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Conteúdos midiáticos

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FAMÍLIA DE CAIO, LARA E CLARA

2. Conteúdos midiáticos

Os conteúdos midiáticos são importantes para buscar compreender a constituição subjetiva da infância. Um dos fatores que concorrem para que os conteúdos midiáticos estejam tão presentes na comunicação da atualidade é o tempo que as pessoas ficam expostas à televisão.

A audiência televisiva ocorre entre a pessoa e o instrumento tecnológico, sem necessariamente a presença de outros. Os conteúdos televisivos participam da maioria das discussões em todos os âmbitos da vida, inclusive no meio familiar. Ou seja, mesmo que o ato de estar assistindo à TV seja solitário, ao encontrar-se com os outros é sobre os programas e personagens assistidos que as pessoas irão dialogar (Guareschi, 2001).

Antes de discutir os conteúdos midiáticos propriamente ditos, será abordada a questão do tempo de exposição à televisão das crianças desta família, por ter sido uma informação que permeou todas as entrevistas e que apareceu com grande freqüência na pesquisa geradora.

No recorte que se segue, ocorrido na primeira entrevista, o pai traz informações sobre o tempo livre de Caio utilizado, predominantemente, para assistir à programação infantil na televisão.

PESQUISADORA ANA PAULO CAIO Esse aqui (acaricia o

filho), ele acorda cedo, pra dormir cedo. Agora ele não está dormindo porque você está aqui, senão ele estaria dormindo. Levanta cedinho, mas acorda cedinho. A primeira coisa dele é, dia que não tem aula, é vê televisão... É desenho... Ele acorda

com desenho...

Aí é a manhã inteira de desenho?

Não, não é bem assim não!

Só porque vocês não deixam... Não, não pode ser só

desenho né? É porque a gente

não deixa mesmo!

Paulo- Você tem que fazer outras coisas tem que estudar tem que fazer outras atividades não pode sê só vê desenho. Não pode ficar só vendo desenho né ? Tem que jogá bola

Os diálogos que expressam a preferência de Caio pelo consumo de TV no seu tempo-livre e a tentativa de controle por parte dos pais são uma realidade estudada nas mais diversos partes do mundo. Em países da Europa, pais e órgãos governamentais sempre demonstraram preocupação com o uso indiscriminado da televisão, especialmente pelas crianças.

No Brasil e em outros países da América Latina, ocorre um processo diferente: as crianças são colocadas por mais tempo e mais precocemente diante da tela de TV. E a preocupação é com o índice de audiência que os programas, em geral com formatos bem parecidos, podem alcançar e com o que suas apresentadoras podem vender. Os problemas da adequação e da qualidade da programação às necessidades da criança parecem estar bem longe das prioridades das emissoras particulares.

Em Goiânia, enquete realizada pelo “Projeto Elos-Goiás” levantou informações importantes sobre as famílias no que tange às atividades tanto da pessoa entrevistada quanto das crianças. Em questionário respondido especificamente sobre a criança com perguntas sobre o tempo em que permaneciam assistindo à televisão3, veio à tona uma realidade em que as relações vivenciadas pelas crianças no âmbito familiar são significativamente mediadas pelo uso de instrumentos tecnológicos.

O quadro abaixo foi construído com base nas informações dos questionários da enquête do “Projeto Elos-Goiás” que foram relacionadas através da pergunta : “Quantas horas por dia a criança assiste a tv?”:

3

As crianças de 0a 6 anos tinham o questionário respondido por seu responsável e as crianças de 7 a 11 anos respondiam sozinhas.

Quadro 2 - Relação entre a idade e o tempo de exposição diária de crianças goianienses à televisão Idade / O a 6 7 a 11 TOTAL Tempo Nº % Nº % Nº % 1h 79 15,3 37 7,2 116 22,5 2h 58 11,2 47 9,1 105 20,3 3h 44 8,5 52 10,1 96 18,6 4h 27 5,2 33 6,4 60 11,6 + de 5h 22 4,3 34 6,6 56 10,9 Não assiste 64* 12,4 10 1,9 74 14,3 Não respondeu 06 1,2 03 0,6 09 1,8 TOTAL 300 58,1 216 41,9 516 100

Fonte: Questionários 1,2 e 3 da pesquisa Criando os Filhos: a família goianiense e os elos parentais.

