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9 A RECONFIGURAÇÃO TEÓRICO-DOGMÁTICA DAS TEORIAS JURÍDICAS

9.1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

O estudo procurou identificar os diversos conceitos, naturezas jurídicas e classificações do salário, no contexto da teoria jurídico-trabalhista clássica.

De tudo que foi pesquisado, é possível chegar-se às seguintes constatações:

a) O salário se constitui como elemento fundante do contrato individual de trabalho, razão pela qual este modelo diferenciado de negócio jurídico possuir, quanto à sua natureza jurídica, um caráter oneroso;

b) Revolvendo-se todas as teorias jurídicas do salário – salário justo, salário vital,

salário suficiente, salário alimentar, igualdade salarial, salário social - às normas

internacionais que lhes asseguram um caráter de disciplina universalizável – como a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 -, o máximo que se pode constatar é que o salário se encontra condicionado a um ganho que permite o operário viver, ou manter uma vida digna por meio de uma remuneração justa, ou, ainda, como afirma o professor Amauri Mascaro, reproduzindo aquela mesma declaração universal, ―uma remuneração justa, compatível com a dignidade humana, satisfatória de um padrão de vida decente‖ (1997:17), para ele e sua família.

c) Apesar de, como já restou também esclarecido, as relações de trabalho que se instituiu na Sociedade Moderna serem fruto de um modo de produção específico e não trans- histórico – o Modo de Produção Capitalista -; de o salário se constituir – inclusive pelo que ficou evidenciado nas narrativas dos autores clássicos da economia política – como compra e venda da força de trabalho, este pressuposto não faz parte daquela mesma narrativa, a não ser de modo subliminar, o que não lhe permite apresentar-se sequer para como paradigma a ser contestado, desqualificado;

d) Também não lhe diz respeito o fato de as relações de trabalho subordinadas e centradas na compra e venda da força de trabalho se constituírem como lócus privilegiado da Sociedade Moderna e aparecerem como a priori das teorizações, no âmbito da sociologia clássica, em geral, e do Direito do Trabalho, em particular. Logo, como elementos fundantes da reprodução deste modelo de Estado e de sociedade, e sem os quais eles não existiriam.

e) Não interessou a esta mesma concepção doutrinal reconhecer o caráter revolucionário da burguesia; a sua imensa capacidade de inserir incessantemente novas tecnologias e promover um aumento incalculável de produtividade, o que gerou uma evidente desproporção entre as limitações das jornadas de trabalho verificadas desde começo do século XIX até os nossos dias e o extraordinário aumento de ganhos e de lucratividade decorrentes da sistemática inserção de novas tecnologias;

f) Também não ingressa naquela narrativa o fato de as teorias organizacionais conservadores haverem empreendido métodos e técnicas de gestão e de administração que, apesar dos escandalosos ganhos de produtividade, desencadearem ainda mais obrigações para os empregados, hoje contraditoriamente considerados ―colaboradores‖, ―empreendedores‖, submetidos a maiores controles, jornadas de trabalho ainda mais estafantes, o que têm gerado mais adoecimentos, mortes lentas no trabalho e baixos salários.

g) Por fim, não interessou àquela doutrina o fato de haver uma inversão de perspectiva na ideologia da empresa moderna.

Além de haver uma implosão por dentro – dualização do assalariato, um complexo de pequenas empresas dentre da empresa ―mãe‖, uma complexa e multifacetada estrutura de gestão, de administração, de jornada, de salários, etc -, é possível notar que os antigos vínculos de solidariedade foram quebrados também porque a ideia de recursos humanos ou de capital humano – que já eram questionáveis – perderam espaços e status para os clientes e os acionistas.

Diante de tais rupturas estruturais, que implica reconhecer a crise do Direito do Trabalho, a autora deste estudo aponta para inserção, na esfera da perspectiva enfrentada nesta secção, ou seja, na perspectiva exclusiva das relações de trabalho tradicionais, forjadas no interior das organizações ou empresas capitalistas, as seguintes alternativas, assim consideradas:

a) Conforme assinala Amauri Mascaro (1997), ao longo do tempo o conceito de salário sofreu alterações, ampliações. ―Atomizou-se o salário. Diversificaram-se os seus aspectos. O salário passou a ser uma figura multiforme‖ (NASCIMENTO, 1997, p. 118).

Embora diversificado, alterado, ampliado e multiforme, ele não ultrapassou os sentidos tradicionais que sempre os encarou dentro de um marco, de um pressuposto: ter um caráter retribuivo que possa garantir ao obreiro a manutenção de uma vida digna,

considerando-se vida digna aquela que garanta a ele e a sua família consumir os bens necessários às suas sobrevivências. Patamar mínimo de dignidade que inclui: saúde, educação, transporte, dentre outros.

