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Consumo e tráfico de drogas ilícitas: espacialidades e temporalidades

4 DROGAS E SUAS IMPLICAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA URBANA: O CASO

4.2 Consumo e tráfico de drogas ilícitas: espacialidades e temporalidades

O acesso, a interpretação e a confiança constituem obstáculos para a reflexão sobre questões relacionadas às drogas. Vencidas as dificuldades em relação à acessibilidade ao aporte de informações disponíveis, o exercício volta-se primeiro ao processo de compreensão dos seus possíveis significados e depois às tentativas de validação, exercitando explicações para o comportamento e dinâmica no espaço e no tempo.

Em Montes Claros, quando se observa a série histórica das ocorrências relacionadas ao tráfico de drogas nos últimos quinze anos em relação a outros indicadores de criminalidade, como o “IC”, nota-se uma pequena representatividade dos crimes de drogas nos registros oficiais, sendo o tráfico e o consumo as principais modalidades, representando pouco mais de 1% da criminalidade em geral, conforme discutido na seção anterior.

Uma reflexão inicial permite inferir que a quantidade de crimes relacionados ao tráfico e ao consumo de entorpecentes não se apresenta como um problema a ser estudado em função de uma baixa representatividade dos casos em relação a outras modalidades de crime. Entretanto, uma menor incidência não significa, necessariamente, menor existência de crimes, pelo contrário, menor prevalência pode significar menor formalização da notícia-crime aos órgãos oficiais, podendo ainda representar menor interesse das instituições responsáveis em contabilizar e/ou coibir o problema.

No meio policial há um discurso que busca estabelecer uma relação direta entre apreensão de drogas e aumento da criminalidade. A explicação assenta-se na hipótese de que a apreensão de drogas ilícitas pelas polícias estimula a prática de outras modalidades ilícitas com o objetivo de quitar os prejuízos com a perda da mercadoria. Em outras palavras, as drogas apreendidas pelas ações policiais podem produzir endividamento financeiro que demanda a necessidade de levantar valores para quitação do débito junto aos traficantes. Isso seria ruim do ponto de vista da gestão da segurança pública e estimularia um menor esforço para crimes relacionados às drogas em relação a outras modalidades criminosas.

Outra hipótese é de que a comercialização de drogas esteja situada no âmbito chamado de normalidade do crime, conforme proposto por Durkheim (1963) ao tratar sobre a questão. Por essa perspectiva, os crimes relacionados às drogas estariam dentro da normalidade, acreditando-se que as ocorrências policiais representariam a realidade social. Todavia, essa seria uma associação equivocada a se aplicar à teoria Durheimiana, visto que dados socialmente construídos podem ser institucionalmente induzidos. Em outros termos, a

construção institucional das informações pode ser explicada pelo “Choque de Gestão” na política de Segurança Pública implementada em Minas Gerais a partir de 2003.

Há de se considerar que o estabelecimento de estratégias policiais com foco no combate incisivo às drogas pode estimular a prática de outros crimes como roubos à mão armada, comprometendo os indicadores elencados como prioritários pelo Choque de Gestão do governo de Minas Gerais.

Nesse sentido, por mais que seja temerário e imaturo, existe a possibilidade da existência de uma conivência velada entre a política de segurança pública e o tráfico de drogas ilícitas, ao desconsiderar o tráfico, evidencia-se uma provável suspeição sobre o reconhecimento e/ou a intencionalidade dos gestores da política de segurança pública sobre as consequências do enfretamento direto e incisivo sobre o comércio de drogas ilícitas.

A questão da conivência fica mais evidente ao se observar o comportamento temporal dos registros envolvendo drogas ilícitas tanto no que diz respeito ao tráfico, quanto à posse e ao uso de drogas. A série história do índice de crimes relacionados a essas substâncias de um modo geral registrada pelas polícias em Montes Claros entre 2000 e 2014 apresenta um percentual acumulado superior a 43%. Quando os registros de 2000 são comparados com 2012 o percentual de aumento é ainda maior, representando mais de 76% (Gráfico 13).

No Gráfico 15, verifica-se que nos anos de 2000 e de 2005 houve diminuição nesse índice. Em outra perspectiva, quando se considera 2005 em relação a 2012, observa-se um acúmulo superior a 242%. Essa constatação é relevante, uma vez que o crescimento dos registros relacionados às drogas coincide com o período em que as disputas se intensificaram, revelando um aumento de homicídios, conforme relatado anteriormente.

Gráfico 15 - Índice de ocorrências relacionadas a drogas em Montes Claros (2010-2014).

Fonte: CINDS/PMMG/PCMG. Org. GOMES, P. I. J., 2015. *Índice para cada grupo de cem mil habitantes.

