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“Introvertido, labiríntico, algo masoquista na dissecação dos seus sentimentos, um certo gosto em ‘chafurdar’ em si mesmo. Simultaneamente, uma tremenda e constante

necessidade de comunicar” (SARAMAGO apud AGUILERA, 2008, p.47). Embora essas

características pudessem perfeitamente ser atribuídas ao pintor H., o protagonista de Manual de

registradas, provavelmente em 1951, no material preparatório de Saramago para o romance Os Emparedados, inédito e inacabado. Na opinião de Fernando Gomes Aguilera (2008, p. 46-47), que as revelou em exposição sobre a vida e a obra do autor, as dezesseis folhas datilografadas que compõem as notas preparatórias desse romance relacionam-se com a “psicologia do jovem Saramago” e “constituem um verdadeiro tratado íntimo”. Admitindo-se essa premissa, aquela caracterização inicial poderia também referir-se ao próprio Saramago, de cuja personalidade

alguns traços sofreriam uma “transposição ‘metafórica’ do campo prático pelo mythos”, de

acordo com a lição de Ricoeur (2012a, p. 82). Em outras palavras, seria estabelecida, pela mímesis, uma relação de semelhança entre o mundo “real” e o fictício, ou melhor, entre o autor e sua personagem.

Sem pretender enveredar por esse caminho de modo simplificador, interessa-nos observar nessas notas, por enquanto, dois aspectos: primeiro, aquele que justificaria o epíteto de “tratado íntimo”, sugerido por Aguilera, para mensurar a importância desse texto no âmbito da relação entre literatura e autobiografia na obra de Saramago; e segundo, a hipótese (nossa, desta vez) que localiza nesse esboço de romance a gênese, senão formal, ao menos temática, de Manual de Pintura e Caligrafia. Vamos ao primeiro ponto.

Após delinear aquelas que seriam as personagens principais de Os Emparedados – um

homem e uma mulher -, o escritor reflete:

Talvez não consiga escrever este romance. Terei de meter nele excessivamente de mim para ser crível. Há quinze anos que chafurdo dentro de mim. Para que continuar? Pergunta sem resposta. Creio que não tenho outra saída senão continuar a chafurdar. Não conheço mais nada. Estou sempre tão ocupado com as dores que me dizem respeito que não me sobram olhos e compreensão para as dos outros e quando tal acontece não é para compreendê-las, mas para chorá-las. Introvertido, labiríntico – e egoísta também. Mas como pode deixar de ser egoísta quem toda a vida viveu

“dobrado sobre si mesmo”? Quem toda a vida foi repelido, poderá deixar de ser

egoísta? Deixem, portanto, que eu seja egoísta. [...]

Há que escolher. Memórias ou romance? Confissão ou ficção? Eu sei que as minhas confissões totais valeriam todos os romances que até hoje se escrevem, não por serem minhas, mas por serem totais [...]. Eu sou um simples homem, hesitante e desgraçado, mortificado pela vida e pela cobardia. Não há em mim nada do que faz grandes os homens.

[...]

E o romance? E a literatura? Para que escrevo eu? Escritor?! Só por ironia. Falta-me tudo para ser escritor menos o conhecimento da escrita que, aliás, é comum a 50 por cento da população. E, sendo assim, por que escrevo? Que interesse tem responder a esta pergunta? Escrevo porque escrevo e acabou-se. Escrevo mal, já sei, tenho um vocabulário de guarda-portão, mas escrevo. Senão escrever, que farei? (SARAMAGO apud AGUILERA, 2008, p. 47-49).

Os trechos acima revelam que o escritor transita livremente da vida para a obra e desta para a vida, como se não houvesse nada a separá-las, ou antes, como se uma dependesse da

outra (“Senão escrever, que farei?”). O tom é confessional, aproximando o texto, de fato, de um tratado íntimo, não apenas do homem, mas do escritor. Em consequência de sua propensão ao intimismo, impõe-se a dúvida entre escrever memórias ou romance, e o esboço que deixou comprova que o autor escolheu o segundo. Poderíamos, então, perguntar: se as suas “confissões totais valeriam todos os romances que até hoje se escreveram”, por que não as escolheu como opção de uma nova obra? Um quarto de século depois, Philippe Lejeune sugeriria uma resposta:

se a autobiografia é um primeiro livro, seu autor é consequentemente um desconhecido, mesmo se o que conta é sua própria história: falta-lhe, aos olhos do leitor, esse signo de realidade que é a produção anterior de outros textos (não

autobiográficos), indispensável ao que chamaremos de “espaço autobiográfico”

(LEJEUNE, 1998, p. 23).

