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Contra a paz dos cemitérios

No documento ADELAIDE MARIA MURALHA VIEIRA MACHADO (páginas 39-43)

PARTE 1. EUROPA: HERANÇA E ACTUALIZAÇÕES

1.3. Contra a paz dos cemitérios

Em 1795, Emanuel Kant92, publicou em Konigsberg uma obra dedicada ao tema da paz perpétua. A tradução francesa foi publicada em Paris, no ano seguinte, com o título, Vers la paix perpétuelle, esquisse filosophique. A obra estava organizada sob a forma de um tratado de paz, com os artigos preliminares, definitivos e respectivos anexos. Basicamente, defendia-se uma federação enquanto associação de estados livres, cujo objectivo era a defesa e manutenção da paz entre os seus membros.

A possibilidade do projecto era fundamentada por várias vias, a contra-corrente de trabalhos anteriores. Em primeiro lugar, a paz perpétua não podia ser fundada ou deduzida do estado de guerra. O entendimento entre os povos era em si meio e fim, era um direito, o que pressupunha que o atingir desse estado se tornava um dever.

“Est de la conduite qui doit amener la paix perpétuelle que l’on ne souhaite pas seulement au titre d’un bien physique, mais aussi comme un état qui résulte de la reconnaissance du devoir.”93

Ora, embora moralmente certo, Kant considerava que o projecto era impraticável, porque era a negação da própria moral, enquanto doutrina do direito.

”Déjà par elle-même la morale est une pratique au sens objectif, en tant qu’ensemble des lois commandant inconditionnellement et conformément aux quelles nous devons agir et c’est une absurdité manifeste de vouloir, après avoir reconnu une autorité au concept du devoir, ajouter que pourtant on ne peut pas agir.”94

O corpo da crítica Kantiana atingia, por um lado, os que, em nome de um conhecimento da natureza humana, colocavam objectivamente uma barreira intransponível entre teoria e prática, e por outro, aqueles para quem o interesse era tido como motor da acção quando o seu lugar era, quando muito, juntamente com a felicidade, a consequência dessa mesma acção. Afirmar que o fim justificava os meios, levava inevitavelmente à adulteração do próprio fim.

“Pour mettre la philosophie pratique en accord avec elle-même, il est nécessaire de trancher tout d’abord la question suivante: dans le domaine des problèmes de la raison pratique, faut-il mettre en premier le principe matériel de celle-ci, c’est a dire la

92 Sobre Kant ver sobretudo Soromenho Marques, Razão e progresso na filosofia de Kant,

Lisboa, 1998 e Ribeiro dos Santos, Republicanismo e cosmopolitismo: a contribuição de Kant para a formação da ideia moderna de federalismo, in O federalismo europeu, Lisboa, 2001, p. 35-69

93 Immanuel Kant (1724-1804), Vers la paix perpétuelle, Paris, 1991, p.119 94 Idem, Idem, p. 110

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fin (comme objet de l’arbitre) ou bien faut-il que ce soit le principe formel, c’est a dire le principe (ne reposant, dans les rapports extérieurs, que sur la liberté) qui édicte: agis de tel sorte que tu puisses vouloir que ta maxime devienne une loi universelle (quelle que soit sa fin)?”95

Para Kant, teoria e prática derivavam e desembocavam numa doutrina do direito, não havendo a esse nível contradição entre elas, sendo que, em correspondência e ao mesmo nível, não haveria contradição entre política (como doutrina do direito prático) e moral (como doutrina do direito teórico). Entre ambas, a faculdade racional de orientar e dar sentido à acção - o puro dever de estabelecer o direito puro - equacionava como condição formal para a acção, um conjunto de princípios, fruto da racionalização da experiência. Política e moral partilhavam, apesar da sua heterogénese, do dever como imperativo categórico da criação do espaço cívico do direito. A suposta inclinação subjectiva do homem para o egoísmo não constituía prova do contrário, apenas reforçava a necessidade de aceitação dos princípios do direito como realidade objectiva96. Kant não deixou de advertir para a luta constante entre os universais objectivos e os particulares subjectivos e de como esse processo passava, sobretudo, pelo olhar de cada um para a sua própria interioridade moral, em perfeito acordo com um conceito de liberdade cujo núcleo positivo era um movimento constante de criação e auto-determinação. No entanto esta interioridade inacessível não era condição para a exterioridade organizadora do direito, isto é, o móbil da acção poderia não ser moral, desde que a acção respeitasse a lei moral, sendo por isso conforme ao direito. Ao distinguir a moral enquanto doutrina da virtude (ética), da moral enquanto doutrina do direito (lei moral), embora apelando às duas e integrando-as participativamente no discurso político, Kant estabeleceu, em termos de sociedade, a única que realmente contava.

