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VIGÊN CIA

4.3 Os Docentes e as suas Representações

4.3.1 Contextos da Escola do Campo

Aprofundando-se o entendimento sobre as Representações Sociais expressas pelos docentes por meio das cantigas de roda, foi possível articular interpretações envolvendo as falas e os contextos da Escola do Campo.

“A gente tem que trabalhar as peculiaridades da região, trabalhar com os alunos mostrando a realidade deles”. [S9]

Ao analisar a fala dos docentes pesquisados, percebe-se que as peculiaridades da região e os seus modos de vida fazem parte das estratégias de ensino presentes em seus ambientes de socialização, como a escola e a comunidade local e a própria organização do trabalho docente. Sendo assim as atividades recreativas, de lazer, de produção da leitura e escrita – realizadas nas áreas livres, debaixo das árvores, ou nas estreitas salas de aula – demonstram o comprometimento dos sujeitos com a educação desses alunos.

Foi percebido também que as RS desses docentes a respeito das cantigas de roda foram formadas a partir de suas vivências em sala de aula e na convivência com os pais dos alunos das escolas em que trabalham. Assim como a compreensão que manifestam acerca dos valores sociais e culturais, das canções populares, da Educação, de Escola do Campo e dos contextos dos quais fazem parte, que pode ser observada na fala a seguir:

“O fazer e o aprender da nossa escola é feito com dinamismo. Valorizamos o campo, mostrando para a criança que o campo é um lugar de culturas e de muitos valores religiosos e os da comunidade. Converso com os pais dos meus alunos sobre o seu trabalho e convido eles a participar com mais frequência da vida da escola. Trabalho com as cantigas de roda que a comunidade conhece e

também com as de meu conhecimento, Ciranda cirandinha, o cravo e a rosa, Fui ao Tororó, Coqueiro é tão alto, Capelinha de melão, Margarida, Terezinha de Jesus, Formiguinha lá da roça, e muitas outras que não me lembro agora”. [S1]

Essa fala proferida pelo docente retrata bem o que se coloca sobre o caráter dinâmico e interativo da concepção de escola, de homem e de sociedade, construído nas relações vividas. O docente acrescenta que trabalha mostrando aos seus alunos sobre o seu lugar, como um lugar de culturas e de valores sociais e religiosos é, portanto, no seu fazer pedagógico ficam marcados os seus valores culturais, suas crenças, suas convicções. Nesse sentido, ficam reiteradas as palavras de Fazenda (2010, p. 34, grifo da autora) “não é o agir que decorre do ser, mas é o modo de ser que decorre do agir. É a ação que delineia, circunscreve e determina a essência dos homens. É na prática e pela prática que as coisas humanas efetivamente acontecem, que a história se faz”. Com essa atitude, ela fica mais próxima e tem o respaldo da comunidade, e tanto a convivência quanto as relações estabelecidas tornam-se mais

proveitosas e saudáveis, podendo a docente desenvolver de maneira mais produtiva, os saberes e fazeres pedagógicos que perpassam o cotidiano de sua práxis.

Desse modo, a escolha das cantigas de roda Coqueiro é tão alto e Formiguinha lá da roça, apontadas e citadas acima na fala do [S1] foi movida pela intenção de se investigar os significados atribuídos às cantigas de roda pelos docentes e pais de alunos nos contextos das Escolas do Campo de Chapadinha (MA), não numa perspectiva de análise linguística, mas no entendimento da relação entre língua e cultura, sobretudo nos aspectos semânticos, que Ilari e Geraldi (1994), destacam como “investigação de limites movediços”. A seguir, constam cantigas de roda trabalhadas no contexto das escolas do campo.