Tomemos, porém, cautela com essa afirmação de Lejeune, que deve ser relativizada. Se a condição referida por ele (“a produção anterior de ‘outros textos’”) é indispensável para a existência do espaço autobiográfico, não o é para o êxito de algumas obras memorialísticas que

inauguram o seu autor. É o caso, por exemplo, de Pedro Nava e seu Baú de Ossos (1973, 1.ª ed.

1972), primeiro dos seis volumes das memórias que são praticamente a sua obra completa, e Por Onde Andou Meu Coração (1968, 1.ª ed. 1963), de Maria Helena Cardoso, que ofuscou os

dois livros – um deles, romance - que a autora publicou em seguida.

A situação de Saramago, porém, é diferente. No início dos anos de 1950, ele era quase

um desconhecido, pois a publicação de Terra do Pecado, em 1947, não havia alterado esse

quadro. A explicação de Lejeune, portanto, seria viável para o seu caso, mas o próprio escritor se encarregou de justificar a escolha pelo romance em vez das confissões, que ficaram, até certo

ponto, restritas às notas preparatórias: “Eu sou um simples homem55, hesitante e desgraçado,

mortificado pela vida e pela cobardia. Não há em mim nada que faz grandes os homens”. A quem interessariam, portanto, suas confissões?

Ocorre que a memória sempre foi muito atuante nas escolhas de Saramago, e se o primeiro texto francamente autobiográfico teria que esperar a sua vez depois de mais de uma

dezena de obras ficcionais (referimo-nos aos Cadernos de Lanzarote), isso não significa que

tenha sido vedada à autobiografia a sua participação nessas obras, mesmo disfarçada de ficção. É o que já se percebe nessa tentativa de romance, a julgar pelo manuscrito da primeira página,

55 Note-se a semelhança com a famosa frase de Eça de Queirós: “eu sou apenas um pobre homem da Póvoa do

Varzim” (QUEIROZ, 1945, p. 76), extraída de uma carta do escritor a Pinheiro Chagas, datada de 14 de dezembro

de 1880. Ela também foi parafraseada por Pedro Nava, na abertura de Baú de Ossos: “Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais (NAVA, 1973, p. 13). A ironia de Eça, que repercute, como tivemos oportunidade de analisar, na obra de Saramago, convida-nos a suspeitar também da sinceridade dessa frase nas notas a Os Emparedados...

que reproduz o tom intimista (reforçado pelo uso da primeira pessoa) daqueles trechos das notas referentes ao autor. Transcreveremos algumas passagens dessa página de abertura com dois objetivos: demonstrar o intimismo da personagem (o mesmo do autor) e introduzir o segundo aspecto desse material preparatório que despertou nosso interesse, qual seja, a identificação de

algumas semelhanças significativas entre Os Emparedados e Manual de Pintura e Caligrafia,

o que faria do primeiro uma semente do segundo, mesmo considerando as duas décadas que os separam:

Levantei-me com o livro na mão e fiquei parado no meio do quarto. Olhei as

reproduções que iluminavam as minhas paredes: a “Mulher que Chora”, de Picasso, a “Parábola dos Cegos”, de Bruegel e um “Clown Triste” de Rouault – e disse outra vez para me ouvir a mim mesmo: “leur sommeil a toujours l’air d’un pressentiment”. [...]

Anos antes Aragon escrevera aquelas palavras. A centenas de quilômetros do lugar onde ele vive, numa cidade chamada Lisboa, um dos seus 800.000 habitantes, um homem de outra língua e de diferentes hábitos – recebeu a descarga eléctrica que tais palavras continham, para mim reservada e mandada intacta nas páginas de um livro.

Certamente, antes de mim, muitas pessoas leram “Les Yeux d’Elsa”, algumas se terão

detido naquele verso ressoante – eu só o compreendi, só em mim ele atingiu a pessoa a quem se destinava. Justamente porque a minha vida fora uma longa sonolência, um dormitar forrado de pesadelos e torturas, o safanão brusco e irresistível chegara. E o que em mim havia de desejo de acordar exultava – sono que tem o ar de um pressentimento, o pressentimento do despertar (SARAMAGO apud AGUILERA, 1998, p. 47).

