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O cronista viajante: o mundo de Saramago

O título do segundo livro de crônicas de Saramago cristalizou uma característica do autor que foi pioneiramente apontada por Maria Alzira Seixo (1999, p. 20), que o define como homo viator. Se isso se torna mais evidente a partir de A Bagagem do Viajante (1996, 1.ª ed. 1973), não é, todavia, verdade que antes desse livro não se possa conceber o autor como um

viajante em sua escrita: Deste Mundo e do Outro reúne, como vimos, viagens pelos mais

diversos itinerários, como a memória, o tempo, a arte, a filosofia, todas protagonizadas pelo eu do cronista, embora nem sempre seja dele que se fale. É preciso, pois, retornar a essa primeira coletânea para buscar a crônica que, mais do que todas, pode assumir a função de ponte entre Deste Mundo e do Outroe as obras que a seguirão: “Viagens na minha terra”.

No estudo que fizemos desse texto, na seção anterior, destacamos a dubiedade com que Saramago tratou o título do romance de Garrett, ao tomá-lo para si próprio, ou melhor, para sua escrita, que requer “O silêncio de quem se acha colocado no arranque de uma estrada e convoca as forças preciosas que a viagem lhe vai exigir. A viagem na minha terra, pois é dela que estou falando” (SARAMAGO, p. 52-53). Naquele momento, se o escritor se restringia fisicamente ao espaço de Lisboa, suas crônicas viajavam, indo até onde o jornal as levava, fosse pela distribuição comercial, fosse na bagagem de um viajante. Eram, assim, “como pontes lançadas no espaço vazio à procura de solo firme onde possam assentar a sua esperança de duração” (SARAMAGO, p. 52), e cumpriam a sua função de aproximar o cronista e o leitor.

No final da década de 1970, Saramago recebeu uma proposta, feita pelo Círculo de Leitores, para escrever um livro sobre Portugal, nos moldes de um guia turístico. Reconhecendo que não poderia fazê-lo, o autor apresentou uma contraproposta: “Se vocês quiserem, se

estiverem interessados nisso, eu posso fazer uma viagem e depois conto” (SARAMAGO apud

REIS, 1998, p. 117). Dessa empreita nasceu Viagem a Portugal (1985, 1.ª ed. 1981), livro de

difícil classificação, misto de crônica de viagem (sem dúvida, a face que predomina), impressões estéticas, relato histórico, devaneios da memória.

Maria Alzira Seixo (1999, p. 10) considera que essa obra “entretece muitos dos veios que da crónica levam ao romance, na prática novelística do autor”. De fato, mesmo

considerando que Saramago havia publicado o romance Manual de Pintura e Caligrafia em

1977, dois anos antes de realizar a viagem por seu país, algumas características de Viagem a

Portugal parecem antecipar, mais do que ocorre no Manual, o estilo do autor que viria a se

definir com Levantado do Chão, escrito no mesmo período que aquele: certa oralidade que

marca a cadência da frase, e a tematização de questões ligadas ao povo simples do interior de Portugal, especialmente a vida e a luta dos camponeses. Aliás, é preciso ressaltar o equilíbrio

que há, em Viagem a Portugal, entre o espaço e o homem na visão do escritor: tanto quanto um

livro sobre lugares, é um livro sobre o povo português, aspecto que já predominava nas crônicas.

Coerente com a sua opinião em relação à obra de Garrett (“o melhor das Viagens é

exatamente a viagem - a crónica”), o autor escreve um livro que, com efeito, foge a qualquer

modelo de guia turístico, e essa diferença se faz notar pela presença ostensiva do eu do “viajante” no relato, de quem o narrador emite opiniões, manifesta alegria ou indignação, expressa reflexões sobre o mundo, a arte e os homens por meio de inúmeros desvios, que são as suas digressões. Além disso, há um fio narrativo que acompanha o correr dos dias, como o desenrolar de uma história, fato que, provavelmente, embasou a opinião de Maria Alzira Seixo, mencionada acima.

