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2.3 Convívio e celeumas na comunidade espanhola

2.3.2 Novo período: a década de 50

A maior parte dos depoentes da pesquisa chega a Porto Alegre na década de 1950, período em que já se encontrava dividida a comunidade espanhola. Fundada em 1954, a Casa de Espanha originou-se da reunião de descontentes com os rumos políticos que a SESM tomava. Majoritariamente, os seus idealizadores e fundadores eram franquistas.

É também nesta década que volta a imigração espanhola a crescer no Brasil e também em Porto Alegre. Assim, cabe averiguar as sociabilidades que se encontram e que

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Após o golpe de Estado realizado por Franco, elegeu-se a Junta de Defesa Nacional, que assumiria todos os poderes de Estado nas zonas que estivessem sob o seu domínio. Como conseqüência, diversas embaixadas espanholas ao redor do planeta igualmente se dividiriam bem como as representações consulares de algumas cidades.

100 partiam da SESM, já um pouco desfigurada pela ação do tempo e que causaria incômodo ou satisfação, ou mesmo nada causaria, a divisão em que se encontrava.

Utiliza-se a narrativa direta dos depoentes para se demonstrar a delimitação política e a celeuma existente:

Remédios: A Sociedade Espanhola era republicana, foi criada na República Espanhola. A outra era fascista, foi montada com ajuda do Consulado e do Governo espanhol, receberam dinheiro. Os daqui também fizeram um esforço e construíram aquela casa [Casa de Espanha]. Durante muitos anos nós nunca pusemos o pé, éramos muito orgulhosos. (...) Sempre foi aberta [a Sociedade Espanhola] mas nunca foi partidária. Até porque nem nós, que tínhamos aquele grupinho da CNT, fizemos política lá dentro. A nossa convivência foi sempre social. E o nosso grupo da CNT ficou restrito aquilo.

Garces: Não era a primeira vez que um cônsul queria fazer amizade com a gente da Sociedade Espanhola. Vou te contar um caso de um que quis entrar de sócio: fez a solicitação, como profissão pôs Cônsul de Espanha em Porto Alegre. E nós dissemos: “não, você não é Cônsul de Espanha, você é Cônsul de Franco”. Assim que com esta condição ele não ingressa na Sociedade Espanhola.

Norma: A gente não se misturava. O que era do tempo de Franco, os anarquistas e os republicanos não conviviam. (...) Eu me dou com todo mundo. Não tenho nada contra ninguém. Mas eles não. Era notória a diferença.

Remédios: Os fascistas foram os primeiros a sair, porque aquela casa, a Sociedade, era republicana. Então porque eles não queriam que lá entrasse o Cônsul e essas coisas, se ofenderam, claro, foi o melhor que podiam fazer. Não sei se foi o melhor, porque aquilo foi o começo de todo o desandar. Se eles tivessem respeitado aquela Casa, foi criada no tempo da República, tinha a bandeira republicana. Então tinha que respeitar aquilo. Mas eles queriam impor a Espanha que tinha. Aí começou a briga. (...) E foi dura a batalha, foi dura e durou muito tempo.

Maria Lázaro: Meu pai não era muito sociável. Ele, logo que chegou, foi da Sociedade Espanhola, mas tinha um grupo que ele considerava que eram anarquistas e comunistas. Ele era socialista. O pessoal muitas vezes confunde, comunistas e socialistas, que são a mesma coisa. Não é! (...) Eu sei que nós íamos algumas vezes nas reuniões acompanhar ele. (...) Eu fui à Sociedade Espanhola. Um monte de pessoas mais jovens, digamos, que ficaram alardeando e falando da Guerra Civil, como se tivessem participado, não sabiam coisa nenhuma e com umas idéias completamente ultrapassadas, e ele resolveu ficar na dele.

Garces e Remédios estiveram desde o início envolvidos com a Sociedade Espanhola e são, dentre os entrevistados, aqueles que possuem uma característica política muito clara, isto é, o reconhecimento de que as suas ações do presente vêm de seu passado. Assim, delimitar o seu espaço de ação no âmbito da antiga sede e identificar quem eram os ‘franquistas’ não significava mais do que estiveram acostumados desde os tempos da Guerra Civil na Espanha e no período da estadia francesa.

