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3. A política de saúde mental no Brasil

3.5 Contexto Político

Thornicroft e Tansella (2006) nos fornecem uma estratégia para relacionarmos legislação, governo e sociedade (“opinião pública”) na evolução das políticas de saúde mental (Figura 1): numa contínua e mutua influência, a política de saúde mental faz-se muito além das tomadas técnicas de decisão para esta ou aquela estratégia. Se isso já é verdade para todo o sistema de saúde, o caráter subjetivo da saúde mental deu margem a que os debates sociais, sobre os critérios de normalidade e doença, os tratamentos preconizados, e o mandato social dos profissionais da área, fossem acirrados e antagonizados. Nesse jogo de influências, chamamos atenção para a ação de grupos organizados, ligados a entidades representativas de usuários e familiares ou de categorias profissionais (sindicatos, associações, conselhos profissionais) e grupos da comunidade acadêmica. Estes grupos tomam posição e lutam por influenciar opinião pública e políticos para a condução da política de saúde mental de acordo com os princípios que defendem.

Podemos separar no Brasil três grandes grupos de influência: os contrários à reforma psiquiátrica; os defensores da reforma psiquiátrica, que, por sua vez, se dividem em favoráveis à “psiquiatria comunitária”, e “defensores da reforma italiana” ou “antimanicomiais” ou ainda “basaglianos”.

Figura 1: Influências do governo e opinião pública nas leis e políticas de saúde mental (adaptado de Thornicroft e Tansella, 2006).

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•Situação econômica; •Arranjos políticos;

•Competição com outros setores do governo; •Proximidade das eleições.

•Ação de grupos de interesse e organização de profissionais; •Experiências pessoais; •Mídia •Visibilidade (gravidade, prevalência) dos problemas; •Atitudes e valores sobre liberdade civil, segurança publica, etc. OPINIÃO PUBLICA POLÍTICOS Leis e políticas de saúde mental

As críticas à necessidade de uma reforma psiquiátrica (ou seja, a defesa do modelo ainda centrado no hospital psiquiátrico) enfraquecem a cada dia, por sua pequena base de sustentação, seja entre os políticos/governo, seja na população em geral, entidades profissionais ou associações de usuários. Outro confronto de idéias, este ainda longe de se extinguir, se dá entre os partidários da reforma, por suas diferentes visões de como esta deveria caminhar. No Brasil, diversos autores apresentam esta dicotomia, posicionando-se, na passagem da “reforma da assistência psiquiátrica” para a “reforma do saber psiquiátrico”, a favor (por exemplo, Amarante, 2008, Menezes e Yassui, 2009) ou contra (Gentil, 2001, França, 2006).

Os princípios da política de saúde mental brasileiras costumam ser sintetizados através das resoluções da declaração de Caracas (Uzcátegui e Levav, 1990):

“1. Que a reestruturação da assistência psiquiátrica ligada ao Atendimento Primário da Saúde, no quadro dos Sistemas Locais de Saúde, permite a

promoção de modelos alternativos, centrados na comunidade e dentro de suas redes sociais;

2. Que a reestruturação da assistência psiquiátrica na região implica em revisão crítica do papel hegemônico e centralizador do hospital psiquiátrico na prestação de serviços;

3. Que os recursos, cuidados e tratamentos dados devem;

a) salvaguardar, invariavelmente, a dignidade pessoal e os direitos humanos e civis;

b) estar baseados em critérios racionais e tecnicamente adequados; c) propiciar a permanência do enfermo em seu meio comunitário; 4. Que as legislações dos países devem ajustar-se de modo que:

a) assegurem o respeito aos direitos humanos e civis dos doentes mentais;

b) promovam a organização de serviços comunitários de saúde mental que garantam seu cumprimento;

5. Que a capacitação dos recursos humanos em Saúde Mental e Psiquiatria deve fazer-se apontando para um modelo, cujo eixo passa pelo serviço de saúde comunitária e propicia a internação psiquiátrica nos hospitais gerais, de acordo com os princípios que regem e fundamentam essa reestruturação (...)”.

Estes princípios hoje, no entanto, apresentam contradições frente às posições “basaglianas”. Por exemplo, Borges e Baptista (2008), a respeito do encontro “Saúde mental e cidadania no contexto dos sistemas locais de saúde”, realizado em 1991, comentam:

Esse encontro foi marcado pela articulação das propostas Basaglianas com os princípios da Declaração de Caracas (...) Essa articulação abria possibilidade de dubiedade da ação que passaria a ser desenvolvida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental. Os pressupostos que embasam cada vertente apresentam incongruências que, se num primeiro momento passam despercebidas, brevemente ganham materialidade em torno de questões como: o conceito de

Atenção Primária em Saúde em contraposição ao de Atenção Básica e seus

efeitos sobre a responsabilização territorial com a organização de múltiplos e complexos dispositivos de assistência (...). Ademais, a Declaração de Caracas

não toca no aspecto da desconstrução do saber psiquiátrico que está no

cerne das experiências vividas em Trieste (na Itália) e em Santos (Estado de São Paulo, Brasil).(grifo nosso).

