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Na longa entrevista que concedeu a Carlos Reis, em 1997, Saramago afirmou que

desejava, com a poesia que escreveu no início de sua vida literária, tentar explicar-se: “creio,

aliás, que foi sempre essa a minha grande questão. Mesmo aí, nessa poesia, tratava-se menos de uma aventura poética do que do começo de uma tentativa, que se prolongou até hoje, de

dizer ou de encontrar suficientes razões para eu dizer quem sou” (SARAMAGO apud REIS, 1998, p. 110). Explicar-se, significa, neste caso, dizer quem é. E como o autor acreditava que nós somos a memória que temos, dizer quem é, através da escrita literária, seja em poesia, romance, crônica ou qualquer outro gênero, significa tomar a memória como base, mesmo que involuntariamente, pois ela está não apenas nas lembranças que temos, mas em nosso próprio

jeito de ser: “Tudo é autobiografia”, afirmará o narrador de Manual de Pintura e Caligrafia

(SARAMAGO, 1992, p. 169).

Percorrer a trajetória de Saramago, acompanhar a formação e a evolução de sua poética

consistiria, assim, em mapear as várias formas que ele escolheu para “dizer-se” (a expressão é

do autor). Por outras palavras, seria atingir a memória sob as palavras, a tecer o homem e a obra. Em 1966, esse homem chegava aos 44 anos, e sua obra ainda não era. Talvez por isso,

seu primeiro livro de poemas – afinal aquele que efetivamente lhe abriu espaço na historiografia

literária portuguesa – nascerá sob o signo da probabilidade, da incerteza presente já no título:

Os Poemas Possíveis.

Se qualquer estudo sobre essa obra deve informar o fato de que ela foi reeditada, com emendas do autor, dezesseis anos depois, no nosso caso isso é imperativo, menos pelas alterações feitas do que pela importância que atribuímos ao prefácio que Saramago escreveu para a segunda edição, texto que, por esse mesmo motivo, preferimos transcrever na íntegra:

Aparece esta edição de Os Poemas Possíveis dezasseis anos depois da primeira. Não é assim tanto, comparando com os dezasseis séculos que sinto ter juntado à minha idade de então. Pode-se perguntar se estes versos (palavra hoje pouco usada, mas competente para o caso) merecem segunda oportunidade, ou se a não ficaram devendo a porventura mais cabais demonstrações do autor no território da ficção. Se, enfim, estaremos observando um simples e nada raro fenómeno de aproveitamento editorial, mera estratégia daquilo a que costuma chamar-se política de autores, ou se, pelo contrário, foi a constante poética do trabalho deste que legitimou a ressuscitação do livro, porque nele teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável, de um corpo literário em mudança. Aceitemos a última hipótese, única que poderá tornar plausível, primeiro, e justificar, depois, este regresso poético.

Poesia datada? Sem dúvida. Toda a criação cultural há-de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz. Mas outras datas leva sempre também, anteriores, as dos materiais herdados – quantas vezes importunamente dominantes -, e, de longe em longe, aquela impalpável data ainda por vir, aquele sentir, aquele ver e experimentar só futuro ainda. Porém, essas entrevisões são coisas apenas para gênios, e, obviamente, não é deles que se trata aqui.

Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futurante. E contra isto não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até ao seu autor, hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis séculos. Assim foi feito, e esta edição aparece não só revista, mas emendada também. Quase tudo nela é dito de maneira diferente, diferente é muito do que por outra maneira se diz, e não faltaram ocasiões para contrariar radicalmente o que antes fora escrito. Mas nenhum poema foi retirado, nenhum acrescentado. É então outro livro? É ainda o mesmo? Eu diria (e com este remate me dou por explicado) que o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irônica o poeta de ontem, lacrimal

às vezes. Ou, para usar expressões menos metafóricas, procurou tornar Os Poemas Possíveis possíveis outra vez. Ao menos (SARAMAGO, 1982, p. 13-14).

A primeira ideia que sobressai desse texto é a relação que o escritor estabelece com o tempo. Os dezesseis anos que passaram, entre uma edição e outra, ter-lhe-iam proporcionado experiências importantes, tanto de vida quanto literárias, a ponto de permitir a ampliação imaginária do período em dezesseis séculos. Realmente, basta lembrar que, em uma década e meia, após incursões por vários gêneros literários, o autor conseguiu firmar-se no romance, e

consagrar-se com Memorial do Convento, em 1982, ano da reedição de Os Poemas Possíveis.

