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1. DIREITOS HUMANOS ENTRE A TOTALIZAÇÃO E A CONTRADIÇÃO NA

1.1. TOTALIZAÇÃO E CONTRADIÇÃO: NOTAS EPISTEMOLÓGICAS PARA UMA

1.1.3. Contradição

Se a imagem da Odisseia pode nos servir para ilustrar o processo de investigação, cumpre atestar que não lidamos com uma viagem qualquer, tranquila e sem confrontos, mas sim com um trajeto eivado de contradições, batalhas e conflitos. Por isso, ressaltamos o momento da contradição no processo de conhecer. Como exemplo desse elemento, poderíamos citar as palavras de Lyra Filho quando preocupado em pensar o direito:

A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça real que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do Direito, que é uma luta constante entre progressistas e reacionários, entre grupos e classes espoliados e oprimidos e grupos e classes espoliadores e opressores. Esta luta

faz parte do Direito, porque o Direito não é uma ‘coisa’ fixa, parada, definitiva e

eterna, mas um processo de libertação permanente (LYRA FILHO, 1982, p. 53).

Assim, todo objeto está inserido dentro da vida social e das contradições nela presentes: podem, consequentemente, ser usados, lidos e apropriados para defender ou rechaçar interesses conflitantes35. Isso exige reconhecer que não é possível assumir uma postura neutra na cognição da realidade: como aponta Horkheimer (1975a, p. 149), “o espírito não está separado da vida da sociedade, não paira sobre ela”36. A escolha pela neutralidade acaba inevitavelmente mascarando a dominação e fortalecendo o status quo (LYRA FILHO, 2000, p. 506-507), conquanto seja fundamental, ao tomar posição, negar também qualquer forma de sectarismo ou dogmatismo37.

35 No decorrer do presente trabalho, trataremos dos usos do direito, mas podemos adiantar que essa discussão

demonstra como focalizar a contradição é um momento essencial para entender o direito e os direitos humanos, visto que sua ambiguidade pode concretizar-se tanto em uma arma de libertação quanto em uma ferramenta de exclusão, dominação e exploração (Cf. RANGEL, 2006, RANGEL, 1990).

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“Não existe teoria da sociedade nem mesmo a teoria do sociólogo generalizador, que não inclua interesses políticos, e por cuja verdade, ao invés de manter-se numa reflexão aparentemente neutra, não tenha que se decidir ao agir e pensar, ou seja, na própria atividade histórica concreta. É inconcebível que o intelectual pretenda previamente realizar, ele próprio, um trabalho intelectual difícil, para só depois poder decidir entre metas e caminhos revolucionários, liberais ou fascistas” (HORKHEIMER, 1975a, p. 149).

37 Essa é outra interessante conjunção entre os pensamentos de Horkheimer e de Lyra Filho. Ela consiste no fato

dos dois condenarem, além da neutralidade, a posição partidária e panfletária de corte dogmático. O filósofo alemão, por exemplo, diz que “a teoria crítica não está nem ‘enraizada’ como a propaganda totalitária nem é ‘livre-flutuante’ como a intelligentsia liberal” (HORKHEIMER, 1975a, p. 149). O jusfilósofo brasileiro, por sua vez, arremata: “o jurisconsulto [...] há de evitar, simultaneamente, o sectarismo e a pseudoneutralidade”. No caso, entende-se que “o sectário não é, de fato, um cientista, já que traz, pré-fabricados e inabaláveis, a descrição, a explicação e o próprio princípio explicativo” (LYRA FILHO, 2000, p. 506-507).

Além disso, o termo contradição nos remete necessariamente à ideia de movimento, de modo a focalizar a realidade como “um objeto que se transforma constantemente” (HORKHEIMER, 1975a, p. 160). Por isso, subscrevemos as seminais palavras de Lyra Filho:

É preciso esclarecer, igualmente, que nada é, num sentido perfeito e acabado; que tudo é, sendo. Queremos dizer, com isto, que as coisas não obedecem a essências ideais, criadas por certos filósofos, como espécie de modelo fixo, um cabide metafísico, em que penduram a realidade dos fenômenos naturais e sociais. As coisas, ao contrário, formam-se nestas próprias condições de existência que prevalecem na Natureza e na Sociedade, onde ademais se mantêm num movimento de constante e contínua transformação (LYRA FILHO, 1982, p. 6, LYRA FILHO, 2006, p. 12).

Portanto, precisamos perscrutar nosso objeto a partir de um movimento histórico e dinâmico, cuja trajetória é incerta, não-linear e cujo resultado não está definido de antemão. Por isso, rechaçamos qualquer tentativa de ler a história ou a formação do conhecimento38 a partir de um teleologismo transcendental39 ou de uma linearidade progressiva40, que, como veremos a seguir na discussão sobre direitos humanos, sustenta o modo colonial-moderno de pensar a realidade41.