A viagem em si, ou seja, o deslocamento físico por dezenas de aldeias, vilas e cidades de todas as regiões portuguesas, permitiu a Saramago completar aquela lacuna apontada na crônica “Viagens na minha terra”: “essa terra que é minha, que não conheço toda, que mal conheço” (SARAMAGO, 1985, p. 52). Mas foi muito além disso. Ao cronista que olhava a sua terra do horizonte de uma janela, essa viagem proporcionou, a julgar pelo relato, um olhar novo e amplo sobre o país e o seu povo e, consequentemente, sobre o próprio autor e o seu mundo.

Por isso, entendemos que Viagem a Portugal pode ser considerado como uma espécie de

extensão das crônicas de Deste Mundo e do Outro e A Bagagem do Viajante, formando com

eles uma “trilogia da viagem” do escritor pelo seu universo, fundamental para se compreender a sua obra como um todo.

Embora reconheçamos a importância de Viagem a Portugal nessa trilogia – pois, além

do seu valor como obra autônoma, esse relato deita luzes sobre os textos anteriores, por vezes complementando-os, como veremos -, os limites do nosso estudo obrigam-nos a priorizar os dois volumes de crônicas, seja por pertencerem a um mesmo gênero, seja por possuírem afinidades que proporcionam uma coerência metodológica em sua análise. Nosso intuito é convocar o relato da viagem sempre que parecer profícuo um diálogo com as crônicas,

Antes de viajar literalmente por sua terra, e contar o que viu nesse relato precioso que é Viagem a Portugal, Saramago realizou, como cronista, uma incursão simbólica pelo seu mundo, examinando alguns aspectos do seu passado e do seu povo, da sociedade portuguesa e

seus males, e também da arte. Desse percurso, reuniu A Bagagem do Viajante: 59 crônicas cuja

variedade temática indica a existência de, pelo menos, três tipos de viagem através da escrita: a viagem pelo tempo, a viagem “ao redor do homem”, para lembrar o título da obra de Xavier

de Maistre (1763-1852)43, e a viagem pela arte.

No primeiro caso, o cronista volta-se para o passado, percorrendo os meandros da memória pessoal e daquela que podemos chamar de universal, dado o alcance amplo de suas reflexões sobre o tempo e a história. A rigor, poderíamos afirmar, como aliás vimos fazendo desde o início, que a obra de Saramago é toda ela uma viagem pela memória, entendida esta como a vivência que modelou a visão de mundo do autor, expressa em seus escritos. Essa memória é responsável pelo conjunto da obra, ou, como sugere Lejeune (1996, p. 115), pelo “espaço autobiográfico” do autor.

Talvez seja mais apropriado, para os objetivos deste estudo, distinguir memória de

lembrança, que seria a manifestação mais evidente da memória pessoal do escritor. Assim, A

Bagagem do Viajante contém a memória do autor no sentido amplo, ou seja, a memória

histórica e universal, além da pessoal (assim como Os Poemas Possíveis, Provavelmente

Alegria e Deste Mundo e do Outro, livros que comentamos anteriormente), e algumas lembranças da história de sua vida, narradas em diversas crônicas (como ocorre também em Deste Mundo e do Outro).

A crônica que abre o livro, “Retrato de antepassados”, é um exemplo desse caso. Conforme fez na primeira coletânea, o cronista introduz a obra com o tema da memória pessoal, numa espécie de apresentação de si ao leitor, como se desejasse dizer quem é, antes de falar sobre o mundo e, com isso, continuar a dizer-se. Tratando de sua árvore genealógica, não o incomoda que seja mirrada ou até obscura, antes o honram os poucos antepassados que, pelo poder da escrita, novamente transforma em personagens: “Um avô berbere, um outro avô posto na roda (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais

graves e formosos” (SARAMAGO, 1996, p. 11)44, que são, ao mesmo tempo, criadores e

criaturas do autor.

43 Viagem à roda do meu quarto (2008, 1.ª ed. 1794).

44 Como todas as citações serão retiradas dessa edição, doravante indicaremos apenas as páginas em que se encontram.

Essa dupla possibilidade, recordemos, foi o tema do discurso de Saramago ao receber o prêmio Nobel, em 1998, quando deu aos antepassados o estatuto de personagens, oferecendo, assim, uma outra veia interpretativa para a frase-chave dessa crônica de 1973: “Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda” (p. 9). Estava o autor, aí, como o faria durante toda a vida, reivindicando a sua presença em tudo o que criara e ainda viria a criar.