Talvez o documento que melhor represente o hibridismo da política brasileira seja o Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental (Brasil, Conselho

funcionamento da conferencia, com seus quatro temas: “financiamento”, “recursos humanos”, “controle social”, e “acessibilidade, direitos e cidadania”, discutidos em 35 grupos de trabalhos, os quais apresentaram relatórios das discussões à Plenária Final, que por sua vez aprovou “diretrizes gerais” e 591 parágrafos de “propostas para a política de saúde”. Refletindo a composição dos participantes da III Conferência, encontramos um grande número de propostas aprovadas que alinham com as idéias do “movimento antimanicomial”, como por exemplo:

Proposta 87: (...) garantia de leitos de curta duração em hospitais gerais como estratégia, visto que a rede de atenção deve trabalhar com a perspectiva de extinção da internação psiquiátrica em qualquer de suas Formas (...).

Proposta 26: Abolir o eletrochoque, por ser prática de punição, de suplício e de desrespeito aos direitos humanos.

Proposta 511: Estender ao uso abusivo de psicofármacos a mesma atitude crítica que existe em relação ao eletrochoque, e em igual intensidade.

Diretriz (Pg 68): Nesta mesma direção, a política de recursos humanos deve estimular a dissolução do “manicômio mental” implícito no saber científico convencional, que discrimina o saber popular, por meio da maior valorização da experiência de familiares e usuários, garantindo desta forma a integração e o diálogo com os saberes populares.

Proposta 25. Garantir o desenvolvimento de estratégias diversas de ofertas de serviços de saúde mental pautadas nas possibilidades dos indivíduos, das famílias e dos serviços, para prestar cuidados e não apenas na identificação de “patologias”.

Por outro lado, convivem no mesmo documento posições dentro do referencial da psiquiatria comunitária:

Proposta 23. Garantir a observação das recomendações da OMS expressas no Relatório sobre a Saúde Mental no Mundo/2001, com o objetivo de contemplá-las no estabelecimento da reorientação da assistência em saúde mental.

Proposta 84. Articular as ações de assistência, promoção, prevenção e reabilitação psicossocial (...) implementando uma rede de serviços territoriais de saúde mental, substitutivos ao hospital psiquiátrico, composta por urgência psiquiátrica, leito psiquiátrico em hospital geral (capacitado para o atendimento de urgências), Centro ou Núcleo de Atenção Psicossocial, núcleo de atenção à população usuária de álcool e outras drogas, hospital-dia, oficina terapêutica, centro de convivência, programa de geração de trabalho e renda, cooperativa e serviço residencial terapêutico, que trabalhem de forma integrada e complementar.

Proposta 85. c) tornar disponível o atendimento nas unidades básicas de saúde, tendo um protocolo de referência e contra-referência; (...)

f) estabelecer que as urgências de psiquiatria sejam atendidas em serviços de emergência geral; (...)

Proposta 105. Criar e implantar ambulatórios de neurologia, com profissionais capacitados, e oferecer exames complementares nos municípios pólo e micro- região.

Proposta 129. Priorizar as ações de cuidados primários de saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde, no que tange aos quadros clínicos e subclínicos de depressão, ansiedade e suas relações de comorbidade.

Proposta 359. Adequar a política de medicamentos à programação orçamentária e à necessidade de medicamentos baseada no perfil epidemiológico e atualização técnico-científica, e garantia de pleno acesso.

Temos aqui dois conceitos que necessitam ser delimitados. A “reforma da assistência psiquiátrica” tal como vem sendo implementada no Brasil, deve ser entendida como uma política governamental e o “movimento pela reforma psiquiátrica”, um movimento social e de organizações de profissionais envolvidas na assistência em saúde mental. O movimento pela reforma psiquiátrica por vezes é apresentado como sobreposto ao chamado “movimento da luta antimanicomial”, mas na verdade conta com outros atores que não acompanham este último, como por exemplo, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em vários momentos históricos (Jorge e França, 2006).

Apesar da CGSM contar com freqüente apoio deste movimento, a lista de reivindicações atribuíveis a este último não é consensual, nem foi oficialmente encampada pela política nacional, ao menos no que diz respeito as suas posições mais radicais, como, por exemplo, a extinção de toda e qualquer internação psiquiátrica, ou o princípio que vai contra o modelo de saúde e doença presente na medicina contemporânea. Se a atenção básica ou a política para medicamentos de alto custo, por exemplo, exigem orientações dentro do referencial tradicional da saúde (no sentido da organização das ações na promoção de saúde e prevenção primária, secundária e terciária (Leavell e Clark, 1976), no uso de protocolos, etc.), é neste registro que se opera, mas sempre buscando estratégias como a equipe

multiprofissional, ou o estímulo aos métodos alternativos à medicação. Se grupos de profissionais (Conselho Federal de Psicologia, 2009) e usuários reivindicam a proibição da eletroconvulsionoterapia (ECT), ou que na atenção básica não se deve “medicalizar” o “sofrimento mental” (expressão utilizada no lugar aos transtornos mentais mais prevalentes) (Brasil, Conselho Nacional de Saúde, 2002), a negociação prossegue fazendo acordos e compromissos (por exemplo, o ECT não é proibido, mas instituições hospitalares que o utilizam são penalizadas com pontuação menor na avaliação do Ministério).