado na pessoa do réu é apresentado pelo representante jurídico a partir do seu longo histórico em vários tipos de crimes, pelo seu “cinismo” e “sangue-frio”, que segundo ele, foram constatados na sua confissão. Preocupado em evidenciar, mesmo que de forma resumida, os aspectos degenerativos do acusado – a fim de fundamentar a sua denúncia e a possível punição – o promotor expôs os aspectos que demonstrariam a sua “insensibilidade

93

Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), Tribunal de Justiça, Série: Ações Criminais, Sub-série: Crimes Sexuais, Caixa 02, Processo Nº 1931/04. Parecer da promotoria. p. 02.

moral”. As condutas consideradas desregradas de “José Sodoma” eram fundamentadoras da construção de uma imagem perigosa e pervertida para o réu.

De pessoas sem moral e “sem vergonha” construídas nos discursos populares sobre a conduta desses homens, os acusados de crimes sexuais na cidade de Fortaleza passavam aos poucos, especialmente a partir do fim da década de 1920, a serem considerados homens perigosos e criminosos, que necessitavam de uma abordagem diferenciada por parte dos discursos oficiais. A figura do degenerado quando problematizamos essa tipologia criminal e pensamos a partir de uma ótica de gênero pôde assumir diferentes facetas quanto à questão da construção de discursos sobre sexualidade e violência.

Alguns elementos foram fundamentais na construção dos discursos sobre alguns denunciados, como a posse de doenças venéreas que muitas vezes era sinônimo de uma vida sexualmente pervertida; e o hábito do consumo de bebidas alcoólicas, que segundo os discursos oficiais, eram fortes indicadores de uma vida desregrada, e auxiliavam a elaboração de um discurso que construía sujeitos degenerados, criminosos e doentes.

Durante a primeira metade do século XX o consumo do álcool foi tema grandemente debatido pelas elites reformadoras dos principais centros urbanos do Brasil, e era uma questão estratégica na disciplinarização dos pobres, em especial os homens. Médicos, representantes da justiça e policiais – estes últimos que agiam cotidianamente em espaços relacionados ao consumo de álcool – empenhavam-se em desqualificar essa prática, que era entendida como geradora de indisciplinas sociais e de degeneração racial. O “alcoolismo” foi visto como um problema social que destruía o ambiente familiar e ameaçava a ordem urbana das cidades que se organizavam a partir dos padrões modernos de trabalho, família e de controle de hábitos.

Na cidade de Fortaleza, o consumo do álcool também era visto como um empecilho para os bons costumes, e era frequentemente entendido como o causador de desordens urbanas e também como elemento de destruição familiar. Nos processos de crimes sexuais aqui analisados o álcool apareceu de forma bastante dúbia quando analisamos as situações que permearam a prática desse tipo de violência. Ora aparecia como elemento de acusação que provava os maus hábitos do

denunciado, ora aparecia como elemento de defesa, e que justamente devido a um possível estado de embriaguez, o acusado merecia absolvição.

Para os discursos oficiais, na maioria dos casos, era sob o efeito do álcool que essas violências se materializavam, e que nele encontravam um potencial de execução. O álcool aparecia como uma resposta primeira para a justificação do cometimento do crime. Aparecia quase como um sujeito da ação. Além disso, mesmo que não se encontrasse embriagado no momento do crime, o acusado que possuísse o hábito do consumo de bebidas também tinha sua conduta interpelada pelo debate do alcoolismo. Nessa perspectiva, o denunciado era representado pelos discursos oficiais como um homem que mantinha hábitos incompatíveis com a disciplina exigida para um homem de bem e trabalhador.

No entanto, em alguns outros casos, era justamente pelo fato de o acusado se encontrar sob o efeito de álcool no momento do crime, que se construíam seus argumentos de defesa e era buscada a sua inocência. Esta perspectiva se relacionava, especialmente, com os relatos que visavam defender os acusados – como os emitidos pelos próprios denunciados, pelas testemunhas de defesa e pelos seus curadores. E assim, esses relatos acabavam por mobilizar imagens que se aportavam nas referências de que o álcool fazia parte, de algum modo, das sociabilidades masculinas, ou que a prática do crime só acontecia porque o denunciado encontrava-se “fora de si”.