Uma das formas de perceber essa presença é a valorização, por parte do autor, da memória pessoal em referências frequentes a episódios da sua infância, especialmente aqueles acontecidos na aldeia onde nasceu. Na crônica “E também aqueles dias”, o autor justifica essa recorrência:

Perdoe-se a quem nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro (p. 21).

É sintomático, pois, o fato de, tanto em Deste Mundo e do Outro quanto em A Bagagem

do Viajante, o autor iniciar os livros com um conjunto de crônicas sobre o seu passado, cuja

recriação é possível analisar em cotejo com a sua escrita autobiográfica, especialmente com As

Pequenas Memórias (2006), em que certos fatos ficcionalizados pelo cronista são retomados pelo memorialista, como tivemos oportunidade de assinalar na seção anterior, e o faremos durante o exame desta última obra.

É o caso, desta vez, da crônica “A minha subida ao Evereste”, que narra o episódio da escalada do freixo de mais de trinta metros de altura pelo rapazinho de Azinhaga (nas memórias, a altura é mais modesta: vinte metros (SARAMAGO, 2006, p. 17)). Motivado por reflexões

sobre as dificuldades do “aparentemente imediato ofício de viver, que não parece sequer

requerer aprendizagem” (p. 13), o cronista inicia o texto melancolicamente, até observar que a lembrança de “um certo e breve minuto da existência” pode justificá-lo e nutrir no homem a esperança de transformar o mundo:

[...] Hoje, por exemplo, seja qual for a razão, estou a ver, à distância de trinta e muitos anos, uma árvore gigantesca, toda projectada em altura, que parecia, na lezíria circular e lisa, a haste de um grande relógio de sol. [...]

Vejo um garoto descalço rodear a árvore pela centésima vez. Ouço o bater do seu coração e sinto-lhe as palmas húmidas das mãos e um vago cheiro de seiva quente que sobe das ervas. O rapazinho levanta a cabeça e vê lá no alto o topo da árvore que se agita lentamente como se estivesse caiando o céu de azul (p. 14).

Os trechos acima exemplificam um recurso utilizado com frequência por Saramago, nesse livro, ao recriar fatos da sua infância: o distanciamento que instaura entre o eu-narrador

e o eu-narrado. Naturalmente, essa distância existe sempre que um narrador-personagem se reporta ao próprio passado, afinal o tempo transforma o ser humano a cada dia – o que somos hoje difere já em relação ao que éramos ontem. É esse espaço de tempo que permite a reflexão sobre o vivido, bem como a inclusão de detalhes ou imagens que a recriação permite, como a da “árvore que se agita lentamente como se estivesse caiando o céu de azul”. Difícil imaginar uma imagem poética desse porte sendo criada por um rapazinho que apenas tinha em mente o desafio da altura.

Essa distância é ainda maior, no caso da crônica em questão, pela referência ao “garoto” ou ao “rapazinho” (e não ao “eu”) e pelo uso da terceira pessoa, que criam uma situação de discurso em que o “eu” parece referir-se a um outro, e não a si mesmo no passado. Há, porém, um esforço de aproximação entre os dois, por parte do cronista, por meio de atualização dos sentidos: verbos como “vejo”, “ouço”, “sinto” atuam como se o autor dissesse: “Este sou eu; esta a minha memória”.

Daí para frente é uma história da superação “do medo de não ter coragem” de prosseguir a subida, adiantada já em vinte metros. Sem malabarismos críticos, é possível dizer que “A minha subida ao Evereste” representa, simbolicamente, a história do próprio autor, no que diz respeito à sua postura diante dos desafios que a vida e a escrita lhe impuseram, fato cuja complexidade veio sendo transfigurada esteticamente desde o primeiro livro de poesia do autor, Os Poemas Possíveis.