Quadro 9 – Cantigas de roda em versão popular e as cantadas pelos pais dos alunos e trabalhadas no contexto das escolas das escolas do campo

Viuvinha21 Coqueiro é tão alto22

“Que coqueiro tão alto Que ninguém pode alcançar

Chegou a pobre viúva

E começou a chorar, a chorar, a chorar Eu sou a viuvinha que vem de Belém Queria casar, mas não acho com quem

Ora, case comigo que eu sou seu bem Ora, case comigo que eu sou seu bem Não é com você, não é com ninguém É com a menina que eu quero mais bem

Não é com você, não é com ninguém É com a menina que eu quero mais bem."

“Que coqueiro tão alto Que ninguém pode alcançar

Eu sou uma pobre viúva

Que começou a chorar, a chorar, a chorar Eu sou uma viuvinha que vem de Belém Quero me casar, mas não sei com quem

Case comigo e eu sou seu bem Case comigo e eu sou seu bem Não é com você, não é com ninguém

É com a... que eu quero mais bem Não é com você, não é com ninguém

É com a... que eu quero mais bem."

Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados coletados.

21 Versão popular disponível em: <http://mapadobrincar.folha.com.br/brincadeiras/roda/606-viuvinha-3>. 22 Versão cantada e brincada pelo [S1].

Podem-se observar diferenças marcantes nos dois textos das cantigas de roda acima descritas. No primeiro exemplo, o título da cantiga na versão popular é “Viuvinha”, e a mesma também é cantada e brincada nas escolas com o nome de “Coqueiro é tão alto”. Há ainda, alterações na estrutura textual e no emprego verbal, como se podem constatar nas duas versões da cantiga apresentada acima. Os versos “Chegou à pobre viúva, E começou a chorar, a chorar, a chorar”, que são cantados em “Viuvinha”, constam em “Coqueiro é tão alto”, como “Eu sou uma pobre viúva, Que começou a chorar, a chorar, a chorar”.

No segundo verso, destaca-se o lugar de origem da viuvinha, que busca um parceiro. Há sentimentos de rejeição e também de insinuação, a mudança ocorre também no tempo verbal e há supressão do “Ora”, que conclui com quem deve ser o casamento, ênfase dada pelo suposto candidato a marido, para que este seja escolhido pela personagem principal da cantiga. Nessa cantiga, utiliza-se da linguagem metafórica para evidenciar a representação do luto, do lamento pela perda, da solidão e do infortúnio. Traz à discussão o maniqueísmo, a tristeza, a infelicidade que é o contrário de alegria, da felicidade. Nesse caso, são palavras e versos inteiros suprimidos e/ou substituídos por palavras sinônimas.

Quadro 10 – Cantigas de roda em versão popular e as cantadas pelos pais dos alunos e trabalhadas pelos docentes no contexto das escolas do campo

Formiguinha da roça23 Formiguinha lá da roça24

“Formiguinha da roça Endoideceu com uma dor de cabeça

Que lhe deu.

Ai pobre! Ai, pobre formiguinha! Põe a mão na cabeça E faz assim... e faz assim”

“Formiguinha lá da roça Enlouqueceu de uma dor de cabeça

Que ela deu

Arrocha, arrocha, arrocha formiguinha Bota a mão nas cadeiras E faz assim... assim... assim...”

Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados coletados.

No segundo exemplo, o texto da cantiga “Formiguinha da roça” – e também da chamada “Formiguinha lá da roça” pelos sujeitos pesquisados – apresenta alterações verbais e

23 Versão popular disponível em: <http://letras.mus.br/bia-bedran/303142/>. 24 Versão cantada e brincada pelo [S1].

de sentidos. Observa-se, no segundo verso da primeira estrofe, respectivamente: “Endoideceu com uma dor de cabeça” e “Enlouqueceu de uma dor de cabeça”, que “ficar doido” e “ficar louco” são sinônimos. Enquanto que nos versos “Ai pobre! Ai, pobre formiguinha! Põe a mão na cabeça” e “Arrocha, arrocha, arrocha formiguinha” e ainda no “Bota a mão nas cadeiras” no qual é atribuído um novo sentido. Neste caso, a mudança versa tanto na forma, como no significado, pois aqui os termos são antônimos e suscitam nos sujeitos envolvidos na situação atitudes e movimentos diferenciados.