Tudo isso resumido assim, numa frase, faz lembrar a crônica “Os gritos de Giordano Bruno”, de A Bagagem do Viajante (SARAMAGO, 2000, p. 137), em que o autor ironiza os verbetes biográficos que sintetizam toda a experiência de uma vida em duas linhas, omitindo o quanto de dores, alegrias, frustrações e lentas vitórias o biografado tenha conseguido, com muito ou pouco sofrimento, mas de todo modo sofrimento.

Tomando de empréstimo a análise que Paul Ricoeur faz da concepção do tempo para Santo Agostinho e Aristóteles, dir-se-ia que a experiência de Saramago situa-se no tempo psicológico, ou seja, entre o tempo cósmico e o do calendário. Ricoeur considera que “o maior

fracasso da teoria agostiniana foi não ter conseguido substituir uma concepção cosmológica por

uma concepção psicológica do tempo” (RICOEUR, 2012c, p. 15). Contrapondo-se à ideia

agostiniana de que o tempo circunscreve e domina os homens, o autor aproxima-se de

Aristóteles e propõe uma fenomenologia do tempo, considerando a atividade da alma –

percepção, discriminação e comparação – para produzi-lo: “A aporia da temporalidade, a que

responde de diversas maneiras a operação narrativa, consiste precisamente na dificuldade de manter as duas extremidades da cadeia: o tempo da alma e o tempo do mundo” (RICOEUR, 2012c, p. 18-19). A vida do homem não seria regida apenas pelo tempo histórico, que, segundo

Ricoeur (2012c, p. 169), faz “mediação entre o tempo vivido e o tempo cósmico”. Há que se

considerar, como uma opção de medida, o tempo da alma, ou psíquico.

Seria essa a medida utilizada por Saramago no prefácio de Os Poemas Possíveis,

quando considera que os dezesseis anos de intervalo entre uma edição e outra do livro não representam muito tempo, “comparando com os dezasseis séculos que sinto ter juntado à minha idade de então”. Quem “sente”, senão a alma do autor? A cota de incertezas, tentativas, fracassos, pequenas vitórias, tudo isso acumulado pelo trabalho da memória, redimensiona o tempo do calendário que, por si somente, não dá conta do aspecto psicológico do tempo.

Por outro lado, o tempo histórico também pode ser visto de uma perspectiva mais ampla nesse texto. É possível pensar, por exemplo, que o autor é fruto de uma tradição histórica

e cultural de dezesseis séculos. Se recuarmos esse tempo do ponto em que o prefácio veio a

público – 1982 -, será na Alta Idade Média que nos encontraremos, quando a Europa se

reconfigurava após a queda do Império Romano e a invasão dos bárbaros. O surgimento do Cristianismo, que moldou o homem ocidental desde então, é o acontecimento mais importante do período, estando relacionado com todos os que lhe seguiram, inclusive com a obra de Saramago, de que será um dos temas centrais.

Na parte seguinte do prefácio, ao se perguntar sobre o merecimento dos poemas quanto a uma segunda oportunidade, Saramago toca no ponto crucial do texto, a nosso ver: a hipótese de que nesse livro “teriam começado a definir-se nexos, temas e obsessões que viriam a ser a coluna vertebral, estruturalmente invariável, de um corpo literário em mudança”. Por muito que custe à crítica literária aceitar a análise do próprio autor sobre a sua obra, parece-nos legítima a

ideia de germinação que Saramago propõe sobre Os Poemas Possíveis, o que não invalida a

autonomia do livro como obra poética de qualidade suficiente para encarar com dignidade os seus sucessores. Antes, porém, de identificarmos nos poemas alguns desses elementos a que o autor se refere, vejamos outros pontos importantes que o prefácio contém.

Fortalecendo o vínculo entre a obra e o seu tempo, Saramago admite que sua poesia é datada, porque “toda a criação cultural há de ter logo a sua data, a que lhe é imposta pelo tempo que a produz”. Mas isso não significa que seus poemas sejam de circunstância, sem pretensão à universalidade. A arte não precisa ser documental para ser histórica: apenas o fato de ser uma criação humana já a inscreve no tempo humano.

