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Contexto, campo literário e autobiografia: o espaço da memória

No discurso pronunciado a 7 de dezembro de 1998, durante a cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura, da Academia Sueca, em Estocolmo, José Saramago afirmou:

Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido, poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser (SARAMAGO, 1999, p. 17).

Acerca da criação de suas personagens, os escritores costumam dizer muitas coisas, como o fato de perderem o controle sobre aquelas que se destacam da história e parecem caminhar sozinhas; ou das encruzilhadas em que eles se veem em relação ao destino de outras tantas; ou, ainda, do quanto elas são fruto da sua imaginação ou da sua memória. Alguns até reconhecem que aprendem com suas personagens, mas dizer, como Saramago nesse discurso,

que são criaturas delas, é fazer uma afirmação um tanto insólita no universo da criação literária. Mesmo Flaubert, autor de uma das mais famosas das declarações desse gênero, disse que Madame Bovary era ele, não que o tinha criado.

A estreita relação entre vida e obra, que esse discurso revela, não é um fato consensual entre os estudiosos de literatura, como vimos na primeira seção deste capítulo, quando tratamos do tema da morte do autor. Mas é precisamente no trabalho de um linguista que encontramos

um contraponto a essa tese. Em O contexto da obra literária (2001), Dominique Maingueneau

dedica um capítulo consistente à relação de que tomamos Saramago e sua obra como exemplo.

Intitulando-o “A vida e a obra”, começa por não invalidar a importância dos criadores no

funcionamento da literatura, e seu argumento fundamental é a existência de reciprocidade entre

a vida e a obra do escritor, que o teórico expressa com a palavra bio/grafia, em que a barra ao

mesmo tempo une e separa os termos da relação:

Na realidade, a obra não está fora de seu “contexto” biográfico, não é o belo reflexo

de eventos independentes dela. Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união. [...]

A existência do criador desenvolve-se em função da parte de si mesma constituída pela obra já terminada, em curso de remate ou a ser construída. Em compensação, porém, a obra alimenta-se dessa existência que ela já habita. O escritor só consegue passar para sua obra uma experiência da vida minada pelo trabalho criativo, já obsedada pela obra. Existe aí um envolvimento recíproco e paradoxal que só se resolve no movimento da criação: a vida do escritor está à sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida (MAINGUENEAU, 2001, p. 46-47).

Observe-se a tônica que o autor confere à palavra “vida”, sendo ela o ponto em que criador e

criatura se alimentam, numa reciprocidade tão íntima que acaba por condicionar a existência de um elemento em relação ao outro, como uma via de mão dupla.

A consonância entre a teoria de Maingueneau e o pensamento de Saramago, exposto no discurso, é evidente. De fato, não é difícil perceber, na obra do escritor português, a presença da “pessoa do autor”, não na forma puramente autobiográfica, ou como ficcionalização de fatos realmente vividos pelo escritor. Isso ocorre em um ou outro momento, mas a presença do autor é sentida geralmente como uma unidade, que se mostra na visão de mundo que perpassa toda a obra, em seus variados gêneros.

Tal unidade, que o leitor pressente, pode ser demonstrada, por exemplo, pela coerência do discurso, tanto do narrador quanto das personagens de qualquer um dos seus livros, que invariavelmente traz a marca da posição política do escritor diante dos problemas sociais e humanos. Mesmo que não conhecêssemos as obras memorialísticas de Saramago, ou algumas

das inúmeras entrevistas que ele concedeu, bem como suas conferências e artigos, enfim, mesmo que tivéssemos acesso apenas à sua obra de ficção, seria possível perceber a recorrência de um conjunto de características, formais e temáticas, que revela a marca (ou a voz, se não estivermos nos excedendo) do seu autor. Mais do que a simples aparição da figura do autor na obra, trata-se de uma convergência entre uma e outra, o que torna difícil, no caso de Saramago, estabelecer aquela ruptura entre vida e obra de que fala Michel Foucault, ao elaborar o seu

conceito de função autor, muito menos a desaparição deste, anunciada por Roland Barthes.

