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Nesta pesquisa foi possível analisar a memória sob dois aspectos: através das narrativas que os depoentes fizeram de suas vidas, individuais e coletivas, e a memória que com o passar do tempo impregnou de sentidos as duas sedes sociais onde conviveram os espanhóis, ficando aqui clara a referência aos lugares de memória.

Neste momento, tecem-se considerações sobre a perspectiva da política da memória posta em prática na Espanha e empregada pela comunidade espanhola na cidade de Porto Alegre. Nesta última, o esquecimento - institucional - do passado não criou condições para a compreensão dos processos históricos e sociais vividos por aquele País e pela comunidade em Porto Alegre, com conseqüências distintas em cada caso, sendo, talvez, o objetivo político exigido pelo momento.

O que se pretende daqui em diante é compreender os processos pelos quais a memória é conduzida até que componha a identidade individual e do grupo. Pretende-se analisar, seguindo as sugestões de Lavabre (2006), quais são as condições sociais da produção das recordações, e como, pelas narrativas, a memória se torna História. Além disso, tenta-se perceber as relações existentes entre o processo histórico pós-ditadura franquista, que resulta na eleição de um partido de esquerda reformista, com uma política de esquecimento e de conciliação, com o processo vivido pelos depoentes na cidade de Porto Alegre.

Para isso, é imprescindível, no âmbito do fenômeno social, a percepção de Halbwachs de que a memória coletiva influencia e determina as memórias individuais, uma vez que estas se constituem a partir de estruturas sociais mais amplas (FÉLIX, 2004). Toda experiência individual, deste modo, só é possível a partir do que chama de quadros sociais da memória, ou melhor, da antecedência destes quadros sociais.

Para Santos (1998), em Halbwachs a construção das memórias se dá através da participação dos indivíduos em grupos sociais determinados, delimitados espacial e temporalmente, e que as memórias participam de um contexto social onde se está contido e que é pretérito. Além disso, “a memória é adquirida na medida em que o indivíduo toma

112 [havendo] um processo de apropriação de representações coletivas por parte do indivíduo em interação com outros indivíduos” (SANTOS, 1998, p. 5-6).

Pollack salienta que Halbwachs não interpreta a memória coletiva de forma impositiva, recebida através da dominação ou da violência simbólica, mas sim a reconhece como uma forma de coesão social, “pela adesão afetiva ao grupo, que ele chama de ‘comunidade afetiva’” (1989, p. 3).

Há aspectos no pensamento de Halbwachs que levam a pensar sua teoria de maneira rígida, como se não houvesse um escape aos grupos e aos indivíduos de se agruparem em comunidades que não se ligam com o seu passado, desestabilizando um sistema homogêneo. Halbwachs pensava a memória nacional como a forma mais acabada de memória coletiva, ou seja, possuía em si a visão ideal - por isso, aglutinadora do passado.

Entretanto, pensa-se de maneira menos rígida a formação e a manutenção destes quadros sociais de memória, por estarem sujeitos às disputas próprias da sociedade e pela sobrevivência e reprodução das memórias subterrâneas, termo cunhado por Pollack.

O caráter maleável e utilitário da memória e dos usos da memória, características da história monumental e da história tradicionalista64, relaciona-se diretamente com o surgimento do Centro Espanhol, obedecendo a diretrizes externas de uma política nacional (espanhola) de esquecimento para a reconciliação. A fixação de duas memórias no prédio que por décadas fora franquista demonstra que os lugares de memória detêm em sua arquitetura e monumentalidade construções sociais que, no caso, eram contrárias ao grupo republicano.

Para Lavabre, é essencial que se identifique o local da produção das memórias coletivas como forma de se fugir da instrumentalização - quase sempre política - do passado. Para a referida autora, “são as recordações, as representações individuais do passado, compartilhadas ou não, o que justifica que se use a noção de memória” (LAVABRE, 2006, p. 37).

Com efeito, os usos políticos do passado, em sua tentativa de redução da memória coletiva, fazem com que realidades heterogêneas sejam pensadas conjuntamente. Este conjunto se refere exatamente à memória histórica e a “memória coletiva da memória histórica está fortemente condicionada por ela” (LAVABRE, 2006, p. 44).