Há, ainda, dois outros tempos referidos pelo autor, o da tradição literária e o do porvir da obra, este apenas intuído. O primeiro caso remete à luta do poeta com a força dos “materiais herdados”, que Harold Bloom postulou em sua tese sobre a angústia da influência. O crítico considera que a história da poesia é “indistinguível da influência poética, já que os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação” (BLOOM, 1991, p. 33). Como o próprio crítico afirma na introdução ao ensaio, um de seus objetivos é desmistificar a crença de que um poeta ajuda a formar outro, pois essa desleitura não é isenta de angústia, tratando-se, na verdade, de um combate que não admite idealizações (de que os talentos fracos são vítimas), mas não pode negar o débito do poeta jovem em relação ao seu precursor.

Bloom ressalta que o estudo da influência poética não deve ser reduzido à investigação sobre fontes; é mais complexo, indo além do cotejo de estilo entre escritores. Embora o crítico reconheça que nenhum poeta usa “uma língua livre da língua forjada por seus precursores” (BLOOM, 1991, p. 56), não é propriamente da manifestação verbal que diz tratar-se, mas da

relação entre identidade e tradição. Em Um Mapa da Desleitura (1995, p. 30), em que dá continuidade à sua tese, afirma: “um poema é a resposta a outro poema, como um poeta é uma

resposta a outro poeta, ou uma pessoa uma resposta a seus pais”19. Para o crítico, a busca da

identidade na arte é ainda mais ilusória do que na vida, mas é essa procura de uma voz própria durante o “ciclo vital do poeta-como-poeta” (BLOOM, 1991, p. 36) que caracteriza a angústia

da influência.20

Em seu prefácio, Saramago admite que alguns materiais herdados são “importunamente dominantes”, expressão que configuraria a sua angústia da influência. Cremos, no entanto, tratar-se menos de um precursor individual (embora seja evidente a força poética de Camões e Ricardo Reis sobre a sua obra, especialmente nos livros de poesia) do que de uma tradição literária que, se de um lado lhe inspira respeito, de outro o intimida e angustia,

até a sua “redenção”, com Levantado do Chão (1980). Depois desse romance, a tradição

(incorporada em Almeida Garrett, Eça de Queirós e Fernando Pessoa, para mencionar apenas escritores portugueses) oferecerá sempre alimento para seus livros, mas escolhido com a segurança de quem encontrou o seu próprio caminho.

Quanto ao porvir, “aquela impalpável data”, “aquele ver e experimentar só futuro ainda”, o autor considera entrevisões próprias dos gênios, não sendo o seu caso. Desconfiemos,

no entanto, da modéstia do escritor e vejamos adiante se não há, entre os versos de Os Poemas

Possíveis, algo que aponte para um futuro ainda obscuro em 1966.

Para tornar esses poemas “possíveis outra vez”, ou seja, para que eles pudessem ainda dizer algo do seu autor, mesmo a uma distância de “dezasseis séculos”, e ao mesmo tempo não perder a sua essência, a segunda edição foi revista e emendada por Saramago, sob a justificativa de que “o romancista de hoje decidiu raspar com unha seca e irônica o poeta de ontem, lacrimal às vezes”. O estudo de Horácio Costa (1997) sobre o período formativo do escritor é um dos raros que apontam algumas das alterações feitas na edição de 1982. Mesmo considerando, como Saramago avisa no prefácio, que algumas emendas contrariam os versos originais, na maioria dos casos ocorrem, a julgar pelo estudo de Horácio Costa, mudanças que não afetam a essência dos poemas, resultando antes no aprimoramento de sua forma. “É então outro livro? É ainda o

19 Marcel Proust (1871-1922) apresenta uma concepção diferente em Contre Sainte-Beuve (1988, p. 50): “Ora, na arte não há (pelo menos no sentido científico) iniciador ou precursor. Tudo [está] no indivíduo, cada indivíduo

recomeça, por sua conta, a tentativa artística ou literária”.

