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A forma como se constituiu a Educação Infantil no Brasil teve implicações no modo como as discussões acerca do currículo foram sendo concebidas na área. Por

ter sido integrada recentemente ao sistema educacional brasileiro (a partir da Lei no

9.394\1996, que estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB/96), ainda busca a construção de legitimidade e maior reconhecimento dentro dos sistemas de ensino. O fato de a Educação Infantil ter tido sua origem a partir de iniciativas assistencialistas protagonizadas por forças médico-higienistas, jurídico-

17Esta temática foi tratada no Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Currículo no contexto da

policiais e religiosas (KUHLMANN JR., 2007), foi reforçando propostas educativas mais centradas em uma perspectiva de cuidado. Segundo Kuhlmann Jr. (2007, p.3):

Não que estas instituições tenham sido assistenciais em uma época e estejam se tornando educacionais. Desde o início, elas foram pensadas como instituições educacionais. No entanto, para as classes populares, para as crianças pobres, reiteradamente se pensou uma educação pobre para os pobres, uma educação de baixa qualidade para os pobres. Aí poderíamos qualificar esta educação como assistencialista, no sentido de revelar um preconceito com a pobreza. No momento de atender a criança pobre já se quer economizar muito mais. Este tipo de visão preconceituosa em relação às classes populares no Brasil ainda persiste de alguma forma. É claro que tivemos avanços. A incorporação ao sistema educacional, de alguma maneira, indica o sentido de tratar a educação infantil como universal, como direito de qualquer criança, mas a realidade ainda está bastante distante disso.

Depreende-se da posição do autor que as diferenças em relação ao tipo de instituição e de propostas educativas foram se estabelecendo também a partir da perspectiva de divisão por classe social. Enquanto para os mais pobres se instituía uma educação mais vinculada ao assistencialismo, aos mais abastados economicamente a proposta hegemônica era de escolarização precoce. Essa diferença não representou simplesmente uma questão de “conteúdo a ser ensinado e a ser objeto de trabalho na instituição” (Idem.), mas de instituir uma proposta pedagógica diferenciada orientada pela questão de classe.

A adoção, por parte da Educação Infantil, de práticas similares àquelas desenvolvidas na, anteriormente denominada, escola primária, bem como a preocupação com a sistematização de conhecimentos com a finalidade de “preparar” para a escolaridade obrigatória, também orientou muitas iniciativas pedagógicas no país. Porém, pensar a Educação Infantil como fase preparatória não permitia (e ainda não permite) que a infância fosse reconhecida como um tempo em si. Em outras palavras, Arroyo (1994, p. 91), confirma este pensamento quando afirma que “não queremos uma escola para um dia ser. Queremos uma escola onde na infância e a cidadania seja uma realidade. Em nome de um dia ser, não deixamos que a criança seja no presente”.

De acordo com Cerisara (1999; 2002), instalou-se de um lado uma “educação assistencial” baseada no modelo hospitalar e familiar e, de outro, uma “educação escolarizante” baseada no modelo da escola do Ensino Fundamental. As dimensões de cuidado e educação eram tidas como elementos separados e, muitas vezes, até antagônicos. “Nessa dicotomização, as atividades ligadas ao corpo, à higiene, alimentação, sono das crianças eram desvalorizadas e diferenciadas das atividades

consideradas pedagógicas, estas sim entendidas como sérias e merecedoras de atenção e valor”. (CERISARA, 2002, p. 11). Essa dicotomia entre o cuidar e o educar justificou então, perspectivas educativas diferenciadas para e na Educação Infantil.

Do mesmo modo, Kramer (2006) também problematiza as dicotomias sofridas pelo binômio cuidar/educar ao longo de sua trajetória conceitual e histórica, movidas principalmente pelas duas visões instaladas: de Educação Infantil como fase preparatória; de Educação Infantil como local de guarda, proteção e tutela. Segundo a autora, “os dois pólos eram arriscados um sem o outro, porque a educação infantil não pode ser compreendida como espaço onde se instrui nem como lugar só de guarda e proteção, lugar de cuidar, assistir [...] o preparatório versus o assistencial, ambos indesejáveis sozinhos” (KRAMER, 2006, p. 75-76). Ambos complementares de si. Assim, educar deveria contemplar o cuidar, e vice versa.

