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Contexto político-institucional da regulação

V. I NTERAÇÃO ENTRE ATORES NA REGULAÇÃO POR CONTRATO : ARCABOUÇO CONCEITUAL

4. Contexto político-institucional da regulação

Os conceitos desenvolvidos acima foram cunhados no bojo de uma literatura preocupada em fazer uma análise positiva da regulação105, buscando compreender a sua realidade, e não apenas construir os argumentos normativos dessa regulação.

No entanto, além de ferramentas que permitam a compreensão da estrutura de incentivos, informação e oportunidades de desvios, a análise da regulação deve levar em conta outros fatores, externos à relação contratual em si, porém não menos impactantes em sua dinâmica106. Para tanto, em complementação aos modelos e conceitos vistos até o momento, é oportuno destacar a relevância das instituições políticas, legais e sociais, que constituem as regras de funcionamento do sistema onde se insere o fenômeno a ser estudado

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Conforme destacado por MELO (2000: 21) em cuidadosa revisão bibliográfica sobre o tema, são consideradas análises positivas da regulação a chamada “teoria da captura” e o neo-institucionalismo. A teoria da captura, conforme mencionado anteriormente, aplica-se principalmente ao caso de regulação discricionária, preocupando-se com as formas de interferência de políticos e regulado sobre o regulador. As análises da teoria da captura foram construídas a partir do instrumental analítico da teoria neo-clássica. Focam prioritariamente na demanda e na oferta de regulação, considerando os diferentes atores envolvidos, para então buscar identificar o equilíbrio. O contexto institucional não recebe grande atenção, dada a crença de que as instituições apenas responderão de acordo com o resultado desse “mercado de regulação”. Os neo-institucionalistas propõem uma abordagem diversa, conferindo às instituições um papel mais influente e um caráter menos volúvel.

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Vale a ressalva de BROMLEY (1982: 842), que nos lembra que os contratos e o mercado são criações da sociedade, e não o inverso.

(BROMLEY, 1993: 837).107 O contexto político-institucional é que determinará o grau e o tipo de custo de transação, os riscos de incompletude, os incentivos e as assimetrias existentes (NORTH, 1999: 61), moldando o conteúdo dos conceitos vistos anteriormente.

Conforme apontado por BAUER (2004), as questões político-institucionais freqüentemente mencionadas nos estudos a respeito de políticas de água e esgoto, porém raramente aprofundadas. A maioria dos trabalhos sobre saneamento opta por uma abordagem econômica convencional, em que os aspectos político-institucionais não são incorporados ao argumento central. Assim, segundo aquele mesmo autor, é necessário empreender dois enfoques, que ele denomina como “perspectiva ampla” e “perspectiva restrita” de análise. O primeiro, fundamentado em estudos de ciência política, de ciências ambientais e de institucionalistas, é eminentemente qualitativo e interdisciplinar. O segundo, derivado dos trabalhos da economia neo-clássica, é mais quantitativo, formal e técnico (BAUER, 2004: 11- 12). É a perspectiva ampla de análise que procuro destacar nesse item.

Nesse sentido, diversos autores, a partir de trabalhos empíricos sobre políticas implementadas na área de saneamento, sugerem que fatores políticos-institucionais exercem um papel preponderante no desenho e regulação do setor. HEYMANS e PLUMMER (2002: 233-239), por exemplo, destacam a influência do ambiente político na forma de contratualização e regulação do saneamento. Os autores apontam para a limitação imposta pela instabilidade de instituições políticas na definição do arranjo contratual e para a importância de indivíduos empreendedores (denominados political champions), que freqüentemente atuam na superação de determinados obstáculos institucionais à reforma do setor, tais como ausência de amparo legal ou condições financeiras. A instabilidade política ganha destaque, também, no trabalho de SAGHIR, SHERWOOD e MACOUN (1999) a respeito da reforma em saneamento implementada em Gaza. Os autores observam que, apesar das condições da infra-estrutura clamarem por investimentos de grande monta, a fragilidade das instituições políticas foi determinante no arranjo final entre governo e prestadora, voltado para a gestão do sistema existente e não para a sua expansão imediata. CAPLAN et al (2001), ao analisarem experiências de provisão de serviços de saneamento por meio de parcerias público-privadas, observam que o contexto político não apenas influencia, como é influenciado pelos projetos, limitando, por um lado, o formato e sucesso da parceria, e por outro, criando novos interesses, expectativas e grupos no jogo político.

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O funcionamento do poder judiciário e a produção legislativa são enfatizados por alguns estudos. BROMLEY (1982: 841), por exemplo, afirma que cortes e legislativo exercem um papel preponderante, muitas vezes desconsiderado pelas abordagens econômicas ortodoxas, ao definirem a distribuição inicial de direitos, privilégios, deveres e proibições. Traços peculiares às instituições judiciais e administrativas, somado a fatores culturais, são mencionados por Shugart (apud BALKOVIC e TENENBAUM, 2003: 17) como um dos principais fatores no funcionamento da regulação em saneamento na França. No tocante à influência da base legislativa, PARLATORE (2000: 301-302) e GÓMEZ-IBÁÑEZ (2003: 183-184) sugerem que a existência de leis ambientais restritas (e, segundo PARLATORE, a capacidade do Ministério Público para implementá-las) é um vetor central nos desdobramentos do setor no segmento de tratamento de esgotos.