Em “Terra de Siena molhada”, vemos atingir o grau máximo essa proximidade entre o cronista e o menino que ele foi. A propósito de algumas palavras que são um mistério para as crianças, agravado pela má pronúncia dos adultos, e cujo significado só o tempo esclarece, o cronista empreende uma viagem repartida em várias, como fará tantas vezes o protagonista de Viagem a Portugal: os caminhos do espaço e do tempo se cruzam, e a viagem pelos lugares desencadeia diversas viagens pela memória. Na crônica em questão, é pela memória que o viajante começa:

Era o caso, também, daquela outra cor, terra sena, terra sena queimada, que eu via comprar, em pó, de um amarelo sombrio e ardente, como se fosse poeira do sol. Magníficas palavras da infância, que precisam de esperar longos anos até deixarem de ser um cego cantar de sons e encontrarem a imagem real que lhes corresponde (p. 185).

A partir desse ponto, o cronista inicia a narração de outra viagem, desta vez pelo

espaço, num estilo que reproduzirá em Viagem a Portugal: junto com amigos, vai a Siena45,

onde chegam à noite e são recebidos por uma chuva forte que esconde o lugar. Com o tempo limpo na manhã seguinte, a visão da cidade, ainda molhada, sob a luz do sol, provoca no visitante uma viagem insólita pela memória, porque não vai do presente em direção ao passado, mas faz o percurso contrário:

Foi como se das antigas terras da memória uma criança viesse colocar-se ali ao meu lado, um rapazinho magro e tímido, de calção e blusa. Éramos dois: eu, calado e grave, já sabedor de que em tais circunstâncias só o silêncio é sincero; ele, gajeiro que no tope do mastro grande descobre pela primeira vez a terra que buscava, murmurando a

medo: “Terra sena, terra sena queimada”, e desapareceu, voltou ao passado, feliz por

ter visto, por ter sabido finalmente o que significavam as misteriosas palavras que ouvira dizer aos adultos, mortos na ignorância do que haviam dito.

Alguém se aproximou de mim. E eu disse, sem olhar, com uma voz brincada que se

dominava: “Terra de Siena, terra de Siena molhada” (p. 186).

Interessante notar o diálogo que essa crônica estabelece com “A minha subida ao

Evereste”. O liame entre as duas é o rapazinho, “gajeiro que no tope do mastro grande descobre pela primeira vez a terra que buscava”. O mastro, aqui, e o alto freixo, naquela crônica, simbolizam o percurso longo por que passou o menino até alcançar o adulto, na cidade de Siena, para que ambos descobrissem juntos a nova terra: uma palavra.

Colocados lado a lado, pelo poder da memória e da escrita, o cronista e o menino que ele foi figuram no quadro desejado ainda pelo autor, trinta anos depois, quando utiliza, como epígrafe de seu livro de memórias, a frase “Deixa-te levar pela criança que foste” (SARAMAGO, 2006, p. 7). Ambas as situações revelam o esforço do autor em se manter coerente com o seu passado, respeitando a inocência infantil e tentando não desaprendê-la. As palavras descobertas pelo adulto, “terra de Siena”, não apagarão “terra sena”, assim como o presente não apaga o passado, antes pode iluminá-lo e aumentar o seu vigor.

É com esse profundo respeito pelo passado que o cronista envereda por uma memória que não é apenas sua, mas de toda a humanidade. Trata-se de algumas crônicas cuja ênfase recai sobre a relação do homem com a história, a tradição, as marcas deixadas ao longo do tempo, e

a própria passagem do tempo. É esse último aspecto o que o cronista aborda em “As terras”,

cujo início, irônico e bem-humorado, revela duplamente a rapidez das mudanças no tempo e a avidez do homem em promovê-las:

45 A referência a Siena, nesse livro, é importante ser destacada se considerarmos a relevância que essa e outras cidades italianas terão no romance Manual de Pintura e Caligrafia, que o autor escreverá daí a poucos anos, como veremos no capítulo seguinte.

Como um ser vivo, as cidades crescem à custa do que as rodeia. O grande alimento das cidades é a terra, que, tomada no seu imediato sentido de superfície limitada, ganha o nome de terreno, no qual, feita esta operação linguística, passa a ser possível construir. E enquanto nós vamos ali comprar o jornal, o terreno desaparece, e em seu lugar surge o imóvel (p. 69).