20 O principal símbolo escolhido por Harold Bloom para representar a influência poética é o Querubim Cobridor,

do livro de Ezequiel, “cuja grandeza sinistra é amplificada pela visão do efebo do precursor como um brilho queimando em meio à escuridão” (BLOOM, 1991, p. 67-68). Quanto aos processos em que tal influência se realiza,

o crítico os classifica em: 1. Clinamen ou Desapropriação Poética; 2. Tersera ou Complementação e Antítese; 3. Kenosis ou Repetição e Descontinuidade; 4. Demonização ou O Contra-Sublime; 5. Askesis ou Purgação e Solipsismo; 6. Apophrades ou O Retorno dos Mortos (BLOOM, 1991, p. 43).

mesmo?” Consideramos que nenhum livro é o mesmo depois de dezesseis anos da publicação, mesmo que tenha sua forma inalterada, porque seus leitores atuais serão outros, e outro será o tempo da releitura. Quanto ao autor, se já não é o mesmo, também não será tão diferente que se torne outro: algo ainda se reconhece se cotejados ambos. Por isso, os poemas ainda são não apenas possíveis, mas indispensáveis.

Com o objetivo de salientar a autonomia e a qualidade dos livros de poesia de Saramago em relação ao restante da sua obra, críticos como Horácio Costa (1997) e Maria Alzira Seixo (1987) minimizam ou mesmo contestam (é o caso desta última) aquela indicação do autor sobre os “nexos, temas e obsessões” que teriam começado a definir-se nesses poemas. Da perspectiva memorialística que adotamos, essa indicação é fundamental, e não nos obriga a negligenciar a análise propriamente estética dos livros. Com efeito, pretendemos, ao mesmo tempo que focalizarmos o espaço da memória nessa fase de iniciação poética, demonstrar o valor estético de alguns poemas.

Para os padrões de um livro de poesia, Os Poemas Possíveis é uma obra extensa:

contém 147 textos, divididos em cinco partes de tamanho desigual, a não ser que vejamos simetria no fato de a primeira e a última partes serem longas (com 48 e 67 poemas, respectivamente), ao passo que as intermediárias possuem 8, 14 e 10 textos. As partes são nomeadas, e os títulos em si anunciam os grandes temas que ocuparão a vida e a obra de Saramago, a saber:

1ª parte: “Até ao sabugo”, numa dicção neoclássica, trata da natureza do fazer poético e da obstinação do artista;

2ª parte: “Poema à boca fechada”, em que predominam poemas de teor social ou engajado;

3ª parte: “Mitologia”, de índole pagã ou anticlerical, em que já aparece o ateísmo como motivo;

4ª parte: “O amor dos outros”, em que esse sentimento é vivido pelo poeta e por grandes personagens, como D. João, Inês de Castro, D. Quixote, Romeu e Julieta;

5ª parte: “Nesta esquina do tempo”, que tece relações entre o eu, a memória, o tempo e a tradição.

Embora haja uma inegável coerência nessa divisão, no que respeita à adequação dos títulos ao conteúdo dos poemas, é tênue a linha que separa as partes, ocorrendo por vezes a sensação de que um mesmo poema poderia participar, ao mesmo tempo, de duas ou mais delas. Longe de ser um defeito do livro, tal integração apenas demonstra a sua uniformidade e o equilíbrio do poeta ao percorrer os diferentes temas.

Seriam esses alguns dos “nexos, temas e obsessões” a que o autor se referia no prefácio? Conhecendo a obra e grande parte das declarações do escritor sobre o assunto, acreditamos que sim, mesmo admitindo que, se eles não chegam a abrigar todas as faces da obra de Saramago, contemplam características que lhe são essenciais.

A primeira delas é a busca permanente pela realização artística através da palavra.

“Dificílimo acto é o de escrever”, dirá (ainda) o narrador de A Jangada de Pedra

(SARAMAGO, 1988, p. 12). A ambiguidade da frase (como, de resto, de todo o texto literário) permite-nos lê-la sob o viés da memória e perceber que a sentença já se encontrava, dita de

outras maneiras, em vários versos de Os Poemas Possíveis. Assim, o “dificílimo” ato de

escrever pode ser interpretado tanto em relação à luta com as palavras, que Drummond

descreveu em seu conhecido poema21, como, no caso específico de Saramago, ser uma

referência às barreiras do campo literário que o escritor, em 1966, procurava, com uma persistência digna de nota, ultrapassar para ocupar seu espaço. “Até ao sabugo” (SARAMAGO,

1982, p. 19)22, o poema que abre o livro, dá o tom dessa luta com a escrita:

Dirão outros, em verso, outras razões, Quem sabe se mais úteis, mais urgentes. Deste, cá, não mudou a natureza, Suspensa entre duas negações. Agora, inventar arte e maneira De juntar o acaso e a certeza,

Leve nisso, ou não leve, a vida inteira. Assim como quem rói as unhas rentes.

