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A frase que destacamos como epígrafe deste capítulo foi dita por um estudante secundarista que participou das ocupações de escolas públicas em Santa Maria/RS. Ela nos remete à ideia de que tais instituições estão virando um depósito de jovens. Os pais e mães chegam, largam seus filhos e filhas, e vão embora. Em um cotidiano atarefado, marcado por intenso trabalho, na percepção desse estudante, é como se eles e elas se “livrassem” de um problema, de uma responsabilidade. Nesse sentido também, a participação dos pais, das mães e da comunidade nas atividades desenvolvidas na escola é cada vez mais escassa. Ao lado dessa cultura de depósito, os e as estudantes denunciam a precarização na qual está imersa a educação pública. Infraestruturas vulneráveis, falta de merenda escolar, desvalorização do professor e da professora, insegurança, falta de material didático, legislações retrógradas. Conjuntura que reflete não apenas na escola, mas na violência crescente que vemos nas ruas, na desigualdade social, no subdesenvolvimento do país.

Nesse ponto é importante demarcamos nossa ênfase nas reflexões que concernem à educação básica e pública, visto que foi ela o pano de fundo da resistência dos e das estudantes secundaristas que ocuparam suas escolas entre 2015 e 2016, colocando em pauta tais discussões. Segundo a Lei nº 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação básica é constituída pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio, e tem por finalidades, segundo o Art.22 “desenvolver o educando, assegurar- lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (BRASIL, 1996). Em relação à última etapa da educação básica, a Lei traz o seguinte texto:

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. (BRASIL, 1996).

Através dessas diretrizes, está nítido o caráter basilar desse contexto de ensino. Para Cury (2002, p.170), “A educação básica é um conceito mais do que inovador para um país

que, por séculos, negou, de modo elitista e seletivo, a seus cidadãos o direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar”.

De acordo com o Censo Escolar de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira/INEP71, o Brasil possui um total de 183.376 escolas

de ensino básico, a maioria dessas, 145.647, públicas. Em relação ao número de matrículas em escolas públicas, os dados apontam para cerca de 35 milhões de estudantes, distribuídos em creches, pré-escolas, anos iniciais, anos finais, ensino médio, educação de jovens e adultos (EJA) e em educação especial.

A taxa de evasão escolar é maior entre os e as estudantes de ensino médio, alcançando um percentual de 7,5%, cujo abandono ocorre principalmente no primeiro ano do ensino secundário. Sobre aspectos relacionados à infraestrutura, alguns dados chamam a atenção, como o percentual baixo de escolas que têm esgoto via rede pública (39%), coleta de lixo periódica (70%), biblioteca (31%), quadra de esportes (32%), além de que apenas 26% são escolas com dependências acessíveis aos portadores de deficiência. Dados que evidenciam o quanto ainda precisamos progredir em termos de estrutura básica em nossas escolas públicas na construção de espaços mais adequados, atraentes e profícuos à formação humana. Cenário que predomina de forma hegemônica no sistema de ensino brasileiro e que é fruto de um processo histórico, político e cultural de descaso com a educação.

Um exemplo desse contexto são as relativamente jovens regulamentações na área. É a partir da retomada democrática do país e com a Constituição Brasileira de 1988 que o Estado traça metas para a universalização do ensino e a erradicação do analfabetismo. Segundo o Art. 205, “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988). Em 1996 é promulgada a nova Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional/LDB (Lei nº 9.394) que institui de forma mais sólida a Política Educacional Brasileira. Nesse período também é criado o Conselho Nacional de Educação (Lei 9131/1995), o Sistema de Avaliação do Ensino Básico/SAEB (1990) e o Fundo de Manutenção do Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF, que depois torna-se FUNDEB), Lei 9.424/1996, que institui um percentual mínimo das receitas de Estados e Municípios para serem aplicados anualmente na educação, sendo 60% desse percentual para o pagamento das e dos professores. Logo,

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percebemos que essas medidas, cruciais para a criação de políticas em educação pública, foram institucionalizadas há cerca de 30 anos. Tendo em vista a história de mais de 500 anos do país, percebemos, nesse prisma, o quanto é recente os avanços e investimentos efetivos na área.