Não foram os trabalhadores que inventaram uma sociedade de consumo patológica, que deve ser combatida e não recepcionada. Mas, por outro lado, não se deve deixar de reconhecer o notável desenvolvimento que a tecnologia trouxe para a humanidade e suas implicações em todas as esferas da sociabilidade – desde o laser, à saúde, à arte, à cultura ao entretenimento, estes últimos considerados pela UNESCO como bens e utilidades imateriais. Do contrário, ter-se-ia de negar o caráter revolucionário da burguesia, tal como preconizaram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista já assinado.

Estas as razões pelas quais o patamar mínimo preconizado pela doutrina clássica encontrar-se, repita-se condicionado a um mínimo para sobrevivência do trabalhador e de sua família, o que significa uma verdadeira hipocrisia. Sabe-se ainda mais que, enquanto a sociedade do trabalho se encontrar condicionada ao modo de produção capitalista, especialmente no contexto atual, de passagem do modelo fordista para o modelo de acumulação flexível, não desaparecerá o sistema assalariado como forma de reprodução das estruturas jurídicas, políticas e econômicas vigentes.

As lutas decorrentes da autonomia privada coletiva devem inserir na sua agenda uma nova maneira de encarar aquele patamar mínimo, para configurá-lo não como patamar mínimo de sobrevivência, mas como patamar civilizatório e de cidadania, ou melhor: uma remuneração que permita a todos os trabalhadores desfrutarem dos padrões civilizatórios que envolvem simultaneamente: moradia, educação, saúde dignas, além de acesso ao lazer e a todos os bens materias e imaterias – artísticos e culturais disponíveis. A expressão grafada pela autora deste estudo é: condições civilizatórias de existência.

b) Uma reconfiguração teóricado salário social, para desvinculá-lo das contribuições tidas sociais – muitas vezes pagas pelo Estado -, quando o trabalhador se encontre impedido de trabalhar ou facultado a não fazê-lo transitoriamente - sem que se enquadre no contexto dos encargos sociais. A tese se refere à participação dos trabalhadores

nos lucros da empresa.

Autora compreende a rejeição desta alternativa por parte da maioria da corrente socialista, mas prefere enfrentar este teme, na medida em que a teoria jurídico-trabalhista

conservadora, recepcionando os ideais de parte da doutrina que, por seu turno, absorvem as diretrizes traçadas pelo grande capital, também não aceitam a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas.

A prova disso são os lucros astronômicos do setor bancário, do agronegócio exportador – aquele conseguiu suprimir setenta por cento de sua mão de obra, por meio de inserção de novas tecnologias.

A teoria organizacional conservadora, para livrar-se da possibilidade desta participação, inventou algo linguisticamente ainda mais sofisticado e extraordinariamente danoso para os trabalhadores: a participação nos resultados. Traduzindo: o cumprimento de metas, uma das formas mais cruéis de relações de trabalho, que impõem uma competitividade desleal, abominável e humilhante entre os obreiros; um grau de adoecimento – sobretudo psíquico sem precedentes.

Os sistemas tributários envolvidos com as novas tecnologias da informação e da comunicação dificultam o mascaramento contábil, o caixa dois e outros sistemas corrompidos de verificação de ganhos e de lucratividades. Permitem a verificação dos ganhos a serem distribuídos equitativamente aos empregados, independentemente de critérios de competência, produtividade, etc.

Já se sabe que a dualização do assalariado – a presença de uma multiplicidade de empresas dentro da empresa ―mãe‖ -, aliada à clandestinização, tudo isso convivendo com o desemprego estrutural, têm produzido uma involução no sistema protetivo e um aumento avassalador na lucratividade empresária.25

Mas nada impede que os movimentos sindicais, cientes da possibilidade de verificação da lucratividade empresária, sobretudo, aquela adquirida pelas grandes corporações multinacionais, seja revolvida e colocada na mesa de negociação, para ser distribuída com aqueles que são os responsáveis por toda esta riqueza. Não fazê-lo parece, ao olhar da autora deste estudo, conformar-se com barbárie contemporânea, até porque, a

25 Embora não seja objeto desta pesquisa, sabe-se também que qualquer mudança positiva nas relações de

trabalho depende do renascimento das lutas coletivas – ao mesmo tempo reformista e revolucionária ou emancipatória, tema muito caro a este programa e que envolve um olhar para os novos movimentos sociais e às teorias dos movimentos sociais. Logo, qualquer proposição, no âmbito das relações individuais de trabalho, deve ser encarada pelo pesquisador como alternativa que vai depender da luta operária, como fonte privilegiada deste campo do direito.

distribuição desta lucratividade não transforma o trabalhador assalariado em empregador ou detentor dos meios de produção.

9.2 A RECONFIGURAÇÃO DA TEORIA JURÍDICA DO SALÁRIO, NO ÂMBITO DA