101 Já Maria Lázaro, como seu pai, identifica tal militância com um sectarismo que ficaria patente no seu envolvimento posterior com a organização da Sociedade Espanhola e da Casa de Espanha, e na maneira como se refere “àquela gentinha” identificada no grupo francês.

Por seu lado, Maria Purificación, em Porto Alegre desde 1976, não possui boa impressão da primeira vez em que teve contato com os integrantes da Sociedade Espanhola:

Quando fui à primeira vez na Sociedade, fui ao Recanto Espanhol, que se queimou. E me acharam que era fascista. Quase arranco os olhos ao homem que me chamou de fascista. “Ah, você é fascista?!”, “olha, meu pai ficou na cadeia sete anos, meu marido ano e meio. Passei coisas horríveis, vivi a Guerra, a Pós-Guerra. Como pode me chamar de fascista?! Sou pacifista, mas eu me ponho em você!”. E o outro se apavorou, “que mulher, é fascista e louca”. (...) Olha uma coisa, não sou esquerdista, mas eram mais radicais os esquerdistas que os fascistas. Mais radicais.

Sem ter um caráter tão marcadamente político quanto os referidos anteriormente, mas filiando-se, seus pais e por conseqüência eles próprios, ao grupo antifranquista, os demais depoentes republicanos atentam mais para os aspectos de recreação da Sociedade Espanhola, para os bailes, para os seus passeios e para os casamentos que daí partiam.

Os relatos de Remédios e Garces contam sobre os passeios realizados pelos espanhóis. Era, também, uma forma de conhecer a cidade, de desfrutá-la e de se manterem unidos:

Remédios: Começamos a fazer as excursões, que ninguém fazia naquela época. Começamos a fazer através da Sociedade Espanhola. Porque nós, como grupo, não éramos bastante. E fomos muito bem acolhidos, trabalhamos muito lá [na SESM]. (...) No começo era a oportunidade de nos reunirmos. Depois tínhamos as assembléias da Sociedade Espanhola. Aí começamos as excursões para Belém Novo. Começamos indo para as praias mais próximas. Alugamos um ônibus e às vezes dois ônibus e saíamos da Praça XV. Na medida em que as pessoas foram indo às praias de Ipanema, nós fomos indo pra mais longe, Belém Novo, que ninguém ia pra lá. (...) Então em geral o Garces e eu que tínhamos que alugar o ônibus, os organizadores. E aí fazíamos os preços. Depois com o preço, entrava o salário do motorista, que comia conosco. Todo mundo levava comida. Era uma grande festa campestre.

Garces: Tínhamos todos os domingos, sábados e domingos, nos juntávamos todos a comer aí, toda a turma de espanhóis [no Recanto do Guarujá]. E se não, íamos de excursão, saíamos de manhã cedo e íamos ao Lami, às Ilhas algumas vezes fomos..., e passávamos o dia fora, todo mundo junto. E chegamos a lotar três ônibus! Éramos muito unidos. [E também] Quando anoitecia, nos juntávamos num bar que se chamava El Torejo, na Protásio Alves, que depois vai ser meu [porque os donos deixaram de ir nas excursões para cuidar do bar] e aí nos juntávamos, nos reuníamos quase quinze ou vinte espanhóis, todos os dias!

