• Nenhum resultado encontrado

O Estado de direito cosmopolita

No documento ADELAIDE MARIA MURALHA VIEIRA MACHADO (páginas 47-52)

PARTE 1. EUROPA: HERANÇA E ACTUALIZAÇÕES

1.5. O Estado de direito cosmopolita

Kant na sua ideia de federação, esboçara com muita clareza a diferença entre aquilo que era a realidade europeia e mundial e até onde a razão poderia chegar no esboço de uma república universal em paz perpétua. Nesse sentido, também, definira a guerra como o motor de desenvolvimento num determinado estádio, o qual se podia transformar num processo de auto-destruição a partir de certa altura. Colocava, portanto, como condição para o sucesso federativo, admitido em teoria como o mais adequado ao progresso e como etapa aproximativa para a paz definitiva, a construção de Estados de Direito que facilmente aceitariam a extensão jurídica do espaço nacional para o continental. Ao contrário de Saint-Simon, não diluía progressivamente o papel dos Estados membros, antes os via como entidades depositárias que eram, da liberdade dos povos e o seu único garante, e logo também, o da própria federação. Assim sendo, recusava a ideia de uma constituição conducente a um Estado supra-nacional, que entraria em contradição com uma proposta de homogeneidade política, como construção amadurecida dos estados de direito enquanto entidades morais118.

O estado de direito, como base da federação Kantiana e a sua garantia, entrava em linha de coerência com a divisão que este autor fazia, a partir do Estado entre forma de soberania e forma de governo. Quanto à forma do exercício da soberania, consoante quem a detinha, podia estar nas mãos de um só, nas mãos de alguns, ou de todos (autocracia, aristocracia, democracia). Quanto à forma de Governo só duas hipóteses se punham: a república e o despotismo. Ora o 1º art. Definitivo do Projecto de Paz de Kant, dizia lapidarmente que, “la constitution civique de chaque État doit être republicaine.”

No final da explicação deste artigo, demonstrava-se qual a forma de Estado que mais facilmente chegaria ao republicanismo.

“Plus le personnel du pouvoir de l’Etat (le nombre des dominants) est petit et plus est grande par contre sa représentation, plus la constitution de l’Etat s’accorde avec la possibilité du républicanisme et elle peut espérer s’y élever finalement par des

118 “Cela [un fédéralisme d’États libres] serait une alliance des peuples, mais ce ne devrait pas

être pour autant un État des peuples. Car il y aurait contradiction: comme chaque État contient le rapport d’un supérieur (qui légifère) à un inférieur (qui obéit, en l’occurrence, le people), plusieurs peoples en un État ne formeraient qu’un seul people, ce qui (puisque ici nous avons à examiner le droit réciproque des peuples, dans la mesure où ils forment autant d’États différents et ne doivent pas se fondre en un État) contredit l’hypothèse.”Kant, Vers la paix…, p.89

42 | P á g i n a

reformes progressives. Pour cette raison il est déjà plus difficile dans une aristocratie que dans une monarchie de parvenir à cette constitution, la seule qui soit parfaitement de droit, mais c’est impossible d’y parvenir dans une démocratie autrement que par une révolution violente.”119

O que significava, então, para Kant a forma de governo republicana?

A República era entendida por Kant em vários planos ou dimensões. Por um lado, ela estava presente sempre que um acto público livre tinha lugar, isto é, em condições de liberdade, o espírito crítico inerente ao modo de estar republicano surgiria, porque intrínseco ao homem em sociedade. Tratava-se do espaço cívico, originário do direito, que se situava entre a vida de cada um e o governo, a falada opinião pública tão cara aos liberais e que como vimos, Saint-Simon, tentava institucionalizar no seu projecto de federação. Daí que Kant defendesse uma constituição cívica republicana. Para ele, este era o nó da questão, que por sua vez se directamente com o 3º Art. Definitivo, no qual se tratava do direito de visita entre países, “il s’agit ici non de philanthropie, mais de droit.”120, como ponto de encontro da política e da moral, a civilidade no seu melhor, o fim último, a paz perpétua fora dos cemitérios. Este direito de visita e somente de visita, era a compreensão do respeito mútuo necessário à escala planetária, era, também, o impedir da conquista e rapina usual, era finalmente a certeza de que o direito posto em causa em qualquer canto da Terra a afectava no seu todo.

