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Contexto histórico espanhol e memória histórica

Segundo Aróstegui, a Guerra Civil Espanhola

(...) foi uma guerra prolongada que não acabou em 1939, senão que permaneceu viva em toda uma geração ao menos até os anos sessenta avançados. E, enfim, porque estancou seriamente o desenvolvimento histórico do país e deixou um imenso rastro de repressão e liquidação. (...) Em nada se contribuiu para apaziguar esse conteúdo traumático, senão, pelo contrário, as expressões da memória jamais puderam, durante os quarenta anos seguintes, refletir em igualdade de influência social as posições de ambos os bandos simultaneamente e no seio mesmo da massa social que a sofreu. Durante muito tempo somente pôde fazê-lo um bando, o vencedor. (ARÓSTEGUI, 2006, p. 73).

Esta característica, peculiar a regimes fortes, de extinção da memória do vencido, acarreta o problema de impossibilidade do entendimento do trauma, como problema do país e também relativo à vida das pessoas no seio da sociedade. À compreensão da unificação da comunidade espanhola em Porto Alegre, através do Centro Espanhol, faz-se necessário um breve recorrido do contexto histórico espanhol do período franquista e, com a morte de Franco, da chegada do PSOE ao poder.

Após a ascensão econômica espanhola dos anos 1960 a 1974, os históricos problemas espanhóis silenciados pela ditadura voltaram com força redobrada: as nacionalidades oprimidas, o papel das Forças Armadas, a representação política da burguesia e a grave questão agrária (MOMPÓ; MARCÓ, 1995, p. 160).

Para estes autores, o Plano de Estatização de 1959, fez por 20 anos a Economia espanhola ter grande crescimento econômico, ao reequipar e ao reestruturar o seu aparelho

115 produtivo, ao diminuir custos, ao conquistar mercados externos, ao investir no turismo; no entanto, endividou-se com o capital estrangeiro, o que fez aumentar a sua dependência financeira.

Membro da Comunidade dos Estados Europeus desde o final da década de 1960, a Espanha beneficiou-se da entrada de divisas decorrentes e utilizou-as para o reaparelhamento do Estado; iniciou-se, assim, o consumo de massas no País ao mesmo tempo em que evidenciava-se a diferença salarial existente entre os países membros daquele organismo. Desta maneira, a industrialização e a modernização que elevaram grandemente a renda do País, gerando intensa mobilidade econômica, dividiram internamente o poder franquista, assediado por uma nova elite vinculada aos setores bancário-financeiro, empresarial e administrativo, cujo reflexo na sociedade era a expansão da classe média urbana (MORADIELLOS, 2000).

Neste mesmo período, renascia o movimento dos trabalhadores que, ao aproveitar os momentos agônicos da ditadura franquista, saía às ruas, reivindicando direitos, mostrando os limites do desenvolvimento econômico vigente, que se baseava não no desenvolvimento estatal, mas na dependência externa e na superexploração dos trabalhadores (MUNIZ, 1995, p. 194). Às quase inexistentes manifestações trabalhadoras da década de 1960 surgiram enormes enfrentamentos a partir de 1970, localizadas nos centros industrializados. Diferentemente dos serviços grevistas da época Pré-Guerra Civil, agora se incorporavam os setores de saúde, ensino, bancos e transportes. É neste período que ocorrem as últimas execuções do Governo Franquista contra opositores.

Na década de 1980, o desmantelamento do setor público e a desnacionalização da Economia aprofundavam a crise internacional. Na Espanha, a ofensiva contra os trabalhadores sacou as conquistas salariais e os direitos trabalhistas adquiridos (MOMPÓ; MARCÓ, 1995, p. 165).

As Forças Armadas seguiam à parte do poder civil, o que acarretaria problemas na transmissão de Governo, visto ser um organismo nunca acostumado à democracia. Igualmente problemáticas se tornaram as autonomias regionais e a demora no atendimento de suas reivindicações. A tática franquista diante da descentralização do Estado foi permitir uma relativa autonomia, organizando partidos e grupos políticos com verniz democratizante no interior destas regiões para captar a massa dos eleitores (MOMPÓ; MARCÓ, 1995, p. 167).