O leitor que tenha em mente o trabalho fundamental de Osman Lins (1924-1978) sobre Lima Barreto e o espaço romanesco (1976) verá, na introdução a Os Emparedados, uma ilustração exemplar da tese do crítico, que buscava responder a perguntas como esta:

Onde, por exemplo, acaba a personagem e começa o seu espaço? A separação começa a apresentar dificuldades quando nos ocorre que mesmo a personagem é espaço; e que também suas recordações e até as visões de um futuro feliz, a vitória, a fortuna, flutuam em algo que, simetricamente ao tempo psicológico, designaríamos como espaço psicológico [...] (LINS, 1976, p. 69).

Podemos adiantar, a propósito dessa discussão, que em Manual de Pintura e Caligrafia

“a personagem é espaço”, se considerarmos que ela é o lugar onde ocorrem as mais intensas

transformações que dinamizam a narrativa. Além de ser um espaço de transitoriedade, é em H.

que ocorre a integração entre vida e pintura, como essa que as páginas introdutórias de Os

Emparedados anunciavam, com as “reproduções que iluminavam” a personalidade do protagonista. No romance de 1977, um dos exemplos mais ilustrativos dessa integração encontra-se na cena que se segue à última relação sexual entre H. e Olga:

Deixei-me ficar deitado, sobre os lençóis, porque gosto de estar nu e por saber que o meu corpo não é daqueles que irremediavelmente desarrumam o espaço. A idade ainda não destruiu tudo. A secretária Olga (porque será que me recuso a separar-lhe o nome da profissão? o nome da profissão?) acabou de vestir-se, e nesse instante o

quadro que formávamos tornou-se incongruente, como o é o Concerto Campestre (Giorgione) [Figura 1] ou o seu reflexo oitocentista Déjeuner sur l’herbe (Manet) [Figura 2], ou os quadros lunares de Delvaux, com a diferença de que neste caso o signor (ou monsieur) é que estava despido. A incongruência do quadro (o meu quadro) e dos quadros (Giorgione, Manet, Delvaux) era, no meu espírito, a mesma que reuniu o guarda-chuva e a máquina de costura sobre a mesa de dissecção (Lautréamont) (SARAMAGO, 1992, p. 6556).

A “incongruência” da cena romanesca, semelhante à dos quadros mencionados, na verdade se passa também no espírito do pintor de retratos, que intimamente enfrenta o maior

dilema da sua vida, como veremos, o que faz do espaço de Manual de Pintura e Caligrafia um

“espaço psicológico”, no dizer de Osman Lins.

Figura 1: Concerto Campestre, 1477-1510 (Giorgione)

Se “a personagem é espaço”, o lugar e as coisas que a rodeiam também dizem muito

sobre ela, como ocorre no esboço de Os Emparedados. Daquele que seria o protagonista,

podemos inferir, por exemplo, a sua cultura letrada, que se evidencia no livro que tem em mãos, no verso que repete em voz alta (em francês) e nos quadros que decoram o seu quarto. Note-se, aliás, que essas reproduções ganham particularidade quando a personagem declara que elas

“iluminavam as minhas paredes”: eram, portanto, os seus quadros, escolhidos provavelmente

por uma razão pessoal.

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Figura 2: Le Déjeuner sur l’Herbe, 1862-1863 (Manet)

Situando-os no tempo e no espaço, que dizem as pinturas e o verso “leur sommeil a

toujours l’air d’un pressentiment”57? Este pertence a “La nuit de Dunkerque”, um dos poemas

que compõem o livro Les Yeux d’Elsa (1950, 1.ª ed. 1942), do escritor francês Louis Aragon

(1897-1982). O fato de aparecer também como epígrafe nas notas preparatórias do romance parece indicar que essas palavras têm importância não apenas para a personagem, mas também para o seu autor. Elas se inscrevem no contexto da Segunda Guerra, e se referem à Batalha de Dunquerque, que durou de 25 de maio a 4 de julho de 1940, quando os alemães encurralaram as forças francesa e britânica no nordeste da França, forçando a evacuação, pelo mar, de centenas de milhares de soldados, aqueles que tiveram a sorte de não morrer. No poema, que recria o ambiente de desespero dos soldados perante a iminência da morte, o verso acima acentua essa perspectiva. Nele, o “pressentimento” tem uma carga bem maior de angústia do que de esperança, supondo que houvesse alguma, e não provoca o efeito de uma epifania, como ocorre no esboço do romance. De todo modo, é a essência da ideia de pressentimento que viaja na página do livro para atingir o leitor lisboeta, imerso também numa atmosfera de opressão provocada pela ditadura salazarista. Se existe diferença entre o horror evidente da guerra e certa sutileza política do sistema totalitário, ela se desfaz no alvo: pessoas morrem nos dois casos.