”On est arrivé au point où toute atteinte au droit en un seul lieu de la terre est ressenti en tous”121.

Esta era a base da ideia de república universal de Kant, baseada num código não escrito, mas comum a todos os homens, ultrapassado o estado de natureza, depois de consolidados o Estado de direito e a Federação de Estados Livres (2º Art. Definitivo)122. Mas à República correspondia também, e traduzido na prática, o sistema representativo, aquele em cujo sistema, o poder executivo e o poder legislativo se encontravam separados. A forma de governo republicana era, de certa forma, incompatível com a forma de Estado “Democracia”. Tal como em Montesquieu e à semelhança deste nos pressupostos da discussão americana, a democracia conduzia invariavelmente à forma

119 Kant, Vers la paix..., p.87 120Idem, Idem, p.93

121 Idem, Idem, p.96

122 “L’idée d’un droit cosmopolitique n’est pas un mode de représentation fantaisiste et

extravagant du droit, mais c’est un complément nécessaire du code non écrit, aussi bien du droit civique que du droit des gens en vue du droit public des hommes en général et ainsi de la paix perpétuelle dont on ne peut se flatter de se rapprocher continuellement qu’à cette seule condition.”Idem, Idem, p.97

43 | P á g i n a

de Governo “Despotismo”, uma vez que as facções se gladiavam sem descanso e sem respeito pelas minorias. A dita vontade de todos não correspondia nunca à vontade de todos, isto é, sem as figuras do representante e do representado, o assentimento às leis não se verificava, e o estado de revolta versus repressão seriam constantes, numa espécie de legitimação eternamente adiada. Kant, ao contrário de Montesquieu, não achava necessária a justificação histórica ou experiencial, como o facto de Inglaterra ser apresentada como cartilha de governo e constituição. Independentemente da validade do exemplo, na procura de universais o importante era a definição em si, construída nos vários planos teórico e prático, e que se pretendia para todos os tempos e lugares, embora, não para sempre. Era o limite máximo até onde a razão, com os dados que possuía, podia chegar. Assim, não entrando por uma via justificativa, a sua teoria da História entrava como componente intrínseca do direito ou da sua doutrina, conduzindo também ela a um caminho progressivo para a paz, ao mesmo tempo que ocupava um lugar incontornável nas construções teóricas de totalidade e unidade contingentes. O facto não substituía ou era confundido com o direito, mas antes a experiência racionalizada era entendida como parte integrante desse mesmo direito.

Neste sentido, o Estado de direito era aquele que assumia a positividade do indivíduo, que passaria a ter estatuto de sujeito e de cidadão, estatuto negativo de quem cumpre a lei que impôs a si próprio e aos outros, e cujas acções comportariam o serem universalmente aceites. Sendo assim, seria de facto contraditório a construção de um estado supranacional que deitasse por terra a verdadeira condição para a paz pretendida, o mencionado estado de direito, cuja constituição cívica obedeceria aos seguintes princípios:

”La constitution instituée premièrement d’après les principes de liberté des membres d’une société (comme hommes), deuxièmement d’après d’une dépendance de tous envers une unique législation commune (comme sujets) et troisièmement d’après la loi de leur égalité (comme citoyens).”123

A Federação de Estados Livres era, portanto, uma aliança de maturidade política fundada no direito, entre entidades que se respeitavam mutuamente. Kant, seguro da solidez formal do seu projecto, não vai ao detalhe organizacional, mas deixa bem claro que a construção que propõe, não é só um problema político que se resolve recorrendo a

44 | P á g i n a

uma técnica federativa, é antes disso um problema da moral, que é chamada a desatar os nós criados pela política, tendo por tal a primeira e a última palavra124.