Tanto o índice de ocorrências relacionadas às drogas, quanto a taxa de homicídios apresentaram percentual acumulado significativo no mesmo período. Vale destacar que em 2011 e 2012 foram os anos apontados pelos informantes da pesquisa como período em que as disputas entre os dois principais grupos que comercializavam drogas na cidade se intensificaram. Em consequência, nesse período, foram contabilizadas as maiores taxas de homicídios com mais de vinte e uma vítimas para cada grupo de cem mil habitantes em 2011 e mais de 25, em 2012.

O fortalecimento do tráfico de drogas é evidenciado pelo reforço da intervenção policial entre os anos 2000 e 2014, em que o percentual acumulado do índice de ocorrências de tráfico foi superior a 900%. Entre 2000 e 2012, o percentual é maior representando mais de 1.180%, conforme visto no Gráfico 16.

156,96 122,65 109,92 132,35 87,28 80,76 111,07 115,28 128,39 185,83 196,78 235,78 276,68 212,28 223,94 0,00 50,00 100,00 150,00 200,00 250,00 300,00 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Gráfico 146 - Índice de tráfico e posse ou uso de drogas em Montes Claros (2010-2014).

Fonte: CINDS/PMMG/PCMG. Org. GOMES, P. I. J., 2015. *Índice para cada grupo de cem mil habitantes.

Os registros oficiais despertam no mínimo três constatações, a primeira é que a intensificação de estratégias de dominação exercidas no espaço urbano por parte dos grupos que disputavam territórios para comercialização de drogas cria maior oportunidade para a atuação das polícias e, consequentemente, aumenta os registros de eventos relacionados ao tráfico.

A segunda é que as instituições de Defesa Social, ao identificarem o tráfico de drogas como responsável pelo aumento da taxa de homicídios e pressionados pelo clamor social, podem ter adotado uma postura diferente no que diz respeito ao enfrentamento desse fato, culminando na intensificação de apreensões e prisões relacionadas à comercialização de drogas ilícitas.

Na terceira, constata-se o enfraquecimento das facções em disputa que pode ter ocorrido ora pela prisão de membros representativos do grupo, ora por sua morte nas disputas interpessoais e ora pela apreensão da matéria-prima do negócio ou de seus “instrumentos de defesa” (armas de fogo) por parte da polícia.

Sobre essas constatações, destaca-se a colocação do informante “ASP 2”, ao afirmar que muitas apreensões de drogas, de armas de fogo e prisões de indivíduos ligados ao tráfico de drogas realizadas pela polícia ocorrem em virtude de denúncia anônima. Na perspectiva do informante, esse tipo de situação pode acontecer em função de disputas internas do grupo na sucessão pelo poder ou mesmo pelas disputas externas como uma tentativa de desarticular o grupo opositor.

13,56 18,65 17,03 27,02 22,04 22,53 25,61 45,89 49,96 57,26 79,64 134,27 173,65 139,77 136,03 105,93 79,66 76,79 88,03 56,00 47,40 71,94 56,37 60,29 96,08 83,98 69,55 74,88 48,08 49,94 0,00 20,00 40,00 60,00 80,00 100,00 120,00 140,00 160,00 180,00 200,00 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Tráfico de drogas Posse ou uso de drogas

Outra observação relevante é a comparação do Índice de Tráfico e o Índice da Posse ou Uso de Drogas em Montes Claros entre 2000 e 2014. Enquanto o tráfico de drogas desde de 2000 encontra-se em ascensão, a posse ou uso, ao contrário, está em decadência. Ligeiras exceções são observadas em anos específicos em que é possível observar o crescimento em relação ao ano anterior, entretanto, sem superar o índice identificado em 2000 (Gráfico 14).

As informações são contraditórias porque, para que o tráfico se fortaleça, assim como qualquer outra atividade comercial, é necessário que o mercado esteja aquecido, direcionando um aumento da demanda, o que estimula maior disponibilidade de mercadoria. Então, como seria possível que um mercado em queda, no que diz respeito à posse e ao uso de drogas, estimule as ocorrências de apreensões do tráfico?

Para uma maior reflexão sobre a questão, podem levantar-se no mínimo três hipóteses, a primeira sustenta-se no reconhecimento do usuário como um doente, projetando- se um entendimento da questão como um problema de saúde pública e não de segurança pública, consequentemente, marcado pela inércia da Defesa Social, no que diz respeito às ações direcionadas ao usuário.

A segunda ampara-se no fato de que a descriminalização do uso de drogas condiciona um enfraquecimento das estratégias de repressão por parte das polícias, que pode ter diminuído a fiscalização e o controle da posse e uso de drogas. E, por fim, a inexistência de uma política pública de segurança que tivesse o objetivo de ampliar o enfrentamento de práticas sociais relacionadas à posse e ao uso de drogas.

Nessa perspectiva, é interessante ressaltar algumas considerações sobre as colocações dos informantes da pesquisa sobre o estabelecimento de uma correlação entre a influência do tráfico de drogas na criminalidade. A correlação entre tráfico de drogas e criminalidade evidencia-se principalmente nos crimes patrimoniais, uma vez que o lucro advindo dessa prática é visto como uma alternativa ao tráfico e uma oportunidade para sustento do vício por parte dos usuários.