De formas diversas e muitas vezes contraditórias, o consumo do álcool apareceu registrado em cinco crimes analisados nessa pesquisa. Nesses crimes, a descrição do acusado como alguém que teria consumido bebidas alcóolicas antes da prática da violência, ou que era um sujeito habitualmente “dado às bebidas” era frequentemente contraposta aos discursos sobre a masculinidade trabalhadora que se queria construir entre os homens pobres da cidade. A questão da violência sexual dificilmente era entendida como algo que expunha desigualdades de condições sociais entre homens e mulheres, ou aparecia como crítica a uma masculinidade permissiva existente na sociedade naquele momento. Em regras gerais, a violência sexual era entendida como um desdobramento de um mau comportamento de mulheres e homens que se desviavam dos “papéis sociais” que originalmente deveriam nortear as suas condutas.

A preocupação com o “monstro do alcoolismo” na cidade de Fortaleza ficou registrada em uma semana educativa mobilizada por diferentes setores da sociedade, com o objetivo de orientar as pessoas, especialmente os homens, quanto aos perigos que envolviam o consumo de álcool. Essa prática era mostrada como destruidora não apenas da pessoa que a mantinha, mas também, de todas aquelas que estavam ao seu redor, e, por conseguinte, de toda a ordem social que ficava marcada negativamente tanto do ponto de vista social como do ponto de vista racial, já que o álcool era visto como elemento fundamental na degeneração da raça brasileira.

A “Semana Anti Alcoolica” promovida no ano de 1928 na cidade visibilizou o interesse local das elites por empreitar uma campanha que alertasse para os perigos sociais trazidos pelo consumo do álcool. Embora se referisse a uma orientação nacional expedida pela Liga Brasileira de Hygiene Mental, os debates sobre o tema interessavam àqueles setores que queriam assegurar a ordem pública, as regras familiares e aos que queriam combater a degenerescência da raça, tão fortemente ameaçada pelo alcoolismo. Organizada pela Igreja Católica, pela Imprensa Cearense, pela Associação de Classe e pelo Centro Médico Cearense, essa semana contou com mais de seis palestras e conferências em diferentes pontos da capital, que buscavam educar a sociedade contra “esse mal”.

Visando um publico composto “de operarios, de estudantes, de pequenos negociantes, de soldados, em cujo seio as ideias anti-ethylicas pudessem ser propagadas com real proveito” 94, as atividades realizadas durante toda a semana buscou mostrar, a partir da fala dos mais “brilhantes intelectuais”95

da cidade os inúmeros perigos trazidos pela introdução do álcool na vida das pessoas, no seio da família e nas sociedades que o toleravam.

As falas educadoras proferidas durante a semana antialcoólica ficaram a cargo dos médicos do Centro Médico Cearense, que tratavam de trabalhar o assunto de forma didática, e podemos dizer que de uma forma até exagerada, apresentando o álcool como um dos principais problemas das sociedades modernas e um dos maiores obstáculos

94

CARVALHO, Demosthenes. “A Semana Anti – Alcoolica”, Revista Ceará Médico, Fortaleza, nº3, 1928. p. 02-03.

95 CARVALHO, Demosthenes. “A Semana Anti – Alcoolica”, Revista Ceará

vividos pela humanidade. Fortaleza, segundo a perspectiva eugênica de organização social defendida pelos médicos cearenses, também estava incluída nesse cotidiano degenerativo que tinha o álcool como grande vilão. A pobreza, a violência urbana, a “desestrutura familiar”, a fome e a violência foram recorrentemente apresentados pelos médicos como fatores consequentes do consumo do álcool. Era o efeito etílico que fazia do bom trabalhador um homem degenerado, que destruía a família que aos poucos se esvaía pela fome, conduzindo-os ao jogo, ao cabaré, ao roubo, dentre outros fatores que demonstravam para eles a capacidade destrutiva do álcool.