SANCHEZ (2000; 2001), por sua vez, destaca a capacidade de organização e convergência de interesses entre atores relacionados ao setor de saneamento. Com uma perspectiva semelhante, MARQUES (1997a) enfatiza a influência exercida pela organização e interação do “capital contratista” (fornecedores, projetistas e construtores) no desenvolvimento de políticas de saneamento.

Nota-se, assim, que a literatura construída a partir de estudos empíricos de diferentes iniciativas no setor de saneamento aponta diversos fatores que se mostraram relevantes para as políticas adotadas em cada caso: instituições políticas, judiciárias e legislativas, capacidade de organização e interação de grupos de interesse e tradição cultural. Sem dúvida, essa ampliação dos fatores que merecem ser contemplados na análise da regulação do setor traz algumas dificuldades, que devem ser reconhecidas e explicitadas.

Primeiro, não há um conceito claro sobre o que venham a ser instituições, impondo-se uma difícil escolha entre uma definição limitada, porém mais precisa, e outra ampla, cujos limites são, contudo, mais nebulosos. Alguns autores entendem que instituições são as regras do jogo incidentes sobre a interação dos agentes sociais, englobando, portanto, regras formais e informais108. Nesse sentido, NORTH (1999) define as instituições como constrangimentos à interação humana, sejam eles formais, como, por exemplo, constituições, leis ou contratos, sejam eles informais, tais como regras de conduta e convenções sociais. Outros autores, porém, condenam a amplitude dessa definição, preferindo fazer uma distinção entre normas, cognitivas e sociais, e instituições, essas últimas com um caráter mais formal (MARQUES, 1997b: 76). Nesse trabalho, adoto a definição de LEVI (1997), para quem,

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BROMLEY (1982: 839), por exemplo, propõe uma definição ampla, definindo instituições como a estrutura de regras e convenções sociais que estabelecem padrões aceitáveis de comportamento.

seguindo a linha proposta por NORTH, as instituições são conjuntos de regras que, como tais, possuam mecanismos de enforcement. Nesse sentido, explica a autora, são consideradas instituições políticas quando o Estado aplica as regras; instituições sociais quando se fazem valer por meio de mecanismos tais como aprovação ou rejeição do grupo social; e instituições econômicas quando se impõem por meio de lucros ou prejuízos (Levi, 1997: 25).

Segundo, a abordagem do contexto político-institucional não tem o condão de propor nenhuma solução a priori, nem permite que se façam previsões. Isso porque seu ponto de partida é justamente a rejeição de modelos de análises estáticos, enfatizando a necessidade de se considerar e incorporar as particularidades de cada situação a ser compreendida (MARQUES, 1997b: 75-76). No máximo, essas análises de perspectiva ampla, para utilizar os termos de BAUER (2004), possibilitam afirmações provisórias, a serem alteradas a partir da realização de estudos concretos.

A despeito dessas dificuldades, a análise da regulação não pode passar ao largo das características organizacionais e institucionais que dão suporte à interação entre os agentes interessados na regulação. Conforme salientado por KAUFMAN (1998: 61), ainda que as análises que enfatizam as instituições sociais forneçam poucas pistas sobre quais seriam os atores relevantes e suas preferências, elas constituem um complemento importante para as abordagens de economia política e escolha racional. Ao enfocar as características político-institucionais de cada caso, perde-se em previsibilidade e generalidade, mas ganha-se em poder explicativo e analítico.

Assim, para além de cálculos de eficiência econômica, a regulação por contrato pode ser considerada adequada se representar a melhor opção dentre as alternativas institucionalmente viáveis (SCLAR, 2000: 100), amarrando-se assim os argumentos estampados nesse capítulo. Afinal, o que é institucionalmente viável depende dos custos de transação e dos riscos de incompletude presentes. E o grau e tipo desses custos e riscos decorrem das estruturas políticas, econômicas e sociais de cada caso.

Pelas razões e conceitos até aqui expostos, conclui-se que a análise de uma iniciativa em regulação por contrato estaria empobrecida caso considerasse apenas o instrumento contratual. A experiência regulatória vai muito além dos termos do contrato, envolvendo também as formas de interação entre os atores envolvidos, as adaptações necessárias ao longo do tempo e o contexto em que essa iniciativa se insere. Buscarei, então, abarcar essas questões no capítulo seguinte, identificando como refletem no caso da regulação por contrato para o tratamento de esgotos em Ribeirão Preto.

Portanto, além de levar em conta o estado da arte do setor de saneamento no município, identificando suas características técnicas e as deficiências e necessidades dos serviços, a análise da iniciativa de Ribeirão Preto atentará, também, para os custos de transação incorridos, as assimetrias de informação e possibilidades de desvios, o grau de dificuldade de monitoramento e a forma pela qual foram enfrentadas eventuais contingências. Pretendo, desta forma, analisar, além das disposições contratuais, o contexto e a dinâmica existente entre os atores relevantes, em especial o departamento municipal de saneamento e a empresa prestadora dos serviços.