Um olhar a esse percurso nos remete a alguns momentos fundamentais da trajetória brasileira. Romanelli (2012) explica que as primeiras relações entre Estado e educação iniciam na época colonial, com a atuação das Companhias de Jesus na catequização cristã dos indígenas. Depois da expulsão dos jesuítas, institui-se o ensino “laico e público” no país a partir de um ensino baseado nas Cartas Régias. Nesse período, escravos não tinham direito à instrução, apenas homens brancos (e não mulheres). Com a chegada da família real no início do século XIX, foram criadas iniciativas como Academias Militares, Escolas de Medicina, Museu Real, Biblioteca Real, Jardim Botânico, entre outras. Outras propostas para a educação emergiram a partir da instituição do império em 1822, como leis que determinaram a criação de escolas de “primeiras letras” em vilas e lugarejos do país. Com a instauração da República (1889) vieram novas reformas, como a instituição da distribuição dos e das estudantes em séries.

Não obstante, foi no governo de Getúlio Vargas (1930-1945) que são implantadas as reformas educacionais mais consistentes nesse prisma evolutivo. O contexto era de crescente urbanização e industrialização da economia, e o choque causado pela Primeira Guerra Mundial (1914) e pela Revolução Russa (1917), despertaram no Estado a necessidade da educação na revitalização dos valores e relações sociais. Nesse período, foram criados, por exemplo, o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, decretado a organização do Conselho Nacional de Educação, além de na Constituição de 1934, ser instituída a criação do Plano Nacional de Educação. Nessa época, dado esse cenário, haviam muito intelectuais preocupados em instituir reformas e avanços na educação. Outro período destaque da história brasileira nesse contexto foi o regime militar, marcado pelo autoritarismo, instituição do ensino da moral e cívica no colégio e algumas reformas no ensino médio e fundamental, como a exclusão de disciplinas como filosofia e a instituição do vestibular classificatório para o ingresso nas universidades.

Como é visível nessa breve síntese, a história da educação no Brasil é um processo envolto por vários avanços e retrocessos, conectados diretamente com as organizações de poder. Como aborda Romanelli (2012, p.14), “[...]a forma como evolui a economia interfere

na evolução da organização do ensino, já que o sistema econômico pode ou não criar uma demanda de recursos humanos que devem ser preparados pela escola”, além de que “A forma como se organiza o poder também se relaciona diretamente com a organização do ensino”. Na série de aulas sobre A História da Educação no Brasil72, as pesquisadoras também destacam

essa dinâmica. Para elas, todo o sistema que temos hoje – o currículo escolar, as graduações de ensino, os modelos de gestão da educação, a legislação, distribuição das escolas, as universidades, as políticas públicas – deve ser pensado como fruto de uma construção social e cultural. Processo marcado por imposições do Estado, resistência da população, influência de modelos e contextos internacionais, experiências, estudos e pesquisas de educadores e educadoras.

Tal base histórica, que envolve também outros aspectos não mencionados aqui, é fundamental para compreendermos muitas das configurações do ensino que temos hoje. Ao estudar essa trajetória, a percepção de Romanelli (2012, p.13) é que “Em princípio, descobrimos que, substancialmente, pouca coisa mudou na forma de encarar a educação que nos foi legada pelos jesuítas”. Ao olhar para esse percurso permeado por interesses econômicos e retrocessos como a proposta da Escola sem Partido (PL 190), a diminuição de repasses de recursos à educação a partir da PEC 55, podemos mencionar que a educação como meio para a promoção da justiça social, dos direitos humanos e da igualdade, continua não sendo prioridade no Brasil desde 1500. Há muito trabalho e luta pela frente. E a resistência é fundamental para inibir a naturalização dessa conjuntura de crise, que como diz Darcy Ribeiro, "A Crise da Educação no Brasil não é uma Crise, é um Projeto".