• Nenhum resultado encontrado

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 288 5.1 Síntese das pesquisas

1.1 Contextualização do problema em torno da gestão das águas na América do Sul

É lugar-comum em praticamente todas as teses sobre águas um capítulo ou seção destinado a apresentar dados quantitativos e qualitativos acerca da quantidade de água existente no planeta e dos percentuais de água doce e de água disponível para o consumo humano – embora três quartos do mundo sejam feitos de água, uma parte ínfima, em torno de 3% é água doce e, desses, um percentual ainda menor encontra-se imediatamente disponível para consumo humano (VIEGAS, 2017, p. 130) –, da importância da água para a vida na Terra, da quantidade de águas disponíveis na América do Sul ou no Brasil, e quanto isso representa em termos proporcionais em relação ao mundo, dos principais rios e bacias hidrográficas da região e também dos baixos índices de acesso à água e ao saneamento no Brasil ou na região sul- americana.

Uma das principais questões deste século é a da água, a escassez desse recurso no mundo e a emergência de uma verdadeira guerra pela água. Mais especificamente, nesse contexto, ao lado dos impactos para a vida humana ocasionados pelas mudanças climáticas, a gestão compartilhada das águas transfronteiriças emerge como um desses temas mais debatidos do primeiro quarto do novo milênio (RIBEIRO, 2008, p. 227). A questão vem chamando a atenção no mundo, tendo sido objeto de preocupações até mesmo do sumo pontífice da Igreja Católica e Chefe do Estado do Vaticano registradas na encíclica papal Laudato Si’. Nessa oportunidade, o Papa Francisco alertou quanto às implicações relativas à escassez de água no momento atual do mundo, e da falta de qualidade, principalmente para as populações mais pobres, em especial os reflexos para o custo de alimentos e de outros bens de primeira necessidade que utilizam a

água como insumo em seus processos produtivos. Também manifesta sua preocupação com a privatização da água e os riscos de sua sujeição às regras de mercado, e com o desperdício de água, tanto nos países desenvolvidos, quanto nos países abençoados com grandes reservas de água (FRANCISCUS, 2015, p. 28-31).

A má gestão dos recursos hídricos verificada pelos dados internacionais, não somente no cenário nacional, mas principalmente em âmbito regional, pode colocar em xeque a soberania hídrica dos países da América do Sul, levando à necessária reflexão quanto a possíveis estratégias jurídicas e soluções institucionais. A América do Sul é um continente que, como um todo e em relação ao mundo, detém uma grande riqueza hídrica, não apenas em consideração às águas superficiais, que são as águas próprias para consumo humano, quanto em relação às águas subterrâneas. A região detém em torno de 28% de toda a água fresca disponível no mundo (desconsideradas as águas glaciais) (GWP, 2012, online).

Sob o ponto de vista fluvial, a América do Sul dispõe de quatro grandes bacias hidrográficas, cada uma num contexto distinto: a Bacia Amazônica, transfronteiriça, compartilhada entre Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela; a Bacia do Orinoco, a terceira maior da América do Sul, cobrindo grande parte dos territórios da Colômbia e da Venezuela; a Bacia do Prata, também transfronteiriça, com águas compartilhadas entre Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai; e a Bacia do São Francisco, que se encontra integralmente em território brasileiro, mas que se encontra em vias de transposição de parte de suas águas para as regiões do semiárido.

Já do ponto de vista das águas subterrâneas, a América do Sul também é contemplada por dois grandes complexos: um deles é o Sistema Aquífero Guarani, situado na região relativa à Bacia do Prata, um dos maiores reservatórios de água doce subterrânea do mundo, com dimensão indefinida dos quantitativos de água, dividido com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, sobre o qual se situa também o Sistema Aquífero Serra Geral; e o outro é o Aquífero Alter do Chão, situado na região equivalente à Bacia Amazônica, considerado talvez o maior reservatório do mundo, com dimensões nacionais, abrangendo os Estados do Amazonas, Pará e Amapá.

Não fosse isso bastante, todo esse potencial hídrico está disponibilizado para apenas 6% da população mundial (GWP, 2012), sendo dessa maneira a região em que há a maior distribuição per capita de água. No aspecto territorial, também é a região que possui a maior proporção de metros cúbicos de água por quilômetro quadrado, com cerca de 580.000 m³/km²

em comparação com outros continentes que atingem a marca de 300.000 m³/km² (JONES; SCARPATI, 2007, p. 227).

Apesar de ser dotada de todas essas características, há grandes disparidades regionais e socioeconômicas na região. Nesse sentido, uma área de 23% da América do Sul é coberta por regiões desérticas ou secas (GWP, 2012), e o acesso à água potável pelos países da região é assimétrico, havendo de um lado alguns com universalização quase atingida, como ocorre com o Uruguai, outros países encontram-se na média mundial (83%), como Peru, Venezuela e Guiana (WHO; UNICEF, 2006). Ademais, também se observam disparidades no grau de acesso e de consumo de água entre as regiões urbana (de 300 a 600 litros por pessoa por dia) e rural (de 30 litros por pessoa por dia) (JONES; SCARPATI, 2007, p. 228), bem como, internamente às regiões urbanas, de acordo com a renda per capita (UNICEF; WHO, 2012, p. 4).

Da mesma forma, insere-se nesse conjunto de preocupações a conotação do caráter público das águas. Embora não pareça haver aprioristicamente problemas em torno de uma possível despublicização dos recursos hídricos, os riscos e prejuízos gerados com a total ausência de fiscalização, regulação e controle estatais podem ser interpretados como má gestão dos recursos. A privatização dos recursos hídricos, pelo menos no seu sentido mais forte, pode conduzir a prejuízos para a soberania hídrica (ARAUJO, 2005, p. 14).

O problema nuclear desta pesquisa consiste em encontrar caminhos jurídicos e institucionais para a harmonização regional dos instrumentos legais nos países que integram a região sul-americana. Outros trabalhos já enveredaram em investigações dessa natureza, porém sempre com leituras parciais; em especial, trabalhos que abordam a Bacia do Prata (PES, 2005) ou a Bacia Amazônica (SOLA, 2015). Trabalha-se com as hipóteses de que não há disparidades intransponíveis entre os países da América do Sul que impossibilitem a coordenação de ações em prol da implementação da soberania hídrica, e de que há um ambiente institucional favorável para a criação de um modelo organizatório adequado para a sub-região americana.

O ponto de partida da presente tese consiste no reconhecimento em 2010, pelas Nações Unidas, do direito humano à água e ao saneamento, como essenciais para a vida e para o gozo de todos os outros direitos humanos. A despeito de tal declaração ocorrer por meio de Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, o que enseja discussões quanto à sua normatividade, fato é que levar a declaração a sério acarreta duas consequências, que são o motor desta pesquisa. A primeira delas tem um caráter hermenêutico, impondo ao intérprete uma releitura da legislação já vigente. A outra consequência remete à implementação efetiva desse direito, com efeitos na política internacional, exercendo pressão sobre os países que desperdiçam água.