• Nenhum resultado encontrado

1. DIREITOS HUMANOS ENTRE A TOTALIZAÇÃO E A CONTRADIÇÃO NA

1.2. OS DIREITOS HUMANOS ENTRE SUAS FUNDAMENTAÇÕES TRADICIONAL E

1.2.3. Direitos Humanos, neoliberalismo e movimentos populares

Esse resgate que realizamos acerca das concepções possíveis da noção de direitos humanos demonstra que estamos a lidar com um objeto dotado de uma ambivalência: pode ser empregado tanto para justificar a dominação quanto a libertação, tanto a práxis dos oprimidos quanto os desmandos dos opressores76. Em outras palavras, a retórica dos direitos pode ser (e geralmente é) usada por qualquer um desses dois lados77.

construção da distinção social e do estabelecimento de relações hierárquicas. Essa dinâmica manifesta-se mesmo em situações à primeira vista irrelevantes, como o gosto por certas comidas ou certos tipos de esportes (BOURDIEU, 2007).

75

Tal como nos rememora Machado (2014, p. 24), “a análise das relações sociais e dos processos sociais nos mais diferentes contextos culturais capaz de não naturalizar a diferença sexual, somente se faz quando se levam em conta as posições distintas dos sujeitos segundo o gênero e sexualidade, interseccionados com classe e raça/etnia”. Assim, mesmo em pesquisas que selecionam um foco de estudos (no nosso caso, enfatizaremos a retirada de direitos ocorrida diante da aprovação da PEC do Congelamento dos Gastos Públicos) faz-se necessário levar em conta os outros marcadores sociais da diferença, como raça, gênero, sexualidade, etc., sob risco de não compreender mesmo o fenômeno recortado escolhido.

76

“Como toda produção humana, deve-se partir da ideia de que Direitos Humanos podem ser uma instância de luta libertadora por uma dignidade que emancipa, como também podem ser um instrumento de dominação que legitima distintas formas de exclusão e inferiorização humanas, e aí está seu duplo efeito, encantador e de desencanto” (SÁNCHEZ RUBIO, 2014, p. 15). Ou seja, “Temos, pois, de ter em mente que o mesmo discurso de direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas contrarrevolucionárias. Hoje, nem podemos saber com certeza se os direitos humanos do presente são uma herança das revoluções modernas ou das ruínas dessas revoluções. Se têm por detrás de si uma energia revolucionária de emancipação ou uma energia contrarrevolucionária.” (SOUSA SANTOS, 2014, p. 28).

77

Sobre isso, Cf. MATAMOROS, 2014, p. 155, ARAUJO, 2015, p. 7, ROSILLO MARTÍNEZ, 2011, p. 582, SOUSA SANTOS, 2014, p. 26-28, SOUSA SANTOS, 2018, ELLACURÍA, 1990, p. 148, 151 e 156-157, GANDARA CARBALLIDO, 2013, p. 128-129 e HINKELAMMERT, 2014, p. 126-128..

O cenário com o qual nos deparamos ao examinar a sociedade brasileira contemporânea não é diferente: tanto as pautas neoliberais (encampadas pela frente estatal- empresarial) quanto as pautas populares (trazidas à tona por movimentos de resistência às medidas de austeridade) não deixam de recorrer a essa retórica. Por certo, todo esse debate exige uma série de precisões conceituais78, mas, por enquanto, temos de nos limitar a apresentar o que os teóricos dos direitos humanos têm abordado acerca das relações de seu objeto com as duas frentes desse conflito: o neoliberalismo, de um lado, e os movimentos populares, de outro. No decorrer do presente trabalho, só poderemos aprofundar nossas reflexões em torno da primeira dinâmica. Todavia, essa contextualização é importante para saber que lidamos com uma disputa relacional entre diferentes concepções de direitos humanos, atravessadas por diferentes projetos de hegemonia.

Assim, o neoliberalismo geralmente é lido pela crítica como uma nova etapa global marcada pelo Estado mínimo – uma “liquidação do Estado-providência” (AVELÃS NUNES, 2003, p. 455) e de todos os valores inspirados no legado da cultura social e democrática consolidada na oposição ao nazi-fascismo (FARIÑAS DULCE, 2014, p. 85) –, ultravalorização do mercado como único regulador social, privatização dos bens e serviços públicos e priorização das liberdades individuais (em especial, direito de propriedade e de celebração de contratos79) em detrimento dos direitos sociais, econômicos e culturais (HERRERA FLORES, 2005b, p. 139). Portanto, é muito comum que diversos autores80 considerem o projeto neoliberal “um grande ataque contra tudo que poderíamos chamar de direitos humanos da vida humana”, que pretende criar uma sociedade “que tem somente direitos do mercado” (HINKELAMMERT, 2016, p. 7, 12-13).