Situando sua perspectiva entre a história literária - que estuda a obra como expressão de seu tempo, valorizando os elementos sociais e históricos que influenciaram a produção da obra - e a orientação estilística - que a examina como um universo fechado, ou seja, como um fenômeno de linguagem autônomo, independente de fatores externos, como a história da época em que surgiu ou a biografia do seu autor -, Maingueneau reivindica uma atualização dos estudos literários a partir da íntima associação entre o texto e o seu contexto.

A preocupação inicial do linguista é esclarecer o que denomina “contexto”. Por um lado, considera ingênua a crença na existência de uma interioridade da obra, em torno da qual haveria um contexto, destacado do mundo ficcional e sendo representado por ele; para Maingueneau, essa separação não é possível, pois o contexto não é exterior à obra, mas faz parte de sua constituição. Por outro lado, em decorrência desse pressuposto, o autor questiona

a possibilidade de a obra representar um mundo à parte, numa relação especular: “As obras

falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é parte integrante do mundo que

pretensamente representam” (MAINGUENEAU, 2001, p. 19). Assim, não se trata de dois mundos separados, o real e o da ficção, em que este representaria aquele, mas sim de um complexo envolvimento entre ambos, fundamentado nas condições de enunciação da obra. Sem limitar-se ao texto como objeto autônomo e intrinsecamente caracterizado, a análise da obra literária deve estabelecer relações entre esta e o seu contexto, compreendido não apenas como a sociedade historicamente situada em que a obra surgiu, mas sim com o que Pierre Bourdieu

(1996) chama de “campo literário”, conceito que Maingueneau toma como base para sua

argumentação.

Defendendo-se, com uma postura de ataque, dos que condenam a leitura sociológica da obra literária pelo fato de o seu método supostamente destruir a especificidade desta e comprometer o prazer estético, Bourdieu afirma a legitimidade do labor do cientista social, que se debruça sobre a Literatura para compreender as regras de funcionamento de seu universo, tornando-o mais verdadeiro exatamente por desmitificar o seu caráter transcendental ou sobre- humano.

Sua tese é a de que a obra literária, como toda a ação humana, está sujeita a relações ou mesmo lutas entre os elementos do campo literário, que por sua vez é dominado, como todos os outros, pelo campo do poder: “o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural, principalmente)” (BOURDIEU, 1996, p. 244). Admitir essa teia de relações significa, para o autor, impedir a visão reducionista da obra, seja como reflexo de um grupo social, seja como objeto autônomo em relação ao seu contexto. A proposta de Bourdieu é bem mais complexa:

O campo é uma rede de relações objetivas (de dominação ou de subordinação, de complementaridade ou de antagonismo etc.) entre posições [...]. Cada posição é objetivamente definida por sua relação objetiva com outras posições [...] Todas as posições dependem, em sua própria existência e nas determinações que impõem aos seus ocupantes, de sua situação atual e potencial na estrutura do campo [...]. Às diferentes posições [...] correspondem tomadas de posição homólogas, obras literárias ou artísticas evidentemente, mas também atos e discursos políticos, manifestos ou polêmicas etc. – o que obriga a recusar a alternativa entre a leitura interna da obra e a explicação pelas condições sociais de sua produção ou de seu consumo (BOURDIEU, 1996, p. 261-262).

Esse excerto contém a ideia matriz que Bourdieu desenvolve ao longo da obra, segundo a qual a produção artística resulta de um sistema de relações objetivas entre elementos que assumem diversas posições nos campos (como o literário, por exemplo). Cada campo, por sua vez, relaciona-se objetivamente com outros, como o político e o religioso, submetidos todos ao campo do poder.