Essa tônica era uma tática discursiva utilizada pelos “doutores” da cidade como forma de mais fortemente chegar ao público jovem e trabalhador que compunha as plateias das conferências ministradas durante a semana anti-etílica. A Revista do Centro Médico Cearense publicou todas essas conferências ministradas durante tal semana, ressaltando a necessidade dessa iniciativa como forma de conscientização da população contra os hábitos que degenerariam a sociedade, e que muitas vezes começavam pelo consumo em uma única vez. Em conferência proferida pelo Dr. Otávio Lobo – realizada para os “Operarios Catholicos, trabalhadores da praia e sociedade „Deus e mar‟” em 15 de outubro de 1928 – o médico cearense buscava através de uma rápida historinha iniciar sua conversa com os trabalhadores, mostrando o poder destruidor trazido pelo álcool em uma sociedade. Começava assim:

Um rei antigo, senhor de virtudes e possuidor de vastas terras, governava um povo sóbrio e prospero. No reino tudo era progresso; – os campos cheios de seara, fontes cantando, o gado sadio e redio. Os homens no trabalho, as fabricas produzindo. As arcas do tesouro abarrotadas d`ouro. O conforto, a satisfação, a alegria, o riso, a saúde entravam em cada lar. As prisões vazias de criminosos, os hospitais desertos de loucos. Nem ódios, nem rixas partidarias. A palavra dos homens, uma nota promissoria. Só uma política, a da justiça. Certa vez, porem, entra neste paiz encantado um estrangeiro de outras civilisações. A nação toda se movimenta. A commemoração ao recem-chegado foi um delírio. Acudiram de

recantos longínquos, em afanosas caminhadas, os vassalos, em festa, em enthusiasmo, em musicas e hymnos. E desde logo, no reino começou de apparecer a injustiça. Os ódios e as intrigas se acirraram, veio a preguiça, chegou a inveja. Surgiu a peste, a miseria andrajosa mendigava pelas ruas, os hospitais regorgitavam de doentes, os hospícios se encheram de loucos, os ergástulos se atocharam de criminosos de todas as espheras. Os cidadãos já se não tinham respeito. Os paes escandalisavam os filhos, os filhos deshonravam os paes. As mães desertavam dos lares, deixando criancinhas em choro e em abandono a virgindade das filhas. Era a desolação dos tempos!

E continuava:

Pois bem, senhores, o reino é a sociedade actual e o estrangeiro o alccolismo. Meus senhores. Ahi está neste apologo, de que é capaz o alcool. Concretizemos, porem, a sua historia, que é a historia de cada bebedor, para que vos fique bem gravado na memoria o horror a este vicio – flagelo universal da humanidade. 96 (grifos meus)

Essa explanação, apenas pequena parcela de inúmeras páginas de textos educativos, foi bastante emblemática do modo com que os médicos fortalezenses apresentavam a questão do consumo do álcool, levantando inúmeras questões sobre a relação entre alcoolismo e destruição de um suposto ambiente harmônico da sociedade baseada no trabalho e na família. O alcoolismo traria consigo valores como a preguiça, a discórdia, a fome, a miséria, mas principalmente, segundo os médicos, conduzia a raça à degeneração.

No que se refere ao tema da violência, foi possível perceber dois aspectos importantes: o álcool parecia ser especialmente pernicioso entre as camadas mais pobres e era nela que agia de forma mais drástica. Segundo os médicos, esse elemento explicava os muitos conflitos, a violência, o desregramento que supostamente marcavam as

96 LOBO, Octavio. “Conferência em 15 de Outubro de 1928”, Revista Ceará

sociabilidades populares. E por isso, os esforços da Semana anti-etílica estavam concentrados no público composto por diversos segmentos de trabalhadores e por homens que realizavam atividades de baixa remuneração na capital. O tema da violência em âmbito doméstico só apareceu sob a perspectiva do desequilíbrio familiar, ao demonstrar que o homem que consumia bebidas alcoólicas constantemente descumpria seus compromissos com a esposa e os filhos, destruindo a célula mais importante da sociedade e também plantando uma “semente apodrecida” entre sua prole.