O direito entre Estados adquiria legitimidade, isto é, poder coercivo, a partir desta construção e não antes, transformando-se num tribunal. Esse seria o seu atributo principal, único capaz de acabar com o estado de natureza ou estado de guerra entre os povos. É importante salientar da parte de Kant, a recusa na utilização da força para a obtenção da paz, ao mesmo tempo que a fazia depender, em primeiro lugar, da existência de um estado de direito.

“La condition de possibilité d’un droit des gens en général est l’existence préalable d’un état de droit.”125

A ideia de constituir uma aliança permanente entre estados tinha, como único apoio, a vontade educada pelo dever, como fruto de um determinado desenvolvimento político e moral, que encurtaria, portanto, a distância entre o que era e o que devia ser126.

A sua concretização seria, portanto, consequência de um avanço civilizacional que permitisse que um Estado verdadeiramente representativo funcionasse como centro e desse início à federação.

“À savoir, le libre fédéralisme que la raison doit lier d’une manière nécessaire au concept du droit des gens, si l’on veut d’une manière général continuer à penser quelque chose sous ce terme.”127

O avanço mencionado seria, ao mesmo tempo, a garantia da concretização dessa ideia federativa. A paz pelo progresso, enquanto finalidade da natureza, entendida como teoria da história128, seria também, através da constituição do direito dos Estados, das Gentes e Cosmopolita, a finalidade do género humano. Não uma paz feita à custa da

124 ”Ainsi la vraie politique ne peut faire un pas sans avoir d’abord rendu hommage à la morale,

et bien que la politique soit, en elle-même, un art difficile, l’union de la politique et de la morale n’est un art; car la morale tranche le noeud que la politique n’est en mesure de dénouer, sitôt que toutes deux entrent en conflit.” Kant, Vers la paix..., p.123

125 Idem, Idem, p.129

126 “Cette alliance ne vise pas à acquérir une quelconque puissance politique, mais seulement à

conserver et à assurer la liberté d’un État pour lui-même et en même temps celle des autres alliés, sans que pour autant ces États puissent se soumettre (comme des hommes à l’état de nature) à des lois publiques et à leur contrainte.”Idem, Idem, p.91

127 Idem, Idem, p.92

128 L’emploi du mot: nature, quand il s’agit simplement, comme ici, de théorie (et non de

religion) convient également davantage aux bornes de la raison humaine (qui doit, si l’on considère le rapport de causes et des effets, se tenir à l’intérieur des limites de l’expérience possible)” Idem, Idem, p.100

45 | P á g i n a

estagnação pela força, do pendor egoísta e de emulação do homem, mas precisamente, utilizando-os de forma a equilibrá-los produtivamente129.

A liberdade de cada um não estaria nunca ameaçada pelo percurso paralelo da natureza, assim entendida, cujos desígnios funcionavam numa esfera de globalidade inatingível por cada um de per si, mas compatível, porque em fim coincidente, com a livre escolha do indivíduo.

“C’est de cette manière que la nature, par le biais des mécanismes des inclinations humaines elles-mêmes, garantit la paix perpétuelle; cette assurance, il est vrai, n’est pas suffisante pour prédire (théoriquement) son avenir, mais elle suffit dans un dessein pratique pour qu’on fasse un devoir de travailler à cette fin (qui n’est pas simplement chimérique).”130

129 “Elle [la nature] conduit, avec le progrès de la civilisation et le rapprochement progressive des

hommes, d’une plus grande concorde dans les principes à une entente dans la paix qui n’est pas provoquée et assuré comme ce despotisme (sur le cimetière de la liberté) par l’affaiblissement de toutes les forces, mais par leur équilibre et leur émulation plus vive.” Kant, Vers la paix..., p.106

46 | P á g i n a

CAP. 2 - EM NOME DA NAÇÃO

No documento ADELAIDE MARIA MURALHA VIEIRA MACHADO (páginas 47-52)

Documentos relacionados