Por isso, a presença de um verso de Aragon nesse texto é emblemática. Alguns dados da biografia do escritor a justificam: pertenceu ao Partido Comunista; integrou, durante a Segunda Guerra, o grupo francês da Resistência; conviveu com Maiakovski (cunhado de sua

esposa, Elsa Triolet), de quem teria recebido influência em relação à escrita, pois distanciou-se dos surrealistas e passou a criar obras de cunho marxista; participou da Guerra Civil Espanhola como voluntário, lutando ao lado dos republicanos. Essa última informação, em especial, reforça a ligação entre o protagonista e Aragon, embora não explicitamente, como na citação do verso. Trata-se, desta vez, do significado da pintura que também compõe o texto.

A primeira reprodução mencionada é Mulher que chora (1937), obra conhecida no

Brasil como Mulher chorando, de Pablo Picasso (1881-1973) (Figura 3). Contemporâneo de

Guernica, esse quadro tem afinidade com o grande painel em que o pintor retratou o massacre ocorrido naquela cidade espanhola, bombardeada pelos alemães como mostra de apoio ao ditador Franco durante a Guerra Civil.

Figura 3: Mulher Chorando, 1937 (Picasso)

O choro da mulher seria pelas vítimas inocentes, pelo horror da guerra, pela cegueira

dos homens. Por isso, a reprodução dialoga com a seguinte, Parábola dos Cegos (1568), de

Pieter Bruegel, o Velho (c. 1525-1569) (Figura 4), que representa a passagem de Mateus 15:14: “Deixai-os, são cegos, guias de cegos. Se um cego guia outro cego, cairão ambos no barranco”.

Hoje se torna inevitável a associação dessa referência com o romance Ensaio sobre a Cegueira

(1995). No espaço da memória em Saramago, é possível observar como um romance bem realizado, porque fruto da maturidade do escritor, pode se ligar a um esboço de outro que o antecedeu em quase cinquenta anos, mantendo a coerência de um pensamento sobre o mundo e seus problemas.

Figura 4: Parábola dos Cegos, 1568 (Pieter Bruegel, o Velho)

Figura 5: Clown Trágico, 1911 (Georges Rouault)

A terceira reprodução, de Georges Rouault (1871-1958) (Figura 5), que decora as

paredes do protagonista de Os Emparedados transfigura, por sua vez, esse pensamento, pois,

como observa João Frayze-Pereira (2010, p. 228), “se as figuras de Rouault parecem

condição humana levada à amarga consciência de si”. A obra de Saramago será também uma

forma de revelação da condição humana simbolizada pelo clown triste, como desejava, para a

sua poesia, Manuel Bandeira (1993, p. 129): “Quero antes o lirismo dos loucos / O lirismo dos bêbedos / O lirismo difícil e pungente dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare // - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”. A proposta que aproxima esses autores é a de uma libertação pela obra, que esta os conduza, e ao leitor, à alma das coisas, que a

linguagem revele o que há por trás do sorriso triste do clown, que é a própria humanidade.

A consonância entre a visão de mundo de Saramago e a de Rouault pode ser ainda

observada no diálogo que se estabelece entre Os Emparedados e Manual de Pintura e

Caligrafia, no que se refere ao objeto do olhar dos pintores: Rouault, presente com um dos seus clowns naquele esboço de romance, e H., criado por Saramago anos depois. Em uma carta a um

amigo, transcrita por Jean Starobinski em Portrait de l’artist en saltimbanque (apud FRAYZE-

PEREIRA (2010, p. 228)), Rouault afirma: “vi claramente que o palhaço era eu, que éramos nós [...] quase todos nós. Essa roupa ricamente bordada nos é dada pela vida [...] E, no entanto, quando tenho um homem diante de mim, é sua alma que desejo ver”. Veremos a seu tempo que a motivação de H. em pintar o segundo retrato de S. está em descobrir a verdade sob a superfície (a “alma” sob a “roupa ricamente bordada” a que Rouault se refere).