Provavelmente referindo-se à cidade de Lisboa, inominada porque qualquer uma poderia servir de exemplo, o cronista descreve melancolicamente as mudanças na paisagem, que afetam principalmente as crianças: “Hoje, a cidade cresce tão rapidamente que deixa para trás, sem remédio, as infâncias” (p. 70). Mas, inusitadamente – porque o otimismo parece não ser a marca desse cronista -, o texto toma um novo rumo, assim como as mudanças de que fala, e encerra-se com o sentimento de esperança:

E então descobre-se que as terras estão no interior da cidade e que todas as descobertas e invenções são outra vez possíveis. E que a fraternidade renasce. E que os homens, filhos das crianças que foram, recomeçam a aprendizagem dos nomes das pessoas e dos lugares e outra vez se sentam em redor da fogueira, falando do futuro e do que a todos importa. Para que nenhum deles morra em vão (p. 70).

Vemos novamente destacar-se a importância dos “filhos das crianças que foram”, na construção de uma cidade mais humana, em que os “nomes das pessoas e dos lugares” sejam

novamente aprendidos. (Impossível não lembrar de Todos os Nomes, romance que o autor

publicará em 1997, e que questiona, entre outras coisas, a burocratização das pessoas e dos

lugares – da vida, enfim). O texto fala, pois, de uma cidade possível, atenuando o que dissemos

atrás sobre a ausência de otimismo do cronista.

A palavra “possível”, aliás, vem acompanhando, explicitamente ou não, a obra de

Saramago comentada até aqui. Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria, seus livros de

poesia, atestam já nos títulos o seu principal tema, a realização de uma possibilidade; as crônicas, e as viagens que nela existem, também falam de mundos possíveis. É preciso, então, buscar um ponto de equilíbrio entre o que vimos de desilusão nessa obra, como em algumas

crônicas de Deste Mundo e do Outro, por exemplo, e a esperança que ressurge em “As terras”.

Talvez a frase que inicia o último parágrafo da crônica sirva-nos de orientação: “Mas é sina dos homens, ao que parece, contrariar as forças dispersivas que eles próprios põem em movimento ou dentro deles se insurgem” (p. 70). O antídoto contra essa dispersão, ou fragmentação, para usarmos uma palavra cara à linguagem “pós-moderna”, estaria na memória, mais precisamente – no caso dessa crônica – nas crianças que são o passado daqueles homens. Quando estes se dispersam, envolvidos na roda viva da cidade, é a memória de si e dos antepassados que os faz reunir-se novamente “em redor da fogueira, falando do futuro e do que

a todos importa. Para que nenhum deles morra em vão”. A memória, assim, é o elemento que dá sentido ao mundo e à existência humana.

Podemos também admitir que a fogueira ao redor da qual os homens se reúnem simbolizaria o retorno à origem, a reintegração do homem à sua raiz, ao centro do ser: “Segundo

Angelus Silesius, como o ponto conteve o círculo, o círculo retorna ao ponto. O homem

primordial ou o homem verdadeiro (tchen-jen), reintegrado no estado edênico, retornou da

circunferência ao centro” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 779). É no centro que, na

crônica “As terras”, o homem se reencontra: “descobre-se que as terras estão no interior da cidade”. Se a ocupação desses espaços provoca, de início, um movimento em direção à periferia, o tempo e a memória dos homens encarregam-se do retorno à origem, antes de seguir ao futuro.

Vislumbrar o futuro sem esquecer o passado, ou, como queria Álvaro de Campos, trazer “o passado roubado na algibeira” é, para o cronista, radicar-se no mundo e ter consciência disso: “De facto, não creio que alguém possa, com verdade, dizer-se do seu tempo, se não se sentir envolvido num todo geral que abarque o mundo como ele é e como ele foi”, afirma na crônica “Ir e voltar” (p. 159). A sua consciência histórica, neste e em tantos outros textos, revela-se também na preocupação que manifesta em relação a seu país. Longe de pregar uma