“Cependant la nature vient en aide à la volonté universelle, fondé en raison, volonté vénérée mais impuissante en pratique, et cela justement par le biais de ces inclinations égoïstes; aussi suffit-il d’une bonne organisation de l’État (qui est sans doute au pouvoir des hommes) pour tourner les unes vers les autres les forces des hommes d’une manière telle que l’une soit entrave l’effet destructeur des autres soit le supprime; ainsi pour la raison, le résultat est le même que si les forces opposés

95 Kant, Vers la paix…, p.118

96 Nous sommes inévitablement amenés à des telles déductions désespérées, si nous

n’admettons pas que les purs principes du droit disposent d’une réalité objective, c’est-à-dire si nous n’admettons pas qu’on peut les mettre en exécution.”Idem, Idem, p.123

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n’existaient pas, et ainsi l’homme, même s’il n’est pas un homme moralement bon, est contrainte d’être cependant un bon citoyen.”97.

Digamos que não era necessário fazer depender do melhoramento moral do homem, a criação de um estado de direito, mas uma vez este estabelecido - em liberdade e sob o império da lei - era possível esperar que, progressivamente, o móbil da acção caminhasse em harmonia com o seu resultado, de acordo com a máxima acima exposta sobre a universalidade da acção98.

O aspecto formal presidia à modificação de conteúdos, a uma progressiva alteração da natureza das coisas e tal como o imperativo categórico do dever, a política deveria ser conduzida a priori, isto é, pelos princípios formais do direito público. O problema da inteligibilidade da separação entre o que era e o que devia ser estava assim resolvido, em teoria. Só no espaço do direito, moral e política encontravam entendimento possível. Sem este encontro prévio, o caminho da violência era o único que restava para uma efectiva, mas posterior, instauração prática do direito99. A

independência dos critérios ou da esfera moral, das leis naturais ou históricas, a partir da qual era possível extrair uma ideia de política a priori, conduziria necessariamente a uma maneira de encarar os caminhos de mudança, enquanto finalidade.

Tinhamos assim, por um lado, o caminho da reforma, ”un état peut bien déjà se

gouverner d’une manière républicaine bien que, d’après la constitution présente, il détienne encore une puissance souveraine despotique; jusqu’à ce que progressivement le peuple devienne réceptif à l’influence de la simple idée de l’autorité de la loi (exactement comme si la loi détenait un pouvoir physique) et soit ensuite en mesure d’être l’auteur de sa propre législation (laquelle est originairement fondée sur le droit.)100, e por outro, apontavasse o caminho da revolução, ”même si une constitution plus conforme à la loi avait été imposé d’une manière non conforme au droit, par la

97 Kant, Vers la paix..., p.105

98 “Si l’on regarde les États effectivement existants et organisés encore très imparfaitement, on

voit qu’ils se rapprochent déjà beaucoup pourtant dans leur comportement extérieur de ce que l’idée du droit prescrit, même si la moralité intérieur n’en est évidement pas la cause (de même qu’il ne faut pas attendre de la moralité, la bonne constitution de l’État, mais à l’inverse de cette dernière d’abord, la bonne formation du peuple.)”Idem, Idem, p.105

99 ”Certes, s’il n’y a pas de liberté et pas de loi morale fondée sur elle, mais si tout ce qui arrive

ou peu arriver n’est que simple mécanisme de la nature, alors la politique (en tant qu’art d’utiliser ce mécanisme pour gouverner les hommes) est toute la sagesse pratique et le concept de droit est une idée creuse. Mais si on considère comme nécessité inévitable de lier ce concept avec la politique, voire de l’élever à une condition restrictive de la politique, alors il faut admettre la possibilité de leur réunion.”Idem, Idem, p.112

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violence d’une révolution résultant d’une mauvaise constitution, il ne faudrait cependant pas tenir pour licite de ramener le peuple à l’ancienne constitution.”101

Em conclusão, se o resultado alcançado fosse o de um governo republicano, o único que na perspectiva Kantiana estabelecia o estado de direito, então poderia falar-se do cumprimento do contrato originário, como realização duma vontade universal, e poder-se-ia pôr seriamente a questão de um direito dos povos ou das gentes.

