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Formação da Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos

2.3 Convívio e celeumas na comunidade espanhola

2.3.1 Formação da Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos

Sabe-se que grupos étnicos em seu país de destino aglutinam-se em associações, sociedades, com vistas a preservar a identidade que lhes aproxima e a diminuir a distância que os separa de sua Pátria. Assim, em 1893 é fundada em Porto Alegre a Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos55, com o intuito de prestar auxílio e de ser ponto de referência aos espanhóis no Estado. Em seu Estatuto, tem como princípios norteadores o mutualismo, ser uma sociedade apolítica e não ter credo religioso determinado, estendendo sua ajuda para

54 As informações sobre esta instituição foram extraídas de: VARGAS, Iolanda Guimarães. História da

Sociedade Espanhola de Socorros Mútuos de Porto Alegre. 1979. 518 p. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 1979. Possui grande valor documental este trabalho por reproduzir inúmeros documentos e atas, podendo ser utilizado como fonte primária, uma vez que muitos destes foram extraviados ou postos no lixo.

55 Dos 48 sócio-fundadores, têm-se, por regiões da Espanha: 17 galegos ; 13 andaluzes; 5 aragoneses; 5 catalães;

96 casos de enfermidade, farmácia, seguros de vida e invalidez e de ter atuação cultural e recreativa para aproximar os seus sócios56.

A redação estatutária de 1909 dota a Sociedade de personalidade jurídica após diversas revisões, levando em conta que a comunidade espanhola deveria integrar-se ao país receptor, não restringindo a participação de indivíduos de outras nacionalidades.

Inicialmente, as reuniões da Sociedade davam-se na casa do Presidente ou de membros da Diretoria. Quando necessitavam de espaços mais amplos, para festas ou para assembléias, recorriam aos salões da Sociedade de Beneficência, ao Palacete Rocco, à Sociedade Italiana Vittorio Emanuele II ou a outros locais da cidade (VARGAS, 1979, p. 72).

Em 1911 é efetuada a compra do terreno da futura sede social da comunidade espanhola, na Rua Andrade Neves n. 23, no centro da cidade, e também de um terreno contíguo. Por cerca de 15 contos de réis são adquiridos os terrenos via empréstimo bancário que seriam pagos por ações adquiridas pelos sócios e pelo aluguel de salas das casas compradas. (VARGAS, 1979, p. 75)

Neste período, o valor da mensalidade subiu devido aos “efeitos da Guerra Mundial”, passando de 1.000 para 3.000 réis. Segundo as atas contidas na dissertação de Vargas, em 1924, as dívidas adquiridas com a compra das casas foram quitadas. Já em ata da Assembléia Geral Ordinária de 25 de janeiro de 1925, discute-se um novo aumento da mensalidade e conclui-se que os gastos com farmácia não cessam de crescer, “sacrificando um dinheiro que deveria ser sagrado” para a reforma e para a construção da sede social (VARGAS, 1979, p. 79-80).

Por esta ata sabe-se que eram 170 os sócios da Sociedade, e que a Diretoria tinha consciência de que o aumento da mensalidade incidia fortemente naqueles sócios com menores recursos, e que eram a maioria. De fato, em ata de 1927, constata-se que 37 sócios se retiraram por ter “acabado o serviço de farmácia da Sociedade”, e criara-se um “livro negro” com os nomes destes dissidentes para que não viessem a associar-se novamente (VARGAS, 1979, p. 88).

Ao analisarem-se as atas de saída de remédios da farmácia verifica-se que, até a década de 1920, os itens com mais saída eram vermífugos, fortificantes, vacinas e xaropes,

56 Ainda sobre a imigração espanhola para o Rio Grande do Sul, parcas informações dão conta da formação de

Sociedades Espanholas de auxílio mútuo fundadas em Bagé, no ano de 1868, contando com 65 sócio- fundadores, muitos destes portugueses e espanhóis da região da fronteira. Situação semelhante verifica-se em Uruguaiana, com a fundação da Sociedade em 1876 por 51 sócios e em Livramento, onde 21 sócios fundaram em 1879 a sua Sociedade. Em Pelotas e Rio Grande, as sedes não sobreviveram aos tempos e os seus documentos foram extraviados ou destruídos.

97 distúrbios de saúde geralmente causados pela falta de higiene e pelo saneamento básico, provavelmente tendo como origem a má alimentação e a moradia precária.

Deduz-se que, para se criar uma sede social, serviços básicos de saúde eram cortados provavelmente de espanhóis mais pobres, uma vez que não contribuíam como os mais abastados, e ainda oneravam a Sociedade. De fato, uma das condições para se associar era passar por uma rígida avaliação médica (VARGAS, 1979, p.197).

Ao pesquisar sobre a imigração espanhola no início do século XX para a cidade paulista de Bauru, D’Ávila (2004) observa que somente quando adquire caráter urbano é que esta imigração intenta agrupar-se em um centro. Fundada em 1910 por fazendeiros, comerciantes e industriais, a elite espanhola local, a Sociedad Unión Hespañola, possuirá a sua sede social em 1915.

O que interessa aqui é o caráter dado a estas associações mutualistas criadas em toda a América Latina – ao orientar os imigrantes recém-chegados, ao celebrar festividades dos locais de origem, ao colaborar em momentos difíceis, ao auxiliar higiênica, médica e legalmente - e também em Porto Alegre.

A divisão existente no seio destas sociedades encontra-se no fato de que uma parte dos associados se interessa em atividades patriótico-culturais, enquanto outros se preocupam com as condições de vida de seus conterrâneos, pondo ênfase em atividades assistenciais. Citando Fernandéz, que investigou as colônias espanholas nas cidades de Santos, Montevidéu, Buenos Aires e Porto Rico, D’Ávila (2004, p.155-156) afirma que sempre um destes elementos será atendido em prejuízo do outro.