Segue a autora:

64 Relacionadas à memória, H história monumental reforça a coesão e a continuidade através dos tempos, ao

ignorar a realidade individual do passado. Já a História tradicionalista reconhece sempre a dívida para com o passado, para com as origens. Esta última, segundo Lavabre, é o que seria hoje chamada de “memória”, principalmente aquela relacionada com museus, com monumentos etc. (LAVABRE, 2006, p. 35).

113 Da mesma maneira que os usos políticos do passado não podem dar conta senão metaforicamente das realidades sociais que tenta caracterizar com a noção de memória coletiva, as recordações e experiências vividas, para dar conotações fortes a essa noção, tampouco esgotam a definição e os conteúdos dela. (...) História, memória histórica, memória coletiva, memória comum: com estas definições aclaradas se pode definir, por contraste, a noção de memória coletiva que não é nem memória histórica nem memória comum. A memória coletiva não é reduzível a utilização política do passado nem as recordações de uma experiência compartilhada (LAVABRE, 2006, p. 46).

Neste sentido, sob a perspectiva da História da Guerra Civil Espanhola e da ditadura franquista como feitos traumáticos coletivos, Aróstegui afirma não existir uma única memória histórica coletiva. É, pois, por existirem “memórias históricas” que igualmente existem “memórias coletivas”. Para este autor, não sendo estáticas, inalteráveis,

(...) as manifestações públicas das memórias são heterogêneas, não-coincidentes, fragmentadas; cada passado concreto tem diversas memórias coletivas e sociais. A memória, sua construção por um determinado coletivo, seu sentido e conteúdo, sua preservação ou marginalização são dimensões comuns em toda confrontação ideológica e política (ARÓSTEGUI, 2006, p. 59).

O referido autor salienta que a continuidade das memórias coletivas acaba ocorrendo através das recordações e das imagens do passado, acarretadas pelas construções históricas pretéritas, entre os grupos que se constituem entre a nação e o indivíduo. Neste conjunto reside o trauma coletivo, que contém aspectos variados de violência sentidos por qualquer tipo de coletividade. Esta vivência gera uma “memória compartilhada” inassimilável a outros tipos de memória, que será recordada, revivida e terá reproduzidos os seus ecos dentro do grupo que sofreu determinado acontecimento (ARÓSTEGUI, 2006, p. 65).

Voltando a Halbwachs, o lugar ocupado por cada indivíduo no grupo e na sociedade faz com que os seus pontos de vista adquiram, processem e reproduzam elementos da memória coletiva. Se esta última seleciona e homogeneíza as representações do passado, também o fazem os grupos e indivíduos na sociedade, criando, desta maneira, inúmeras memórias coletivas, signatárias, discordantes ou marginalizadas, e por isso formadoras de grupos sociais com identidade própria.

Esta maleabilidade da memória e, por conseguinte, das identidades, fica evidente na reflexão de Lavabre que aprofunda os usos políticos do passado. Tomando o pensamento de Halbwachs, aquele autor afirma que “não é sobre a história aprendida senão sobre a história vivida que se funda a memória” (LAVABRE, 2006, p. 50); entretanto, se a memória coletiva

114 e a sua fixação pela repetição não se manifesta mais nos indivíduos, ela perece ou pela morte daquele ou pela morte do grupo.

Assim, as idéias de Halbwachs sobre a antecedência de quadros sociais da memória e da existência de lugares físicos da memória coletiva permitem compreender que “há aspectos inerentes às memórias ou identidades coletivas que estão fora do alcance tanto da capacidade reflexiva do ator social como das lógicas inerentes às construções simbólicas a que temos acesso” (SANTOS, 1998, p. 3). E, voltando a Lavabre, é, pois, a recordação individual quem autoriza a utilização da memória como ponto de partida para a investigação do passado, acompanhado da análise dos processos pelos quais se conformaram as memórias históricas, os grupos antagonistas e, assim, o local da produção das recordações.

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