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Atualmente, vivemos em uma sociedade marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o espaço público. De acordo com Chauí (2001, p. 15), “do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do espaço privado”. O que era direito está se convertendo em serviço privado regulado pelo mercado. Consequentemente, o que era direito está se tornando uma mercadoria ao acesso daqueles que têm poder aquisitivo para adquiri-la. Nesse contexto, segundo a autora, a educação passou a ser considerada um privilégio25 e não um direito humano.

Esse modelo neoliberal baseado na fragmentação e na terceirização acaba sendo reproduzido nas instituições educativas e vem ganhando forças nas últimas décadas. Como abordei nas seções anteriores, no desenrolar desse contexto, há crescentes ataques ao currículo e a docência. Do mesmo modo, desenvolveu-se ações de resistências a uniformização a que estamos sendo submetidos. E essas ações são mobilizadas pelo verbo esperançar, tão defendido por Paulo Freire. Verbo que se assenta no movimento e não na espera, pois segundo o autor, “enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã” (FREIRE, 2019, p. 15).

É com esse esperançar, pautado na ação e não no imobilismo, que entendo a importância de evidenciar o pensamento político pedagógico de Paulo Freire e sua inegável contribuição para a educação, visto que no contexto político que estamos vivendo seu pensamento vem à tona como um necessário resgate. Outros autores,

25 Segundo Chauí (2001), é importante esclarecer as diferenças entre direitos e privilégios, bem como

entre direitos e carências. Sendo que os privilégios e as carências estão no âmbito da individualidade, já que são particulares e específicos. Diferente dos direitos que se constituem no âmbito social, e são alinhados de forma íntima ao espaço público, possuindo uma natureza universal, seja porque é válido para todos, seja porque é reconhecido por todos.

estudiosos de seu pensamento, já escreveram sobre sua contribuição, como é o caso de Gadotti (2004, p. 44) que diz:

Não se pode reduzir a contribuição de Paulo Freire apenas à alfabetização popular de adultos, como muitos dos seus seguidores pensam. Sua contribuição ultrapassa o seu método, situando-se num âmbito mais amplo da educação e da teoria do conhecimento.

Nesse ponto, penso ser importante deixar claro que não pretendo entrar no mecanicismo reprodutor de apenas repetir os escritos de Paulo Freire. Ao contrário, me proponho a reinventá-lo; em pensar o pensado por outrem como ele costumava fazer, formando e reformando sua própria visão. Até porque, em consonância com as palavras de Gadotti (2004, p. 44), “ser fiel a Paulo Freire, significa, antes de mais nada, reinventá-lo e reinventar-se como ele”.

Nessa perspectiva, em tempos atuais, é cada vez mais necessário, reforçar conceitos e concepções já defendidos historicamente em outras épocas, no sentindo de firmar resistências, visto que “Falar do dito não é apenas redizer o dito, mas reviver o vivido que gerou o dizer que agora, no tempo do redizer, de novo se diz. Redizer, falar do dito, por isso envolve ouvir novamente o dito pelo outro sobre ou por causa do nosso dizer” (FREIRE, 2019, p. 23). E este redizer, contemplado pelo revisitar e reviver o vivido, retoma, reforça e até mesmo amplia (ou refuta) aquilo que já temos conquistado e defendido. Nos tempos atuais, encharcados no neoliberalismo, é preciso dizer muito para garantir “o pouco” que temos.

Deste modo, ao longo desse estudo, busquei trazer como enfoque uma compreensão sobre a docência enquanto dimensão histórica e social de formação humana que tem como base a dialética da contradição. Dito de outro modo, consciente de que estou num tempo e espaço historicamente inacabado, inconcluso, é possível entender o mundo como realidade objetiva e existente, que é – e pode ser – construída, desconstruída e reconstruída na medida em que essa objetividade se encontra com aspectos subjetivos, e muitas vezes polarizados, do movimento dialético que envolve o pensamento e a ação humana. Com esse enfoque, reconheço que não precisamos chegar a grandes consensos educacionais e políticos, mas necessitamos compreender os conflitos como parte estruturante do processo dialético de pensar e repensar a educação, e as contradições no sistema educacional e político brasileiro.

Em concordância com Gadotti (2004) torna-se importante ter Paulo Freire como um dos pontos de referências, já que ele foi um dos primeiros educadores brasileiros a romper com o pensamento pedagógico oficial – fruto de contextos externos

hegemônicos do capitalismo – desenvolvendo um pensamento pedagógico crítico e progressista brasileiro. Nas palavras de Gadotti (2004, p. 31):

A ele devemos o mérito de ser um dos primeiros (senão o primeiro) a romper com esses modelos (mesmo assumindo o risco de ser chamado de “ingênuo”), de elaborar a transição para um pensamento pedagógico novo e elaborado, ousado, crítico e radical.

Posicionar a base da contradição para refletir sobre a ação docente, mais precisamente, sobre a (re)construção curricular frente a processos de regulação e autonomia, é entender que a pesquisa se dá em um contexto concreto, num recorte de um tempo e um espaço formativo dialógico e problematizador. Assim, essa pesquisa pretendeu ir além das impressões e inferências que foram colhidas por mim como pesquisadora, mas também intenciona provocar reflexões por meio das percepções docentes sobre o compromisso humano que temos (ou que deveríamos ter) com o outro, seja ele a criança, as famílias ou outros profissionais, no plano da concretude. Nesse sentido, Freire (1996, p.39) nos alerta de que:

O próprio discurso teórico necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo. Quanto melhor faça esta operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica.