Nessa mesma perspectiva, e em contraposição às duas propostas dicotomizantes, passou-se a defender que “a educação da criança pequena também deve ser pensada na perspectiva de seu direito a brincar, ao jogo, no sentido de proporcionar um desenvolvimento integral [...]” (KUHLMANN JR., 2007, p. 3). Assim,

[...] acredita-se que o esforço da educação infantil deveria ser o de não se distanciar da assistência, para afirmar seu caráter educativo, mas o de promover a ampliação desse vínculo de forma que outros níveis de ensino também fossem imbuídos dessa concepção. (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2012, p. 34)

Até porque,

De origem latina, a palavra “assistência” significa estar junto a ou estar em grupo. É uma ação que converge com a educação, na medida em que educar, muito além de promover a aquisição de conhecimentos sistematizados, é promover a socialização, é estimular os vínculos sociais, é garantir que as novas gerações desenvolvam comportamentos que são próprios de sua cultura. A educação é um processo coletivo, uma forma de relação social entre gerações de diferentes idades, que não se dá em contraposição à assistência. (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2012, p. 33-34. Grifos dos autores)

Na mesma direção, Kuhlmann Jr. e Fernandes (2012) procuram diferenciar a assistência do assistencialismo, pois este último visa uma forma preconceituosa de conceber o atendimento para crianças da Educação Infantil, se tratando da população mais pobre. Essa falsa oposição entre educação e assistência refere-se a essa visão assistencialista orientada pela questão de classe. Portanto, busca-se superar a dicotomização entre o educar e o cuidar, considerando esse binômio indissociável.

No contexto de discussão e construção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), a superação dessa cisão que já vinha sendo tema de

debates e de iniciativas teórico-práticas em diversos contextos, instalou-se como desafio. Os pesquisadores da área passaram a se perguntar: “Como transformar as instituições de educação infantil em um nível de ensino, sem que elas reproduzam ou tragam para si as práticas desenvolvidas no Ensino Fundamental?” (CERISARA, 1999). Este questionamento esteve na base das discussões e reverberou no texto da LDB/96, no qual a educação da infância ganha uma denominação diferenciada. Enquanto as demais são referidas pelo termo “ensino” (Ensino Fundamental e Ensino Médio) a educação da infância é denominada de Educação Infantil. A posição política dos educadores e pesquisadores que debatiam a questão e firmaram tal posicionamento de diferenciação, consubstanciou uma postura de alerta e de chamada de atenção para as especificidades que marcam a Educação Infantil. Constitui-se, portanto, em um marco importante na constituição e reconhecimento da Educação Infantil como espaço e tempo de viver a infância e de ser criança.

A lei em questão veio demarcar o espaço da Educação Infantil, tornando-a a primeira etapa da Educação Básica. Esse avanço foi orientado pela ideia de que era preciso desvincular a pré-escola e a creche da Secretaria de Assistência Social e Saúde, para começar a fazer parte da área da Educação e, portanto, do Ministério da Educação. Essa conquista e reconhecimento foram alcançados pela mobilização social bastante representada pela comunidade acadêmica, grupos de pesquisa na área específica e entidades do campo da Educação. Além disso, de acordo com o Parecer CNE/CEB no 20/09, que faz a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação Infantil (DCNEI), a LDB/96

[...] evidencia o estímulo à autonomia das unidades educacionais na organização flexível de seu currículo e a pluralidade de métodos pedagógicos, desde que assegurem aprendizagem, e reafirmou os artigos da Constituição Federal acerca do atendimento gratuito em creches e pré- escolas. (BRASIL, 2009)

O lugar que passa a ocupar a Educação Infantil no contexto da Educação Básica chama a questão da organização do currículo para as crianças de 0 a 6 anos18

à discussão. Uma vez que, até pouco tempo falar em currículo para a Educação Infantil poderia produzir (e ainda produz) certo desconforto, principalmente pela

18 Apesar de os documentos oficiais referirem-se à Educação Infantil especificando a idade das crianças

de 0 a 5 anos, nesse estudo, optei por utilizar o recorte de 0 a 6 anos, visto que ainda há crianças com seis anos que frequentam a Educação Infantil, já que a Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 05/2009, indica que a matrícula no Ensino Fundamental das crianças deve ser efetuada para aquelas que completam 6 anos até 31 de março do ano da matrícula.

constante vinculação do termo com as etapas seguintes de escolaridade, para as quais existem programas, grades de matérias e conteúdos predefinidos contendo o que se deve ensinar. A preocupação, no entanto, conforme já mencionamos, é procedente, tendo em vista a história de institucionalização da Educação Infantil no Brasil. Nessa história, a centralidade do trabalho nas instituições ora esteve mais atento ao “cuidar” e ora mais no “educar” a partir de práticas espelhadas no ensino fundamental, antecipando saberes escolares vinculados, especialmente às áreas de matemática e língua portuguesa.