Há quem veja nessa ideia de relação entre elementos e suas posições, um tributo que seu autor paga ao estruturalismo, em voga na época em que o sociólogo iniciou a publicação de seus trabalhos. Maurício Vieira Martins (2004, p. 71) observa, em estudo sobre a teoria de

Bourdieu, que “é um motivo desenvolvido pelo estruturalismo aquele que afirma

incessantemente que as tomadas de posição dos agentes sociais devem ser vistas sobretudo como o efeito de uma estrutura que os sobredetermina”. De fato, a análise que Bourdieu propõe tende a alcançar uma superestrutura – o campo de poder – que determina todas as posições dos diversos campos, diminuindo significativamente a autonomia do sujeito criador, como o Romantismo pregava. Por esse motivo, sua tese intimida a “leitura interna da obra”, se ela não for diretamente relacionada com as suas condições de produção.

A confirmação dessa hipótese está na insistência de Bourdieu sobre a natureza objetiva das relações no campo e fora dele. Até a tomada de posição, que poderia sugerir uma iniciativa do sujeito, na verdade depende da posição que ele estiver assumindo no campo, situação que é

“objetivamente definida por sua relação objetiva com outras posições” (BOURDIEU, 1996, p 261. Grifos nossos). Assumindo uma posição, o autor tem diante de si escolhas a fazer, que dependerão não apenas do seu projeto artístico, mas também do seu projeto de vida e, principalmente, de sua situação no campo. Uma tomada de posição do escritor não resulta da sua total liberdade em relação à tradição: “é preciso lembrar que nessas matérias a liberdade absoluta, exaltada pelos defensores da espontaneidade criadora, pertence apenas aos ingênuos e aos ignorantes” (BOURDIEU, 1996, p 266). Assim, a tradição alimenta toda nova obra (mesmo que esta conteste o seu legado), mas também poderá ser alimentada pelas inovações que a obra lhe incorporar. De todo modo, o escritor sempre estará vinculado a uma tradição.

Para Bourdieu, todas as possibilidades de mudança de posição no campo, mesmo as

mais revolucionárias, só acontecem porque já existem “como lacunas estruturais”, ou seja,

existem como potencialidades a serem concebidas. Além disso, acrescenta o autor, “é preciso que tenham possibilidades de ser recebidas, isto é, aceitas e reconhecidas como ‘razoáveis’, pelo menos por um pequeno número de pessoas, aquelas mesmas que sem dúvida teriam podido

concebê-las” (BOURDIEU, 1996, p 266). Desse modo, Bourdieu retira do sujeito criador

qualquer possibilidade de inovação independente, pois tudo estaria previsto pela sociologia dos campos, mesmo as pesquisas mais audaciosas, como o foram as vanguardas europeias, por exemplo. Em última instância, é uma posição confortável no campo econômico que determinará a escolha do artista:

A propensão a orientar-se para as posições mais arriscadas, e sobretudo a capacidade de as manter duradouramente na ausência de todo lucro econômico a curto prazo, parece depender em grande parte da posse de um capital econômico e simbólico importante (BOURDIEU, 1996, p 294-295).

Assim, o escritor que vive de outras rendas, independentes das vendas de seus livros, por exemplo, terá maior propensão, segundo Bourdieu, a assumir posições audaciosas no campo literário. O argumento faz sentido, pode até ser tomado como regra, mas não se aplicaria ao

caso de José Saramago quando da publicação de Manual de Pintura e Caligrafia e Levantado

do Chão, os romances que definiram o seu estilo. Se o escritor tinha material simbólico e cultural suficiente, a julgar por sua biografia, seu capital econômico era nenhum. Vejamos como ocorreu esse processo.