É neste contexto que, entre os anos de 1975 e 1982, dá-se a transição da ditadura militar à Monarquia Constitucionalista. Originada no Pacto de Moncloa (1977-1979), deu

116 origem à “reforma pactada”. Com participação de todas as forças políticas, o Pacto teve caráter econômico e jurídico-político. Basicamente orbitou em torno de questões como a liberdade de expressão, os meios de comunicação social, a mudança do Código Penal e do papel Justiça Militar sobre a ordem pública, além da reorganização das forças de controle (MUNIZ, 1995, p. 189).

Tal “reforma pactada” não permitia reformas profundas no Estado espanhol, nem tampouco que se avaliasse o período franquista, decidindo-se, deste modo, pelo esquecimento e pela reconciliação. Para Moradiellos (2000), ao aceitar as diretrizes do Pacto de Moncloa e sem enfrentar os problemas estruturais históricos do País, o acordo da nova burguesia com a social-democracia e com o stalinismo permitiu que o PSOE chegasse ao poder, com grande votação, em 1982.

Eram semelhantes os problemas com aqueles que resultaram na eclosão da Guerra Civil, ainda que os seus agentes fossem outros. Se naquele momento foi o golpe militar que despertou e calou o movimento revolucionário, agora um acordo classista e político, tomando emprestado um partido de esquerda burguês, e sob um novo “pacto” social, tratava de acalmar os mesmos ímpetos revolucionários que ressurgiam (MUNIZ, 1995, p. 197; De MARCO, 1995, p. 115).

Visto isso, cabe salientar agora que o desenvolvimento histórico espanhol, desde a Guerra Civil, passando pela ditadura franquista até a ascensão do PSOE ao poder, formou três tipos de memórias identificadas por Aróstegui (2006, p. 79): a memória da identificação e/ou da confrontação, existente entre os grupos em luta e que viveram a radicalização da ditadura franquista, até os anos sessenta tardios; a memória da reconciliação, como superação do trauma coletivo, desde a morte de Franco até os anos setenta e oitenta, e até mesmo os anos noventa, sobre influência dos 14 anos de governo do PSOE; a memória da restituição ou da reparação, quando o Partido Popular ganha às eleições, representando a direita liberal. Tal agremiação não viveu a Guerra Civil, e retomava a discussão sobre a “inevitabilidade” daquele conflito.

Para Aróstegui (2006), cada uma destas etapas gerou um tipo de memória histórica que agiria, posteriormente, no que chama de memória generacional. É no interstício de cada geração o local onde age a memória construída politicamente, mesmo sendo esta última apropriada de maneiras distintas por cada nova geração.

Estes aspectos distintivos entre as memórias acompanham os movimentos da própria História espanhola. Bem definidos, foram estabelecidos pelos próprios grupos que detinham o

117 poder em cada período. A questão que parece posta – e que se relaciona à pesquisa - é que a memória histórica é histórica ela própria e, não sendo inalterável, adquire novos matizes que acompanham novas temporalidades. Desta forma, a memória histórica refletida em Porto Alegre faz surgir o Centro Espanhol, porque ela é reconciliatória; pela última vez, talvez, acirra os ânimos entre os freqüentadores históricos das duas sedes sociais, ressurgindo a memória de identificação; ainda sem ser assimilada, aguarda o fim das recordações entre os grupos mais velhos para existir em paz.

Por fim, é exata a reflexão de Aróstegui:

A memória de que se fala é sempre ‘alguma memória’, e de maneira alguma ‘a memória’. De modo que a recuperação da memória se converte em uma problemática recuperação de ‘que memória?’ (ARÓSTEGUI, 2006, p. 70).

Este é o caso do Centro Espanhol.

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