Roer as unhas rentes é não reconhecer um limite. Ou, admitindo-o, buscar novas vias,

como fará Blimunda Sete-Luas ao procurar Baltazar Sete-Sóis, no Memorial do Convento

(1982): quando deparar com outra língua, na fronteira entre Portugal e Espanha, retornará para

prosseguir seu caminho, levando isso ou não a vida inteira. Blimunda terá uma certeza – a sua

vontade. Precisará que se junte a esta o acaso, para enfim encerrar sua busca. Do mesmo modo, o poeta tem uma certeza, toda ela descrita no poema “Há-de haver...” (p. 51), emblemático da situação do autor naquele período:

Há-de haver uma cor por descobrir, Um juntar de palavras escondido, Há-de haver uma chave para abrir

21“O lutador”, incluído em José, cujos versos iniciais dizem: “Lutar com palavras / é a luta mais vã. / Entanto lutamos / mal rompe a manhã. / São muitas, eu pouco. / Algumas, tão fortes / como um javali. / Não me julgo louco. / Se o fosse, teria / poder de encantá-las. / Mas lúcido e frio, / apareço e tento / apanhar algumas / para meu

sustento / num dia de vida” (ANDRADE, 1983, p. 94-95).

22 Como mencionaremos vários poemas ou versos dessa edição, indicaremos daqui por diante apenas o título e a página em que o texto se encontra.

A porta deste muro desmedido. Há-de haver uma ilha mais ao sul, Uma corda mais tensa e ressoante, Outro mar que nade noutro azul, Outra altura de voz que melhor cante. Poesia tardia que não chegas

A dizer nem metade do que sabes: Não calas, quanto podes, nem renegas Este corpo de acaso em que não cabes.

O parentesco desse poema com o anterior (e com vários outros do livro) reside principalmente na correlação de ideias – as “duas negações” do primeiro alicerçam o “muro desmedido” do segundo – e mesmo na coincidência de palavras, como “juntar” e “acaso”, ambas relacionadas com o ato da criação poética: existe um “juntar de palavras” ideal para o poeta, resta descobri-lo, nem que seja por acaso. Mas o acaso não condiz com o trabalho com a linguagem, ou não fariam sentido os versos de Drummond em “O lutador”, a que nos referimos há pouco. Cabe ao poeta prosseguir a sua luta, e sua principal estratégia é a persistência: “É falar, ir falando, até que sobre / A palavra escondida do que penso” (“Se não tenho outra voz...”, p. 23).

Por vezes, no entanto, ele desanima, especialmente quando sente a pressão do tempo

sob a forma da idade. “Lugar-comum do quadragenário” (p. 36) concentra, em apenas oito

versos, toda a pungência do seu desalento:

Quinze mil dias secos são passados, Quinze mil ocasiões que se perderam, Quinze mil sóis inúteis que nasceram, Hora a hora contados

Neste solene, mas grotesco gesto De dar corda a relógios inventados Para buscar, nos anos que esqueceram, A paciência de ir vivendo o resto.

A escolha pela conversão dos anos em dias, ainda por cima triplamente referidos,

hiperboliza a dimensão do tempo, e imprime no poema o efeito fadigado dos dias inúteis, “hora

a hora contados”. Difícil não relacionar esses versos com o fato de que Saramago tinha, à época,

44 anos. Os Poemas Possíveis assumem, assim, seu lado confessional, aproximando o autor do

eu-lírico e revelando, sob o passado infrutífero do poeta (“De naufrágios, sei mais que sabe o

mar”, dirá em “Oceanografia”, p. 53), a memória do autor, bem como a sua expectativa: “Falta ver, se é que falta, o que serei: / Um rosto recomposto antes do fim” (“Passado, presente, futuro”, p. 38). Por isso, a busca não cessa:

Diante desta pedra me concentro: Nascerá uma luz se o meu querer, De si mesmo puxado, resolver

O dilema de estar aqui ou dentro (“Obstinação”, p. 50).

Uma leitura apenas sincrônica de outra metáfora da pedra, que o autor utilizará na