Supõe-se que tal situação esteja relacionada com a visibilidade social que se queira dar a estas Sociedades. As elites imigrantes preocupam-se em ter o reconhecimento social das elites nativas. Assim, o acesso à saúde e a proteção, requisitada por imigrantes invisíveis, são tidos como obras de caridade dentro da Sociedade. No caso de Porto Alegre, quiçá menos importantes eram os serviços de farmácia do que a construção da sede social, uma vez que, em teoria, não sendo desprezíveis quantitativamente, eram os pobres os mais necessitados desse tipo de proteção mutualista e por isso se “retiravam” de uma Sociedade que não lhes auxiliava.

Ao citar Devoto, D’Ávila (2004, p. 158) destaca que essas associações mutualistas possuíam em seu seio “grupos consolidados de controle destas instituições que desmentem a possibilidade de considerá-las como âmbitos de práticas democráticas”. Não se quer aqui caracterizar esta comunidade imigrante como concorrente entre si, inserida em um ambiente

98 de disputa, mesmo porque os estudos demonstram que o contrário ocorria, sendo os imigrantes recebidos pelos anteriormente emigrados. O que se pretende ressaltar é que, embora a comunidade tenha preocupação com os seus patrícios recém chegados, esta se configura como uma preocupação transversal, sendo mais importante, neste momento, a constituição de uma sede que marque a presença social dos espanhóis na cidade, ainda que isso não seja uma reivindicação da maioria dos associados.

É somente a partir de 1932, cinco anos após a construção de sua sede social, que voltará o atendimento médico gratuito57, estendendo-se até o ano de 1950, com sala própria e com aparelhos doados por um ilustre médico e sócio benemérito58 da Sociedade.

Em 02 de março de 1929 foi inaugurada a sede social da Sociedade Espanhola, pensada e executada pelo arquiteto espanhol Fernando Corona, ilustre porto-alegrense, colunista do jornal Correio do Povo, e ardoroso defensor do republicanismo que se constituía na Espanha.

Entretanto, rapidamente, a comunidade espanhola se desagregaria. Desde a proclamação da Segunda República espanhola, elementos republicanos e monarquistas (e logo franquistas) iniciaram discussões que dissolveriam o caráter apolítico com que fora concebida a Sociedade.

Deve-se ressaltar que as fissuras na comunidade são anteriores à própria Guerra Civil, e o novo rumo político-ideológico que tomava a Espanha não agradava aos setores tradicionais que aqui se encontravam. Ainda assim, o sentimento de respeito mútuo entre as partes e o reconhecimento dos posicionamentos ideológicos de ambos os lados ainda não influenciavam a direção da Sociedade Espanhola e do Consulado Espanhol.

Antecipando-se aos acontecimentos que precedem à Guerra Civil e tentando evitar atritos entre os grupos opositores, a Junta Diretiva da Sociedade proíbe manifestações políticas em sua sede, fato que estimula os republicanos a formarem o Centro Republicano, com objetivo de difundir as realizações do novo sistema político na Espanha através de

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A diretoria da Sociedade reconhece que os problemas financeiros, oriundos da pouca participação dos espanhóis no período que vai de 1925 até 1935, devem-se principalmente ao fim do atendimento de saúde prestado pela Sociedade. Contava esta com inúmeros médicos associados e são estes quem atenderão em seus consultórios particulares, gratuitamente, com remédios pagos pela sociedade, os espanhóis que necessitassem de auxilio médico. Até que montou-se a Policlínica da Sociedade Espanhola.

58 A construção do prédio custaria cerca de 120 contos de réis, uma quantia elevada para a sociedade, arrecadada

através de debêntures. Mais tarde, como a Sociedade não podia pagar os juros das debêntures e nem mesmo resgatá-las, cada sócio foi doando seu valor, recebendo em troca o título de sócio benemérito.

99 panfletos, revistas e jornais. Este Centro Republicano funcionou nas dependências da sede social e teve apoio de ilustres membros da comunidade espanhola, inclusive de pessoas ligadas ao Consulado, e publicavam um informativo, o España Republicana.

A postura republicana fica caracterizada em um acontecimento no início de 1936: José Barreras Escalona, Presidente da SESM nesta época, amplamente respeitado na comunidade espanhola, é convidado pelo governo espanhol para assumir o Consulado da Capital. No entanto, este Consulado não mais reconhecia o governo eleito democraticamente na Espanha e representava os rebeldes que, pela força das armas, queriam derrubar um governo legalmente eleito59. Partindo dos membros da SESM, é pedida a sua demissão do cargo que ocupava, o qual é aceito pelo Sr. Barreras, em 04 de novembro de 1936.

Desta maneira, ao mesmo tempo em que os republicanos ocupavam uma sala da sede para seu Centro Republicano, imprimiam um informativo, faziam palestras em defesa do novo sistema de governo espanhol e festas para arrecadar dinheiro que seria enviado à Espanha republicana, mudando-se assim o caráter apolítico da sociedade, contraditoriamente, faziam com que renunciasse o seu Presidente, porque este último não poderia fazer parte de um Consulado que apoiava o golpe militar de Franco.

Sobre estes fatos, cria-se igualmente dentro da Sociedade o Centro Nacionalista, notadamente formado por monarquistas e por franquistas, que evoluiria para o Grupo de Amigos 12 de Outubro e, por fim, para a Casa de Espanha, esvaziando a SESM e dividindo por mais de sessenta anos a comunidade espanhola em Porto Alegre.

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