Sob essa ótica, a pesquisa pressupõe a investigação de algo que lança uma interrogação, que mobiliza a aceitar a oscilação das certezas e a possibilidade de rever para poder mudar quando for preciso. É reconhecendo que o saber se faz a partir do trabalho concreto juntamente com o da linguagem e do pensamento crítico/reflexivo, que direciona-se a curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica por meio de uma rigorosidade metódica assumida e ética. Esse movimento dinâmico e dialético possibilita nos transformarmos em reais sujeitos críticos na construção e reconstrução do saber, pois como afirma Freire (2016, p. 26):

É preciso não esquecer de que há um movimento dinâmico entre pensamento, linguagem e realidade do qual, se bem-assumido, resulta uma crescente capacidade criadora de tal modo que, quanto mais vivemos integralmente esse movimento tanto mais nos tornamos sujeitos críticos do processo de conhecer, de ensinar, de aprender, de ler, de escrever, de estudar.

Nesse viés, pensando na construção e na reconstrução do saber que também acontece no processo da pesquisa, Charlot (2010) diz que a pesquisa é, antes de

tudo, uma aprendizagem, um artesanato e, o trabalho específico do pesquisador em ciências humanas é identificar e pensar sobre contradições, inclusive aquelas que existem nos campos de sua atuação. A pesquisa em educação carrega consigo valores, interesses, aspirações e desejos que emergem da própria experiência do seu investigador, respondendo a questões muito particulares e aprofundando-se no mundo dos significados das ações e das relações tipicamente humanas. Por isso, traz um grau de exigência grande: desmistificar contradições encontradas na realidade diante de representações tidas como ideais. Portanto, a pesquisa se ampara em uma abordagem qualitativa, visto que

[...] oferece uma atenção especialao mundo do sujeito e aos significados por ele atribuídos às suas experiências cotidianas, às interações sociais que possibilitam compreender e interpretar a realidade, aos conhecimentos tácitos e às práticas cotidianas que forjam as condutas dos atores sociais. (GATTI e ANDRÉ, 2013, p. 30)

Segundo Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa qualitativa envolve o levantamento de dados descritivos, obtidos por meio do contato do investigador com o contexto dos sujeitos da investigação. Ao invés de se preocupar com o produto final, tentam compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em que consistem esses mesmos significados, cuidando para garantir a perspectiva dos participantes da maneira mais fiel possível.

Nesse sentido, a abordagem qualitativa auxilia a compreensão do contexto em que as professoras e os professores estão situados atualmente, bem como as práticas forjadas até então por eles. Essa perspectiva envolve lançar um olhar crítico à docência e aos tensionamentos curriculares que circundam a prática das professoras e dos professores, o que pressupõe que para o entendimento do contexto é necessário compreender o processo histórico, social e cultural que o envolve. Segundo Franco (2003, p. 30),

Reiterando e acrescentando, diríamos que a vida cotidiana não se resume no aqui e agora. Ao contrário, é, sobre tudo, fruto de um longo, conflitivo e complexo processo histórico e social. Portanto, para compreender as situações que ocorrem cotidianamente, é indispensável considerar que essas situações ocorrem em determinado ambiente (situações, espaços temporais específicos) e no bojo de certos campos de interação pessoal e institucional que, por sua vez, são mediados por modalidades técnicas de construção e transmissão de mensagens, cada vez mais complexas nos dias atuais.

Sob essa ótica, as práticas sociais e humanas estão dialeticamente entre o que herdamos, o que adquirimos e o que produzimos, sendo absorvidas, em parte, pela cultura que cultiva modos de ser, de fazer, de pensar, de viver e, em outra,

reconfiguradas na medida em que refletimos criticamente, questionamos epistemologicamente e ressignificamos ações cotidianamente.

Nesse complexo processo histórico e social, definiu-se como campo de estudos e interação desta pesquisa uma instituição de Educação Infantil do município de Florianópolis que abriu seu espaço para a pesquisa por meio de contatos prévios. Para a participação no estudo, foram definidas três professoras voluntárias que foram convidadas a partir dos seguintes critérios: que estavam em situação efetiva na rede; com carga horária de 40h semanais; que estavam exercendo a docência no ano de 2019; que já tinham concluído o estágio probatório da rede municipal. Esta decisão tem em vista o pressuposto de que estas estarão mais familiarizadas com os documentos orientadores do município.

Assim, a pesquisa pretende evidenciar como essas professoras são possíveis protagonistas na construção de saberes e no desenvolvimento de currículos no movimento da ação docente. Na Rede Municipal de Ensino de Florianópolis há duas nomenclaturas para denominar as professoras e os professores da Educação Infantil que se dividem em “professores da Educação Infantil” e “professores auxiliares da Educação Infantil” e estão no quadro do magistério da Prefeitura de Florianópolis. Ambas são responsáveis pelo efetivo exercício da função em atividade docente e trabalham de maneira alternada, diretamente com as crianças. Assim, entre as três docentes participantes, temos duas professoras da Educação Infantil e uma professora auxiliar da Educação Infantil.

Nessa perspectiva, apresento a seguir os instrumentos de pesquisa que foram utilizados na busca de lealdade às percepções docentes.