De modo que nos dois casos há um processo de retextualização, passagem do texto falado para o escrito, visto que, a partir dos estudos entre a oralidade e a escrita “as semelhanças são maiores que as diferenças tanto nos aspectos sociocomunicativos (as diferenças estão mais na ordem das preferências e condicionamentos)” (MARCUSCHI, 2007, p. 46). E, ainda, numa visão culturalista, a cultura oral e a cultura letrada podem ser oposicionais, “entre o pensamento concreto e abstrato, o raciocínio prático e lógico, a atividade artesanal e a tecnológica, o cultivo da tradição e a inovação constante, o ritualismo e analiticidade”. (MARCUSCHI, 2007, p. 29)

Cabe destacar que nos textos dessas cantigas, foram abordadas temáticas diferenciadas repletas de sentimentos, metáforas, das simbologias do mundo natural, dos valores culturais e religiosos e de representações sociais dos sujeitos, interlocutores desse cotidiano. Assim, ressaltam-se as situações focalizadas nas estrofes abaixo:

A primeira estrofe da cantiga “Coqueiro é tão alto” refere-se a duas situações. Inicialmente, utiliza-se da linguagem metafórica para evidenciar a representação do luto, do lamento pela perda, da solidão, do infortúnio e do sofrimento pela perda da pessoa amada. Traz à discussão do misticismo em torno da morte, a tristeza, a infelicidade que é o contrário de alegria, da felicidade.

“Que coqueiro tão alto Que ninguém pode alcançar Eu sou uma pobre viúva

Que começou a chorar, a chorar, a chorar”

A estrofe que se segue argumenta a busca um novo relacionamento, se identifica e situa-se no tempo e no espaço. Na busca um novo parceiro, a viuvinha identifica o lugar de sua origem. Observam-se sentimentos de rejeição, de ansiedade, de insinuação, de aliança, assim como de promessas. Há uma busca pela institucionalização e regularização dos sentimentos nos versos que se seguem:

“Eu sou uma viuvinha que vem de Belém Quero me casar, mas não sei com quem

Case comigo e eu sou seu bem”

Esta última estrofe fala de novas perspectivas, de novas escolhas, do desejo de novas conquistas da autoestima, do autoconceito e do autoconhecimento:

“Não é com você, não é com ninguém É com a... que eu quero mais bem Não é com você, não é com ninguém É com a... que eu quero mais bem”

Na cantiga de roda “Formiguinha lá da roça”, o texto é constituído de duas estrofes e seis versos. Nas estrofes que se seguem, percebe-se que a cantiga suscita dos sujeitos brincantes interpretarem papéis, executar movimentos coreografados, consoante aos cenários e às particularidades da brincadeira.

Neste caso, cada criança assume a identidade de uma ‘formiguinha’, ou seja, todas as crianças entram em cena e interpretam situações vivenciais similares ao cotidiano e ao seu modo de vida. Aborda a questão de doença, do espaço de trabalho que é o campo. No texto cantado, as crianças vivem um personagem humanizado, do sexo feminino e que vivem as demandas de uma pessoa adulta.

“Formiguinha lá da roça

Enlouqueceu de uma dor de cabeça Que ela deu

Arrocha, arrocha, arrocha formiguinha Bota a mão nas cadeiras

E faz assim... assim... assim...”

Nesse sentido, compreende-se que a espontaneidade, a curiosidade, a vivacidade e motivação das crianças em brincar as cantigas de roda na escola ou fora do espaço escolar, em tempos de alta modernidade, estão eminentemente ligadas à coexistência de atitude dos pais, mães e docentes que, ainda hoje, fazem desta brincadeira uma estratégia potencializadora de socialização, de comunicação e de lazer.