A busca pela superação dessa lógica dualista vem de longa data. No Brasil, no entanto, as décadas de 1980 e 1990 foram profícuas na produção de pesquisas, estudos e documentos no âmbito das comunidades de pesquisadores e, também, na esfera do governo central na direção de construir políticas e propostas pedagógicas que considerassem as especificidades da Educação Infantil. Nesse período é possível identificar uma maior preocupação com o que é específico da criança, da infância e da Educação Infantil, bem como, uma significativa mudança em como se compreende a função social, política e pedagógica da primeira etapa da Educação Básica, diferenciando-a das demais etapas. Segundo Barbosa (2009, p. 9), podemos reivindicar três funções indissociáveis para a Educação Infantil:

Primeiramente uma função social, que consiste em acolher, para educar e cuidar, crianças entre 0 e 6 anos e 11 meses, compartilhando com as famílias o processo de formação e constituição da criança pequena em sua integridade. Em segundo lugar, a função política de contribuir para que meninos e meninas usufruam de seus direitos sociais e políticos e exerçam seu direito de participação, tendo em vista a sua formação na cidadania. Por fim, a função pedagógica de ser um lugar privilegiado de convivência e ampliação de saberes e conhecimentos de diferentes naturezas entre crianças e adultos.

A articulação dessas três funções oportuniza a condição de pertencimento, socialização, desenvolvimento e identidade para as crianças, as professoras e professores, e as famílias. Cada etapa da Educação Básica possui especificidades relacionadas aos diferentes períodos da vida, ainda que alguns princípios e objetivos sejam pensados em transversalidade em todos as etapas. O receio de que a Educação Infantil fosse concebida a partir das premissas de escolarização que orientam as demais etapas levou muitos educadores e pesquisadores da área a questionarem se a Educação Infantil deveria se envolver com a questão do currículo. A preocupação com as especificidades de um currículo para a Educação Infantil firmou um posicionamento político na defesa dessas singularidades. Nessa direção,

alguns pesquisadores19 explicitaram e argumentaram a favor do uso de outras

denominações como: proposta pedagógica, projeto pedagógico, projeto/proposta

educacional/educativa, proposta curricular, projeto político-pedagógico, orientações curriculares, entre outras, que, em síntese, acabam trazendo acepções próximas da

ideia de “projeto formativo” partilhada por Pacheco (2005). Porém, na medida em que

foi sendo definida e defendida uma identidade para a Educação Infantil, o uso do termo currículo – sem objetivar sua visão restrita, mas reforçando através de uma acepção mais aberta aquilo que traz especificidade a primeira etapa da Educação Básica – foi fazendo-se mais natural no âmbito da Educação Infantil, principalmente por meio dos documentos que expressam as políticas para a primeira etapa da Educação Básica. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (Parecer CNE/CEB no 20/09 e Resolução CNE/CEB no 05/09), por exemplo, utilizam o termo

currículo e sua conceituação está assim expressa:

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico. Tais práticas são efetivadas por meio de relações sociais que as crianças desde bem pequenas estabelecem com os professores e as outras crianças, e afetam a construção de suas identidades. (BRASIL, 2009, p. 6).

Compreendo que o currículo na Educação Infantil expressa um projeto formativo em todas as suas possibilidades de tensionamento, quais sejam: políticas, epistemológicas, econômicas e culturais. Corroborando com as ideias de Pacheco (2005) e Sacristán (2000; 2013), de que o currículo não é somente prescritivo, pode- se afirmar que ele se constitui também no movimento da prática pedagógica, no qual as tensões e contradições entre autoria e as prescrições externas – entre autonomia e regulação, são inerentes à docência.

A docência reúne as formas verbais e não verbais das professoras e professores e é anunciadora de seus saberes, portanto, também é discursiva, pois por meio dela executamos uma Educação Infantil

[...] sustentada nas relações, nas interações e em práticas educativas intencionalmente voltadas para suas experiências cotidianas e seus processos de aprendizagem no espaço coletivo, diferente de uma

19 Uma expressão bastante contundente desse receio e das discussões que se instituem está registrada

em um documento elaborado no âmbito do Ministério da Educação e da Coordenação-Geral de Educação Infantil (MEC\COEDI), denominado de “Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil: um diagnóstico e a construção de uma metodologia de análise” (1996) elaborado no período de 1994 a 1996.

intencionalidade pedagógica voltada para resultados individualizados nas diferentes áreas do conhecimento. (BARBOSA, 2009, p. 8).

Assim, o currículo da Educação Infantil revela-se como um articulador das experiências e conhecimentos, pois traz intersecções diretas do universo da criança que auxiliam nos processos gerais de sua identidade social e cultural. “É que a identidade dos sujeitos tem que ver com as questões fundamentais de currículo, tanto o oculto quanto o explícito e, obviamente, com questões de ensino e aprendizagem”. (FREIRE, 2016, p. 93). Importa destacar, que o conhecimento não é necessariamente o objetivo final da educação da criança pequena, mas é consequência das mediações e relações sociais múltiplas que a criança estabelece.

Dessa forma, na medida em que o currículo para a Educação Infantil configura- se cotidianamente a partir do movimento da docência, e reconhece o conhecimento e a aprendizagem como pertencentes ao contexto da Educação Infantil, também promove uma identidade para essa primeira etapa da educação básica. Esse currículo que marca uma identidade para a Educação Infantil, também se revela como marco na prática pedagógica, e consequentemente da formação de uma identidade para a docência na área.