A violência de gênero, nesse sentido, muitas vezes era tratada pelo viés familiar, em uma preocupação com a família como célula social e com a descendência. Esse aspecto pode ser percebido em outra crônica publicada na Revista Centro Médico em 1920. Embora esta não tenha feito parte das conferências ministradas durante a semana educativa, também compôs o número da revista em que estas conferências foram publicadas, e expressava a forma com que a relação entre álcool e violência de gênero se construía nesses discursos. Na sessão Crônicas e variedades da revista foi publicado um texto traduzido do inglês que contava a história de um homem comum e que tinha sua vida destruída pelo consumo do álcool. Dizia:

Tom, operário, recém casado, era um rapaz excelente, hábil artífice, muito bom esposo; mas gostava de frequentar os botequins, sobretudo aos sabbados, quando recebia a paga da semana.

No meio de um grupo de camaradas, viciosos, também excedia-se na bebida, e esquecia-se do lar e da dedicada mulherzinha, que às vezes ficava noites inteiras a esperal-o em vão.

E não raro, era preciso que ella o fosse buscar no posto policial do bairro, para onde Tom era levado depois de ter com os companheiros uma altercação que acabava em murros.

Tom, envergonhado do seu procedimento, acompanhava à casa a esposa, ante cujas lagrimas se comovia, e protestava não mais ir ao botequim embriagar-se. Mas, no sábado seguinte, arrastado pelos companheiros, lá ia de novo abarrotar-se de

aguardente, discutir, brigar e ser conduzido ao xadrez.

Ali já estava habituado a erguer-se de manhã de um leito de taboa, e, à luz de uma claraboia, encaminhar-se para uma pia onde lavava a bocca, saciava a sede que o devorava, e enxarcava a cabeça aquecida e pesada dos vapores do álcool. E logo que lhe abriam a porta, descobria a esposa, que o abraçava chorando e o consuzia ao humilde lar, onde a miseria começava a assentar suas garras impiedosas.

Certa vez, como de costume, Tom embriagou-se; mas ao acordar de manhã notou que estava num lugar diferente do xadrez onde pernoitava todos os sabbados. Cercava-o uma escuridão completa; a cama era de outro feitio e tudo indicava que não fora ter ao lugar onde costumava curtir suas carraspanas.

Que significava aquilo? Por onde teria andado? Que teria feito? Veio-lhe então a lembrança de sua mulherzinha, tão meiga, tão solicita, tão resignada... Que desgosto horrível não seria o della, si lhe houvesse praticado qualquer acto mais vergonhoso ou, quem sabe, talvez um crime. Nesses dolorosas cogitações ficou, até que por fim levantou-se e tacteando na sombra já menos densa, foi caminhando ao longo da parede, até que chegou uma grade de ferro de robustos varões. Ali ficou tremulo, ancioso, a imaginar coisas sombrias e a pensar na pobre companheira, que ia talvez ficar sem arrimo, perdida na miseria horrível de Londres...

Afinal, alguém chegou em frente a grade, uma chave rangeu na fechadura e apareceu um guarda, que o contemplou em silencio.

- Por Deus, exclamou Tom, digame o que fiz, porque estou aqui.

- Não se lembra de nada? - Não.

- Você cometeu um crime... - Um crime? Que crime? - Matou.