Além dessa coincidência, a introspecção da personagem, a relação entre literatura e pintura e a referência histórica do narrador-personagem, unidas à menção, nas notas preparatórias, do desejo do autor de compor um romance de ideias, vinculam as duas obras – Os Emparedados e Manual de Pintura e Caligrafia. Não foi como mera curiosidade comparativa que esse cotejo interveio em nossa pesquisa, mas como um recurso de que lançamos mão em nosso intuito de demonstrar a interferência do espaço da memória na obra de Saramago. Em sua trajetória, não houve experimentos simplesmente descartados, mas sim exercícios que se sedimentaram na construção de uma nova obra que, por sua vez, seria reunida às anteriores para preparar a seguinte, até que o ciclo se fechasse com a morte (física) do autor.

***

Em Manual de Pintura e Caligrafia, é a partir do título que se evidencia a relação entre literatura e pintura, ou melhor, entre a linguagem verbal e a visual. Porém, antecede essa

romance.58 Será esse, aliás, o primeiro de uma série de títulos que jogam com os gêneros

textuais, a exemplo de Memorial do Convento, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho

segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a Cegueira. Remetendo a uma noção prescritiva, por constituir normalmente um conjunto de regras de uma área do conhecimento ou instruções de

uso de determinado objeto, a palavra manual pode, de fato, confundir o leitor, o que revela a

criatividade do escritor na invenção de um título ambíguo. Se a leitura desfaz a primeira impressão, por um lado, em relação ao conteúdo do livro, por outro mantém a sua essência, pois o romance será, com efeito, uma obra de aprendizagem, como veremos.

Se considerarmos o fato de que a primeira edição de Manual de Pintura e Caligrafia

trazia abaixo do título a inscrição “ensaio de romance”, veremos como se tornava mais

complexa a elaboração desse elemento paratextual59, pois a ambiguidade, que já havia no título,

agora é duplicada. Com efeito, a palavra “ensaio” tanto pode indicar a ideia de treinamento,

simulação, esboço, experiência, enfim, tentativa, como também o gênero textual caracterizado pela exposição escrita sobre determinado assunto, sem o rigor formal do tratado científico. Quando questionado sobre a supressão do indicativo “ensaio de romance” a partir da segunda edição, Saramago alegava que, como esta ocorreu após a publicação (e a boa recepção crítica) de Levantado do Chão, em 1980, não fazia mais sentido deixar entender que se tratava de um

romancista estreante, como era a intenção na primeira vez. Isso mostra que a palavra ensaio

teria sido usada, portanto, na primeira acepção que registramos: uma experiência, uma tentativa. Entretanto, será constante a presença de passagens ensaísticas (no sentido de exposição

de ideias) nos romances de Saramago, a partir de Manual de Pintura e Caligrafia. Às vezes em

digressões, outras como forma de introduzir ou intercalar ações, o recurso ao ensaio não é gratuito; ao contrário, agrega-se naturalmente ao conjunto da narrativa, contribuindo tanto para solidificar a ação dos romances, como para marcar a presença do narrador/autor.

Seguindo a ordem de publicação, podemos escolher diversos exemplos de como ocorre essa integração. Embora seja possível citar trechos de todos os romances, limitemo-nos a alguns

casos, a nosso ver representativos. Tendo em vista que Manual de Pintura e Caligrafia é o

objeto de análise neste momento e, portanto, será abundantemente citado, comecemos com

58 Saramago costumava contar a esse respeito o episódio cômico em que o governo de um país africano de língua portuguesa comprara dezenas de volumes do Manual para distribuir nas escolas como obra didática.

59 Em sua coletânea de ensaios sobre a obra de Saramago, Beatriz Berrini (1998, p. 183-221) dedica um deles aos

títulos dos romances do autor, bem como à sua abertura, ou seja, os parágrafos iniciais “que constituem uma

espécie de enquadramento, antes do começo propriamente dito da ação” (p. 191). Embora a autora examine as peculiaridades desses elementos nos romances somente a partir de Levantado do Chão, excluindo, portanto, Manual de Pintura e Caligrafia, remetemos o leitor a esse estudo como possibilidade de adequação dos seus argumentos a essa última obra, cuja abertura, como vimos, é tão instigadora quanto o seu título.

aquele que o sucede, Levantado do Chão. O primeiro capítulo, introduzindo a ação que se

apresentará apenas no segundo (técnica que Saramago reutilizará em O Evangelho segundo

Jesus Cristo, mas com um texto descritivo – detalhando uma gravura de Dürer sobre a Paixão),