Reconhecer a não-linearidade e o não-teleologismo da vida social não implica, todavia, uma negação de qualquer possibilidade de pensar em quais atores, em cada caso concreto42, protagonizam a transformação social, de modo a cristalizar maiores parcelas de liberdade para todos. Por isso, outro elemento da contradição nos conduz a tomar uma posição

38 Como exposições exemplares contra essa concepção linear de construção do conhecimento, podemos citar o

pensamento de Bachelard (1987, p. 156, 161), para quem o saber nasce sempre de rupturas, e a teoria de Kuhn (1996), que rechaça a explicação da história da ciência a partir de ganhos historicamente graduais e lineares.

39 A prognose da teoria crítica deve ser lida apenas como “possivelmente verdadeira” e incerta, porque “a

realização das possibilidades depende das lutas históricas” (HORKHEIMER, 1975b, p. 168). Isso, por outro lado, expressa a necessidade de envolver-se na luta e esforçar-se para transformar a realidade, reabilitando a vontade histórica e a ação coletiva como elementos que podem mudar o fluxo da história (Cf. KONDER, 2009, SOARES, 2017, p. 19).

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Nesse tom, podemos resgatar a crítica dialética de Lyra Filho (1983, p. 60) em sua rejeição “a qualquer ‘esquema linear’ ou modelo fixo”, ou até as admoestações do último Marx, que, em 1877, negava firmemente a possibilidade de delinear “uma teoria histórico-filosófica do curso geral fatalmente imposto a todos os povos, independentemente das circunstâncias históricas nas quais eles se encontram” (MARX, 2013, p. 68). Nesse mesmo sentido, Cf. THOMPSON, 2012a, p. 171-172.

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Para mais detalhes, Cf. QUIJANO, 2005, em sua discussão dos elementos mais importantes do eurocentrismo. Para discernir os efeitos desse teleologismo eurocêntrico no estudo dos direitos humanos, Cf. ROSILLO MARTÍNEZ, 2011, p. 572-573 e SOUSA SANTOS, 2014, p. 24-25, que, muito propriamente, descreve a ilusão teleológica como “ler a história da frente para trás”.

42 Nesse sentido, concordamos com a assertiva de Herrera Flores: não há realidade fora de seu contexto e não há

juízo de direitos humanos que possa ser feito abstraindo os elementos contextuais do caso concreto. Consequentemente, afastamo-nos de qualquer leitura transcendentalista dos sujeitos que transformam a realidade. Ou seja, “. A verdade [...] se encontra nos contextos e nas lutas” (HERRERA FLORES, 2009, p 22).

e “ver, como o principal motor da História, a luta de classes, grupos e povos espoliados e oprimidos contra os seus espoliadores e opressores” (LYRA FILHO, 1983, p. 37).

Notamos, nessa proposição lyriana, um alargamento do rol de sujeitos que lutam por libertação, a fim de superar um marxismo ortodoxo e reducionista, que joga todas as lutas não-classistas para a vala do separacionismo, ou da irrelevância43. Assim, os preceitos de seu humanismo dialético incluem, por certo, os trabalhadores, mas são também voltados “a toda minoria oprimida” (LYRA FILHO, 1983, p. 52), porque é o processo de conscientização desses grupos, oriundo das crises decorrentes das contradições da estrutura social, que permite desmascarar as falsas verdades da totalidade do sistema como “meras conveniências de classe ou grupo encarapitados em posição de privilégio” (LYRA FILHO, 2006, p. 25).

Por fim, precisamos ressaltar que a contradição não é colocada em suspenso nos espaços de luta por dignidade: eles podem muito bem reproduzir outras formas de dominação e suas ações podem descambar na violação de direitos de minorias. Ou seja, no turbilhão dos acontecimentos históricos, barbáries podem ser feitas sob o manto de uma retórica de libertação. Logo, Lyra Filho (2000, p. 500) reconhece que toda prática de direitos humanos exige uma vigilância crítica quanto à práxis dos grupos oprimidos:

Não se conquistam direitos pelo esmagamento de direitos, isto é, direitos humanos e gerais, pois o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos, o que exclui a pretensa legitimidade duma ação majoritária aniquiladora do que são, sentem, pensam, carecem e reclamam os titulares do direito inalienável à diferença pessoal ou grupal irredutível.

Findas as considerações epistemológicas mais gerais de nosso trabalho, que dão o tom do horizonte cognitivo que adotamos, podemos agora passar à aplicação desses movimentos no tema geral que circunscreve toda a obra: no caso, o debate dos direitos humanos, a partir da contradição entre as suas interpretações tradicional e crítica.