- Matou sua mulher.97 (grifos meus)

Nesse texto, é importante perceber que na cena do crime está uma família potencialmente exemplar, mas que por intervenção do vício fica à mercê da miséria e da desgraça. O personagem retratado é um bom moço, operário, recém-casado, que contava com uma esposa boa e bastante resignada. É somente pela fraqueza de Tom diante do hábito de beber, que esse projeto familiar era interrompido de forma drástica e quase “cega”. O personagem perde o controle de si e acaba por cometer mais um crime, dessa vez bem mais sério do que os cometidos anteriormente que já o tinham levado ao “xadrez”: tinha assassinado a esposa.

Essa publicação buscava somar-se aos discursos que eram defendidos pelos médicos e pelas elites da cidade sobre as idealizações de masculinidades sadias e produtivas. A história de Tom simbolizava os desejos de disciplina, de pudor, de trabalho e de dedicação familiar que deveriam ser cobiçadas pelos homens desse momento. Nesse sentido, é importante ressaltar que todo o esforço teórico desses médicos se relacionava aos discursos biopolíticos de controle social das sociedades modernas. Como Foucault ressaltou no Microfísica do Poder, essas sociedades são construtoras de individualidades, fazendo do controle uma disciplina que se materializa de forma individualizada, marcando os corpos e construindo uma subordinação cotidiana que orienta as pessoas. (FOUCAULT, 2012, p. 25-26) Nesse sentido, ao discutir sobre os malefícios do álcool, ao passo que construíam discursos acerca dos benefícios e da positividade dessa abstenção, os médicos fortalezenses produziam imagens de masculinidades ideais que compunham um projeto de sociedade “harmoniosa” pensada por essas elites, e que visavam alterar a vivência cotidiana dos homens, especialmente pobres, da cidade. A violência, novamente, era retratada nesses discursos como algo que compõe “o outro”, como o desdobramento de uma conduta desregrada. Ela era um fantasma, uma ameaça, o irracional ao que supostamente era vista como harmônico pelos discursos racionais.

Homens fortes, produtores de boa prole, dedicados à família e ao trabalho faziam parte do discurso médico desse período, mas também, faziam parte dos jogos discursivos existentes no cotidiano das contendas

judiciais mobilizadas nas primeiras décadas do século XX. O homem criminoso era questionado justamente na sua adequação, ou não – geralmente não – aos padrões masculinos defendidos pelos discursos oficiais.

Em alguns dos processos dessa pesquisa, o conflito entre as ideias de homens do bem e homens degenerados constituiu algumas das principais tramas discursivas sobre os sujeitos considerados criminosos. A falta de trabalho fixo, a “propensão” ao crime, a reincidência, o uso demasiado da violência e os vícios marcavam as interpretações médicas e jurídicas dos acusados de crimes sexuais. Nesse sentido, é importante destacar as mudanças, cada vez mais perceptíveis, de um discurso moral para um discurso que aos poucos adota referências patologizantes sobre os réus. Esses deslocamentos vão se intensificando a partir do final da década de 20, e aparecem de forma mais efetiva durante a década de 30. A própria solidificação da classe médica no Brasil e a circulação de ideias sobre os indivíduos criminosos parecia se tornar importante influência na interpretação desses profissionais.

A pesquisadora Lilia Schwarcz, ao analisar as elaborações teóricas dos intelectuais do direito e da medicina no Brasil, apontou para as influências que as teorias raciais europeias exerciam sobre esses intelectuais. Tecendo um panorama sobre o pensamento racial no Brasil desde o fim do século XIX, a autora expõe sobre como os preceitos da medicina legal vão se constituindo nos discursos de juristas e médicos brasileiros. Destacando a roupagem nacional dada por esses intelectuais a essas teorias, a partir principalmente dos anos 1920, a autora entende que somado aos paradigmas evolucionistas das teorias racialistas, os profissionais do direito e da medicina nesse momento entendiam que o problema da degenerescência vivido pelo povo brasileiro não estava marcado apenas pelas questões étnico-raciais. Embora profundamente marcado por essas questões, a esses discursos somavam-se os problemas “higiênicos e sociais” que marcariam o desenvolvimento da população