No entanto, o neoliberalismo não abdica do uso da retórica dos direitos: inclusive, Douzinas (2013, p. 51) julga que não é mera coincidência a hegemonia neoliberal (forjada durante um processo de globalização e de incremento da biopolítica e dos dispositivos de disciplinamento e de controle) ser contemporânea da época em que os direitos humanos tornam-se mainstream81, ou a ideologia do fim das ideologias. Esse processo dependeu, no fim das contas, também de uma disseminação da ideia dos direitos humanos como liberdade em sentido negativo (não interferência do Estado), que os tornaram o companheiro perfeito

78

Abordaremos o conceito de movimentos populares no ponto 1.3.1. e o de neoliberalismo no ponto 2.1.1.

79

Cf. HINKELAMMERT, 2016, p. 9, HINKELAMMERT, 2017a, p. 163, em sua síntese do pensamento de Hayek.

80

Entre outros, Cf. HINKELAMMERT, 2017a, DORNELLES, 2017, p. 156, HERRERA FLORES, 2005b, p. 141, HERRERA FLORES, 2008, AVELÃS NUNES, 2003.

81

Ou, em termos mais sóbrios, poderíamos dizer que há uma “hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana” (SOUSA SANTOS, 2014, p. 20).

para o neoliberalismo82 (DOUZINAS, 2013, p. 57), apesar de seus postulados poderem servir para questionar essa mesma realidade83. Eis aí a natureza paradoxal dos direitos humanos (DOUZINAS, 2013, p. 58-59).

Como já vimos no ponto anterior, também é comum que o pensamento crítico veja os movimentos populares e as lutas sociais como “protagonistas ao longo da história na construção dos próprios Direitos Humanos” (COELHO; TROMBINI, 2016, p. 187). Por isso, a práxis de resistência às reformas neoliberais pode ser considerada um importante exemplo para nosso campo de estudo84, que fica de indicação como possível análise a ser realizada no futuro. Mais que isso, poderíamos dizer que esse conflito entre projetos escancara a relevância e a urgência da discussão que pretendemos fazer sobre as concepções de direitos humanos, uma vez que não se trata de meras querelas entre Bobbio, Grotius e Herrera Flores, mas sim de lutas reais e encarniçadas entre movimentos reais – de espoliadores contra espoliados, opressores contra oprimidos –, cuja atuação pode contribuir decisivamente nos rumos que serão tomados por nossa sociedade.

Nesse sentido, desvelar a noção de direitos tomada pela frente estatal-empresarial85 é uma tarefa relevante para entender o cenário atual brasileiro e, por outro lado, para trazer exemplos concretos de estudo e aplicação das teorias dos direitos humanos. Portanto, a ambivalência dos usos do direito, que, por sua vez, cristalizam-se em concepções de direitos das pessoas, serve-nos de indício primeiro para a construção de nossa análise. Todavia, antes de realizar essa empreitada, precisamos, nos próximos pontos, delimitar com mais esmero as categorias que empregamos neste itinerário, de modo a destacar a noção de movimentos sociais (incluindo aí também, a partir de seu aspecto formal, as mobilizações de grupos espoliadores e a sua formação como classe), bem como nosso entendimento de ideologia (visão de mundo) e de projetos de hegemonia.

82

“Similarly, human rights and their dissemination are not simply the result of the liberal or charitable disposition of the West. The predominantly negative meaning of freedom as the absence of external constraints – a euphemism for keeping state regulation of the economy at a minimum – has dominated the Western conception of human rights and turned them into the perfect companion of neo-liberalism. Global moral and civic rules are the necessary companion of the globalization of economic production and consumption, of the completion of world capitalism that follows neo-liberal dogmas” (DOUZINAS, 2013, p. 57).

83

Para outra reflexão nesse tom, Cf. HERRERA FLORES, 2005b, p. 92.

84 “Qualquer manifestação popular frente a qualquer manifestação de poder que restringe e sufoca algum aspecto

da dignidade humana em permanente processo de construção foi e pode ser um foco importante que tenha algo a acrescentar à ideia de direitos humanos, principalmente se sua lógica de ação tem o propósito de estender solidariedades, simetrias e horizontalidades” (SÁNCHEZ RUBIO, 2010, p. 54, tradução nossa).

85