No ano de 1975, quando, em decorrência da contrarrevolução de novembro, Saramago foi demitido, decidiu não procurar outro emprego (até porque era improvável que encontrasse)

e tentar viver da sua escrita. Depois de sua estreia frustrada em 1947, com Terra do Pecado, e

intervalo de quase vinte anos, retornando à literatura em 1966. Entre essa data e o ano do seu segundo romance, 1977, publicou dois livros de poesia, dois de crônicas, dois de escritos

políticos, e um texto experimental, entre poesia e prosa12. À decisão que considerava a mais

importante da sua vida (SARAMAGO, 2013, p. 28) seguiu-se outra, não menos significativa,

que foi a de retornar ao romance, gênero que abandonara após a primeira experiência.13

Saramago inicia então a escrita de Manual de Pintura e Caligrafia, que publicaria em

1977. O romance narra a história de H., um pintor medíocre – que tem consciência disso – em

sua busca por uma nova forma de expressão, seja na pintura, cuja qualidade deseja melhorar, seja na escrita, em que se aventura como aprendiz. O amor de M., mulher ao mesmo tempo serena e determinada em seu engajamento político e em sua visão de mundo, é um fator decisivo no percurso de autoformação do protagonista: nascem juntos um novo artista e um novo homem.

Considerando, pois, seu caráter de (re)estreia, essa segunda tentativa representa, como acertadamente observa Horácio Costa (1997, p. 275), a conquista do ato de narrar. Para o grande

público, Saramago se tornou conhecido com Levantado do chão (1980) e foi consagrado com

Memorial do convento (1982), mas é no Manual de Pintura e Caligrafia, assim como nas

crônicas, que encontramos a gênese do escritor em que ele se transformou, pois essas obras

contêm, como veremos a seu tempo, muitos traços germinais do seu estilo, como a ironia, a reflexão filosófica, a digressão, os temas que abordam a relação do homem com os vários tipos

de poder. Manual de Pintura e Caligrafia ocupa, na vida e na obra do autor, um espaço de

reflexão, transição, aprendizagem e sedimentação:

Primeira incursão pelo território da prosa de ficção do Saramago que já transitara pelos caminhos do verso, da crônica literária e política e da prosa experimental, Manual de pintura e caligrafia funciona como um cadinho no qual todo o percurso textual que o escritor acumulara até então se reflete, desde sua primeira configuração em Terra do pecado até O ano de 1993 [...]. Neste processo de reflexão [...] pode o crítico observar, com um pouco de liberdade interpretativa, qual o lugar que corresponde a cada uma dessas linguagens no texto presente frente ao texto futuro ou, para utilizar um símile geológico, qual a contribuição relativa dos diferentes estratos anteriores naconformação do terreno que, a partir de então, o autor virá ocupando com a sua escrita romanesca (COSTA, 1997, p.274).

O livro de Horácio Costa, que é a sua tese de doutoramento, procura examinar “a

contribuição relativa dos diferentes estratos anteriores” na formação do escritor maduro. Para

12 Respectivamente: Os Poemas Possíveis (1982; 1.ª ed. 1966) e Provavelmente Alegria (1987; 1.ª ed. 1970); Deste Mundo e do Outro (1986; 1.ª ed. 1971) e A Bagagem do Viajante (1996; 1.ª ed. 1973); As Opiniões que o DL Teve (1998; 1.ª ed. 1974) e Os Apontamentos (1998; 1.ª ed. 1976); O Ano de 1993 (2007; 1.ª ed. 1975).

13 Essa informação baseia-se nos livros publicados até então, o que não inclui Claraboia, que, embora tenha sido escrito na década de 1950, é uma obra póstuma (2011).

isso, ele analisa cada uma das obras publicadas antes de 1980 (ano de Levantado do Chão), em todos os gêneros que Saramago cultivou, apontando as características temáticas e formais que se desenvolveriam nos romances da segunda fase, mas que já se anunciavam nessas obras. O resultado dessa pesquisa constitui material indispensável para a compreensão do período formativo do escritor português.