Em narrativa de um dos egressos do sistema prisional, “quando eu era adolescente fiquei viciado pela influência de amigos, todo o dinheiro conseguido, fazíamos uma vaquinha comprar drogas nos finais de semana, quando eu não tinha dinheiro eu roubava”. O roubo cometido na adolescência limita-se a furtos de bicicletas, arrombamento a veículos e à residência, visando conseguir sons automotivos e objetos pessoais das vítimas como, por exemplo, joias.

Em outros dois momentos, durante a entrevista, o informante confessa o furto de um carro e mais de duas motocicletas que serviram para pagamento de dívidas relacionadas às drogas ou para comprar o produto para revender. Os bens de valor mais elevado serviram não somente para quitar dívidas e/ou vício, sobretudo, para capitalização para aquisição de drogas para comercialização, quando o informante descobre que traficar drogas era rentável.

O informante “ASP 1”argumenta que “traficante de verdade”, pelo menos os grandes traficantes, não gostam de praticar roubos à mão armada. Eles não têm o costume de envolverem-se na prática de pequenos crimes, quando o fazem optam por procedimentos mais rentáveis do ponto de vista financeiro, para a compensação de prejuízos com a perda de drogas pela ação das polícias. Para exemplificar, cita o caso de um indivíduo que, para saldar despesas com traficantes, resolve praticar um assalto a banco na cidade de Coração de Jesus, no Norte de Minas, localizada a oitenta e dois quilômetros da cidade de Montes Claros, o que culmina em sua prisão.

Para os informantes “ASP 1” e “ASP 2” o enfrentamento mais incisivo do tráfico, com apreensão de drogas, estimula diretamente a prática de outros crimes, como uma espécie de compensação aos prejuízos advindos da perda do produto nas apreensões das polícias.

Além do comportamento temporal das ocorrências relacionadas às drogas, é relevante à compreensão de que espacialização desses delitos por limitações metodológicas privilegiará apenas os últimos cinco anos (2010-2014). O padrão espacial da comercialização e uso de drogas evidencia uma repetição de áreas identificadas pelos bairros de origem tanto das vítimas, quanto dos acusados da prática de homicídios, áreas essas representadas, em sua grande maioria, pelas favelas.

Uma provocação possível sobre a espacialização das drogas liga a intencionalidade da ação policial aos locais de concentração de crimes relativos a essas substâncias, em que os locais de maior apreensão podem representar áreas em que o tráfico é conhecido e, por isso, para essas áreas voltam-se olhares e ações de intervenções.

No tocante à distribuição espacial dos crimes de drogas por bairros de maior incidência, o bairro São João desponta como o maior destaque com 8,4% do total de registros policiais, o Centro aparece em evidência na segunda colocação com 6,9%, seguido pelos bairros Santos Reis (4,6%), Morrinhos (3,9%), Major Prates (2,5%), São Judas Tadeu (2,4%) e Independência, Delfino e Esplanada (1,6% cada).

Os registros são mais frequentes nas sextas-feiras e sábados com mais de 30% nesses dois dias em horários entre 15h e 23h, compreendendo mais de 61% dos casos, existindo intensificação às 16h (7,5%) e às 21h (8%).

Pelo menos duas hipóteses para que o bairro Centro tenha apresentado destaque na incidência dos registros policiais sobre tráfico e uso de drogas podem ser apresentadas. A primeira refere-se à ideia de que um maior fluxo de pessoas cria oportunidades para práticas comerciais da droga, aumentando a visibilidade da fiscalização policial e possivelmente seu êxito na apreensão de substâncias ilícitas, usuários e traficantes. A segunda diz respeito à localização espacial do bairro, uma vez que a área central está entre os dois principais pontos de comercialização de drogas que são os bairros: Conferência Cristo Rei e Morrinhos (esses bairros foram apontados pelos informantes da pesquisa como os maiores pontos de comercialização de drogas da cidade).

Na foto 12 apresenta-se uma visão da região Norte a partir do bairro Morrinhos, com destaque para o Centro, Santa Rita e São José.

Foto 12 - Vista da região Norte a partir do bairro Morrinhos, com destaque para o Centro, Santa Rita e São José.

Autor: GOMES, P. I. J., abril/2016.

Convém frisar que apesar do bairro São João ter se destacado como o local preferencial para incidência dos delitos relacionados às drogas, tal fato se justifica pela influência que o bairro Conferência Cristo Rei exerce em seu entorno. Como este bairro guarda relação de proximidade com o bairro São João, e ao considerar-se a referência comercial no tocante à disponibilidade de drogas, é provável que as atenções policiais voltem- se para esse local aumentando a fiscalização e, consequentemente os registros policiais. Tais informações permitem fazer referência à formação de territórios do tráfico de drogas ilícitas em Montes Claros. Morrinhos Centro Centro Santa Rita São José Conferência Cristo Rei N