102 Maria Lázaro recorda das festas da Sociedade Espanhola. Em um primeiro momento, convive e participa das festas, situação em que conhece o seu marido. Posteriormente, ao participar dos encontros na sede campestre da SESM, lembra da falta de organização e do desrespeito entre os sócios. Este relato relaciona-se com seu papel de organizadora dos eventos futuros na Casa de Espanha; como Presidente desta, foi aquela que organizou e que fez dar lucros as atividades realizadas pela comunidade:

Aos domingos à tarde eu ia me reunir com as gurias espanholas que eu conhecia, elas ficavam reunidas jogando patis. E de noite nós íamos, no domingo, nas reuniões da sede da Sociedade Espanhola, que começavam às nove da noite e terminavam a uma da manhã. (...) De vez em quando nestas festas nós íamos [ela e o marido], só que eu fui criada na França, minha forma de pensar é mais francesa, eu sou mais racional, organizada. E as festas da Sociedade Espanhola eram um caos. Quando a gente chegava na sede campestre que tinha lá no Guarujá, a gente chegava e tinha um que tinha vindo [antes] e já tinha pendurado um casaquinho, só faltava por uma cuequinha, uma calcinha, tudo reservado. A gente se sentia assim, como que... Porque nós não tínhamos muito relacionamento. Conhecíamos muitos de falar, mas não freqüentávamos. Estávamos mais voltados para o nosso trabalho, para a nossa vida, e sempre ficamos meio afastados em geral. Não nos enturmamos tanto.

Mari Aladrén, sobre este período, recorda da filiação de seu pai às duas Sociedades. Como republicano, o fato de ser um dos fundadores da Casa de Espanha demonstra a permeabilidade do caráter desta Sociedade. Segundo ela, “eram os anarquistas que não botavam o pé na Casa de Espanha”:

O pai ficou sócio das duas. Mas o pai não era rancoroso. Convidaram ele pra ser fundador da Casa de Espanha. Ele se dava muito bem com o Cônsul, o Vice-Cônsul, e todos mais. [Ele] queria se dar bem com todos, ele disse assim: “já que eu tive que sair da minha pátria, da minha terra, não é numa terra estranha que eu vou começar de novo a fazer as divisões. Então vamos partir do branco, a nossa vida a partir daqui é uma folha em branco”.

Única entrevista realizada em dupla, o diálogo entre Norma e Maria Jesus, uma republicana vinda da França e a segunda de “família franquista”, demonstra que a comunidade estava dividida pela ação de dois pequenos grupos, um em cada Sociedade, e isolados daqueles que não viam sentido nesta separação:

Maria Jesus: Eu sei que a gente freqüentava a Casa de Espanha naquela época, ele era franquista [pai]. Como todos os...

Norma: Mas ele também ia na Sociedade Espanhola. Eu conheci ele lá.

Maria Jesus: Porque no fundo, no fundo, eu tenho a impressão que, apesar dele ser franquista, dele ser do lado de Franco, eu acho que essa parte dos espanhóis, ele não se importava, ele não era um franquista radical.

103 Norma: É, é. É diferente dos nossos, a gente não freqüentava, nossos pais eu digo, não freqüentavam a Casa de Espanha, mas se davam com as pessoas, só não freqüentavam o salão, o clube, mas com as pessoas se davam.

Maria Jesus: Sim, é. Nunca escutei falar nada, falar mal, nunca, nunca. Isso não. Norma: Existia aquela rixa, sempre existiu. Se, por exemplo, juntasse algum do partido de Franco e outros que não eram sempre havia discussão, era normal. O espanhol por si já tem o hábito de briga, de grito.

A Sociedade Espanhola era aberta à participação de nacionais. Em determinado momento possuía mais sócios brasileiros do que naturais da Espanha; além disso, sempre abriu as suas portas para reuniões de sindicatos e de agremiações políticas. Até que, em 1958, um grupo de comunistas ligados ao sindicato de trabalhadores do porto toma conta da Diretoria da Sociedade, expulsando e proibindo a participação de espanhóis na nova Diretoria, entre eles, Garces. O episódio ganhou repercussão devido às grandes brigas causadas e ao processo judicial que correra até 1960, quando houve a reintegração de posse à antiga mesa diretora.

A clássica disputa dentro da esquerda, que fora dramática na Guerra Civil, como nos quatro dias de Barcelona e depois na contra-revolução stalinista, repetia-se agora em Porto Alegre no seio da sociedade republicana. Dessa forma, confirmava o acerto da decisão dos sócios da Casa de Espanha na separação das Sociedades.

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