Se, por um lado, partilhamos das conclusões a que Horácio Costa chegou, com muita competência, em seu trabalho, sentimos, por outro, a necessidade de aprofundar em nossa pesquisa um aspecto que, por escolha metodológica, o autor apenas mencionou no exame de Manual de Pintura e Caligrafia: a relação desse romance com a vida de Saramago, ou seja, a relação desse autor com a sua autobiografia, como fundamento para a elaboração da narrativa. Não ignoramos o fato de que é possível ler e analisar esse romance desconhecendo ou desconsiderando o contexto em que ele foi gerado. No entanto, pensamos que a obra ganha uma dimensão mais humana quando levamos em conta, como sugere Maingueneau, as suas condições de enunciação, ou seja, a posição do escritor no campo literário (Bourdieu). Dizemos “mais humana” porque, no caso que estamos analisando, destacamos um elemento biográfico: uma mudança importante na vida do autor que teve consequências decisivas em sua obra.

O elemento biográfico está entre os agentes que compõem a rede responsável pelas condições de enunciação da obra, segundo Maingueneau, que propõe a substituição do esquema que pressupõe a linearidade do processo de gestação da obra (a necessidade de expressão, a escolha de um suporte, a redação, a difusão e o provável reconhecimento) por um outro modelo:

Deve-se preferir a ele um dispositivo de comunicação que integra ao mesmo tempo o autor, o público, o suporte material do texto, que não considera o gênero como um invólucro contingente, mas como parte da mensagem, que não separa a vida do autor da condição social do escritor, que não pensa a subjetividade criadora independentemente de sua atividade de escrita (MAINGUENEAU, 2001, p. 20).

A ideia básica é, portanto, a integração entre o escritor e todos os elementos que se relacionam com a instituição literária, entre eles a própria vida do autor, especialmente os fatos que se relacionam diretamente com a criação de sua obra, como no caso de Saramago e a escrita de Manual de Pintura e Caligrafia (1992). Em situações como essa, mesmo reconhecendo os limites de cada área, devemos admitir, com Bourdieu (1996, p. 365), que a análise histórica é “que permite compreender as condições da ‘compreensão’, apropriação simbólica, real ou fictícia, de um objeto simbólico que pode acompanhar-se dessa forma particular de fruição que chamamos estética”. Assim, o dispositivo de comunicação proposto por Maingueneau permite ao analista uma abertura muito maior em relação às possibilidades de leitura da obra literária,

sem que por isso a sua essência, ou seja, sua natureza estética, seja comprometida. Pelo contrário, a compreensão dessa natureza é facilitada pelo diálogo que porventura se estabeleça entre a obra e o seu contexto de enunciação.

Desse modo, relacionando certos elementos como o autor, o gênero, a condição social

do escritor, a subjetividade e a atividade da escrita, podemos comparar Terra do Pecado, o

primeiro romance de Saramago, com Manual de Pintura e Caligrafia, e perceber uma mudança

de estilo na composição das duas obras. A atitude do escritor em relação ao segundo romance, alterando significativamente o modo de narrar, a estrutura do enredo, a construção das personagens, enfim, instaura a diferença entre a estética naturalista, que influenciou o primeiro romance, e a moderna (ou pós-moderna, como preferem alguns), que caracteriza o segundo.

Iniciando com a morte do marido da protagonista, Terra do Pecado (o título foi

alterado pelo editor visando a fins comerciais: o original era A Viúva) narra o conflito de Maria

Leonor, entre a honra à memória do marido e os seus desejos sexuais incontroláveis, a ponto de fazê-la se envolver com o cunhado e, depois, com o médico da família. O enredo é linear, o que não constitui propriamente uma diferença em relação aos romances posteriores, mas o detalhamento na descrição do ambiente e das ações, mesmo as secundárias, e a construção das personagens, revelam a obediência do jovem escritor (tinha então 24 anos) aos modelos de narrativas do século XIX. Tomemos, a título de ilustração, uma das cenas que flagram o conflito