De um universo de 516 crianças em idade de 0 a 11 anos, 300 de 0 a 6 anos e 216 de 7 a 11 anos, 317 delas (61,4%) assistem à TV por até 3 horas e 116 (22,5%) que assistem de 4 a 5 horas ou mais. As informações que foram sendo construídas apresentaram outros dados que ainda se tornam mais evidentes quando se observa o quadro de atividades dos adultos entrevistados e das crianças que declararam assistir a TV todas as noites, como é o caso da família de Caio, Lara e Clara e de tantas outras, em sua maioria.

Outras informações sobressaem às demais: as mães relatam espontaneamente que nas atividades cotidianas de seus filhos a audiência televisiva está presente até mesmo quando elas ainda se encontram na primeira infância.

O quadro abaixo demonstra exemplos de atividades cotidianas que foram relatadas pelas mães das crianças menores de 6 anos que participaram da enquête do “Projeto Elos-Goiás”.

Quadro 3 – Exemplos de atividades cotidianas de crianças goianienses menores de 6 anos

Horário Menino, 5 anos Menino, 2 anos Menina, 2 anos Menina, 6 anos 7h _ _ _ Toma café 8h _ _ Assiste TV, brinca e dorme Brinca e assiste TV 9h Acorda Acorda Assiste TV, brinca e dorme Brinca e assiste TV 10h Assiste TV e brinca Toma café e vê TV Assiste TV, brinca e dorme Brinca e assiste TV 11h Assiste TV e brinca Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Brinca e assiste TV 12h Almoça Almoça Assiste TV, brinca e dorme Almoça

13h Escola Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 14h Escola Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 15h Escola Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 16h Escola Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 17h Escola Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 18h Assiste TV Brinca Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 19h Assiste TV Brinca Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 20h Assiste TV Toma banho Assiste TV, brinca e dorme Assiste TV 21h Assiste TV Assiste TV Assiste TV, brinca e dorme Dorme 22h Assiste TV Dorme Assiste TV, brinca e dorme _ 23h Assiste TV _ Assiste TV, brinca e dorme _

Fonte: Questionários 1,2 e 3 da pesquisa Criando os filhos: a família goianiense e os elos parentais.

Nestes exemplos, a televisão aparece inserida no conjunto de atividades básicas humanas como almoçar, tomar banho e dormir. Não raro, como se pode observar no quadro, o relato espontâneo prioriza a audiência televisiva, pois essa atividade pode aparecer em conjunto com o ato de brincar: “brinca e assiste TV”; com o ato de alimentar-se: “toma café e vê TV”; com o ato de dormir: ”assiste TV, brinca e dorme” e ainda aparece com grande freqüência como ato isolado: “assiste TV” .

TV em seu cotidiano. De forma indiscriminada as crianças estão diante da TV em horários de programações infantis, assim como assistem a novelas, filmes e a toda programação noturna dirigida aos adultos.

Estes dados já figuravam em pesquisas do IBOPE desde 1995 e colocam entre os programas de preferência das crianças paulistanas em idade de 2 a 9 as novelas, os filmes, as programações jornalísticas e os shows. Ao observar o quadro acima, percebe-se que os exemplos indicam que em Goiânia a realidade é semelhante. Há bebês na faixa etária de 2 a 6 anos que possuem como atividade constante e cotidiana o consumo de TV desde a hora que acordam até a hora que vão dormir.

Com esta grande audiência, os conteúdos midiáticos que são transmitidos durante todo dia, independentemente de serem gêneros apropriados para as idades em questão, são co-participantes na satisfação das necessidades básicas de repouso, de higiene pessoal e de alimentação das crianças.

Outro aspecto interessante a ser considerado é a passagem do virtual ao real que é feita pelos consumidores e propiciada pelo mercado. Os personagens dos desenhos animados, as apresentadoras de programas infantis e tudo mais que possa gerar lucros, viram brinquedos, sabonetes, escovas dentais, pratos e copos, mochilas, lancheiras, cortinas, cobertores... uma infinidade de produtos que transformam o conteúdo virtual em algo palpável e que a todo tempo está ao lado. A hora do banho ou da refeição torna-se uma continuação do que a criança assiste na TV. Os personagens saem da tela e permanecem com as crianças, mesmo com a televisão desligada.