Assim sendo, só o estabelecimento de estados de direito, isto é, que respeitassem os conceitos de liberdade e igualdade perante a lei, configurando, por assim dizer, uma política conhecida à priori, porque de acordo com os princípios do direito público, inauguraria como possibilidade, a existência duma relação entre os mesmos como verdadeiro veículo da vontade universal102, única a determinar o que era de direito entre os homens103. A partir de uma necessária moralidade interior, só validada como expressão de liberdade ou capacidade de escolha, a vontade de cada um instituía uma vontade universal como lugar do direito. Deste, como que a fechar o ciclo, derivavam a lei moral e a verdadeira política como lugares da liberdade cívica e cosmopolita. A independência dos Estados depositária da vontade de cada um, adquiria perante o exterior, a radicalidade da liberdade original, com o nome de potência. Assim sendo, para Kant, a existência de uma lei, ou condição exterior, capaz de atribuir direitos e impor deveres a um povo, não era a mesma coisa que impor uma autoridade supra- estadual, mas era condição para a realização de uma livre associação de estados, mantendo intacta a liberdade em depósito acima referida104.

Era esta a ideia de federação defendida por Kant, que não sendo um problema técnico de equilíbrio, era um dever, isto é, embora norteado pelo desejo de paz, o direito das gentes, era mais do que isso. Era uma praxis e o seu tempo de concretização era o agora, era o agir actualizado e de acordo com uma doutrina do direito, que para todos os

101 Kant, Vers la paix..., p.113

102 “Sinon on aura des lois simplement générales (qui valente en génerale), mais non pás des lois

universelles (qui valent universellement), comme pourtant le concept d’une loi semble l’exiger.” Idem, Idem, p. 82

103 “Mais cette réunion de la volonté de tous, à condition que son exécution soit conduite d’une

manière conséquente, peut être en même temps, d’après le mécanisme de la nature, la cause permettant de provoquer l’effet visé et de rendre effectif le concept de droit.”Idem, Idem, p.120

104 “Ce n’est que si on présuppose un état quelconque de droit (c’est-à-dire une condition

extérieure permettant d’attribuer effectivement à l’homme un droit) qu’on peut parler d’un droit des gens; son concept renferme déjà, en effet, en tant que droit publique, la publication d’une volonté universelle déterminant ce qui revient à chacun et ce status juridicus doit provenir de quelque contrat qui justement n’a pas besoin (comme le contrat dont nait un État) d’être fondé sur des lois de contrainte, mais qui peut, tout au plus, être un contrat d’une association libre et permanente.”Idem, Idem, p.126/7

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efeitos caminhava em simetria com uma natureza teorizada, enquanto cultura ou história105.

Assim, respeitados os princípios formais de organização das sociedades em conformidade com o direito, a fenomenalização dos desígnios da natureza traduzidos na acção humana em progresso confundir-se-iam com eles, manifestando-se por e através da vontade universal106.

O esforço de inteligibilidade efectuado por Kant, socorrendo-se criticamente de esforços anteriores, criando assim uma síntese própria, procurou sobretudo quebrar o hiato teórico entre prática e teoria, de forma a que o resultado do seu trabalho não sendo político no sentido material, à política pudesse ser aplicado como princípio formal. Nesse sentido, o projecto de paz perpétua, a concretizar numa federação enquanto aliança de estados livres, sendo embora um produto do pensamento ocidental, destinava-se progressivamente, e independente da zona geográfica, a alcançar uma maturidade interior/exterior em termos globais.

”Si c’est un devoir, s’il existe en même temps une espérance fondée de réaliser l’état d’un droit public, même si on ne peut que s’en approcher par des progrès indéfinis, la paix perpétuelle, qui résulte de ce qu’on a nommé jusqu’ici faussement des conclusions de paix (en fait des armistices), n’est pas une Idée creuse, mais un problème qui se résout peu à peu et se rapproche constamment de son but (parce que le temps, au cours duquel se produisent de tels progrès, sera heureusement de plus en plus court).»107

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