Discutindo sobre os conteúdos midiáticos que foram aparecendo no processo construtivo-interpretativo da entrevista, é importante considerarmos o que ocorreu no terceiro encontro, em que a família de Caio, Clara e Lara foi convidada a trabalhar com massa de modelar para criar personagens que comporiam uma história.

Contexto da segunda entrevista

A pesquisadora foi recebida pela avó que amistosamente convidou-a para entrar e sentar-se. Paulo e Caio assistiam ao Jornal Nacional e Ana entrou na sala com as meninas enquanto a pesquisadora montava a filmadora. A entrevista foi iniciada às 20:15h com a presença de todos, na mesma sala em que foi realizada a entrevista anterior. Decorridos 2 minutos de filmagem, chegaram parentes da família: um irmão da Ana, sua esposa e o filho de cerca de 2 anos. Ana convidou a criança para participar da atividade com massinha e eles permaneceram na casa por cerca de 15 minutos. A televisão permaneceu ligada todo tempo e o pai ficou grande parte da entrevista assistindo à televisão, deitado no sofá. As crianças e a mãe sentaram-se no chão para moldar os personagens e inventar a história.

PESQUISADORA ANA CLARA Ana: Terminou o seu Lucas ?

(Permanecia todo tempo com a massinha) - Ai que coisa difícil!!! (vira-se para Clara e pergunta baixinho) – Que que cê acha que é ?

Pokemon. Todos riem e Ana faz uma

expressão de

descontentamento e em seguida de concordância.

Pokemon...? Pode ser ...! Qual vai ser esse Pokemon aqui então ? (Voltada para Clara)

Picachu. Picachu...

Mas só que ele é amarelo Ah! Devia ter feito amarelo.

A mãe inventa um animal com a massa de modelar e pergunta à filha que animal ela acha que é. Imediatamente, a filha responde que é um Pokemon, figura de desenho animado, e em especial o Picachu, uma das figuras mais divulgadas pela mídia televisiva no gênero infantil.

Nesse sentido convém colocar a observação de Vygotsky (1998), segundo a qual a capacidade do ser humano em lidar com as representações do mundo real é um dos principais elementos intermediários em uma relação socialmente construída. Assim, esse recorte faz parte de um processo que vai gerando o sentido de uma simbolização constituída culturalmente por elementos mediadores. Esses elementos são construídos no envolvimento da criança com o meio televisivo e aparecem em um momento de criação (modelagem de massa para criação de personagens de uma história) como signos, instrumentos psicológicos que possibilitam ao ser humano referir-se a algo que não se encontra posto na realidade imediata do sujeito.

O diálogo produz um sentido que explicita uma questão que vai sendo tecida, principalmente nas falas da mãe, durante todas as entrevistas que é o fato da comunicação expressar um ideal de família que não se assemelha a realidade vivencial e que se encontra no imaginário das pessoas como uma construção histórico-cultural da família contemporânea.

A mídia televisiva está apresentando-se de tal forma interpenetrada na realidade cotidiana dos adultos e das crianças que nos diálogos em que se propõe falar sobre a comunicação na família é rapidamente deflagrada a presença deste instrumento tecnológico mediando as relações interpessoais como pode ser observado neste estudo.

Esta expressão videofamília, cunhada por Sarlo (1997), leva a uma reflexão sobre todos os aspectos desenvolvimentais humanos, sejam eles afetivo, cognitivo, biológico, social, histórico-cultural. Tais aspectos se fazem em uma teia relacional que tem sido tecida entremeando o que fora histórico- culturalmente construído, pelas várias gerações passadas, fortes fios contemporâneos que têm intensas e repetitivas relações estabelecidas entre os sujeitos sociais e os instrumentos tecnológicos. Elas criam uma dimensão

constitutiva em que as novas tecnologias, inexistentes até a poucas décadas, sejam apresentadas na atualidade de forma bastante expressiva.

Esta reflexão demonstra que, ao buscar nesta família alguns pontos que se entrelaçam neste emaranhado complexo em que as crianças atuais desenvolvem-se, serão encontrados, tanto objetivamente (através dos personagens criados) quanto subjetivamente (pela comunicação estabelecida na construção da história), elementos midiáticos constituindo as novas gerações.

3) Formas de organização desenvolvidas pelos membros da família para

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