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1. DIREITOS HUMANOS ENTRE A TOTALIZAÇÃO E A CONTRADIÇÃO NA

1.2. OS DIREITOS HUMANOS ENTRE SUAS FUNDAMENTAÇÕES TRADICIONAL E

1.2.1. Direitos Humanos entre o jusnaturalismo e o juspositivismo institucionalista

A leitura tradicional da história dos direitos humanos é profundamente conectada a uma forma ocidental, moderno-colonial e eurocêntrica de pensar a realidade (ROSILLO MARTÍNEZ, 2011), a partir de uma proposta ineditamente universal de gestão da vida e das garantias de populações de todo o globo46. Nela, são enfatizadas Constituições e declarações de independência ou de direitos fundamentais gestadas na Inglaterra, Estados Unidos e França, em momentos que consolidaram a hegemonia burguesa em seus países.

Em um primeiro momento, esses textos adotavam um jusnaturalismo antropológico, que pretendia, a partir de uma reconstrução racional da “natureza humana”, apenas declarar47 verdades autoevidentes (como a de que “todos os seres humanos nascem iguais, livres e

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Em Sousa Santos (2014, p. 38), essa leitura recebe a denominação de pensamento convencional dos direitos

humanos e, como sua principal característica, “tende a aplicar genericamente a mesma receita abstrata dos

direitos humanos, esperando, dessa forma, que a natureza das ideologias alternativas e universos simbólicos sejam reduzidos a especificidades locais sem nenhum impacto no cânone universal dos direitos humanos.”

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Para uma exposição mais cuidadosa acerca da noção de movimentos sociais, Cf. o ponto 1.3.1.

46 Para uma discussão acerca das contradições entre o universalismo do discurso tradicional dos direitos

humanos e o relativismo cultural afirmado por pensadores ligados à antropologia, Cf. RAMOS, 2011, p. 77-79. Como elementos que tentam superar essa contradição de modo a ultrapassar os dois pontos dessa dicotomia universalismo-relativismo, podemos citar o pluralismo histórico defendido por Segato (2012), o universalismo de chegada postulado por Herrera Flores (2009) e o pluralismo de confluência reivindicado por Sánchez Rubio (2014). Para um diálogo teórico entre as duas primeiras propostas, Cf. ARAUJO, 2015, p. 169-183.

47 Como demonstra Lynn Hunt, os redatores dessas declarações viam os direitos “como se fossem óbvios e não

necessitassem de justificação ou definição; eles eram em outras palavras auto-evidentes” (HUNT, 2007, tradução nossa). Ainda sobre o aspecto declaratório e sua vinculação com uma ideia de inerência à natureza humana, Cf. PANIKKAR, 1982, p. 81.

proprietários” [CARVALHO NETO; SCOTTI, 2011, p. 7]), indisponíveis e imutáveis acerca dos direitos do homem, que, por sua vez, são garantidas pelo mero fato dessas pessoas terem nascido48. Logo, lidamos com essências metafísicas que devem ser descobertas pela humanidade racional (GALLARDO, 2008).

Ora, tal visão lê a humanidade a partir de um “transcendentalismo fundamentalista” que transforma o ser humano concreto em “um homem universal metafísico (o homem como valor em si mesmo e criação original)”. Isso, no fim das contas, tenta esconder os contextos sócio-históricos da noção de direitos humanos e afasta-nos da “experiência de humanização que se realiza na história, como emancipação consciente inscrita na práxis libertária” (COSTA; SOUSA JUNIOR, 2009, p. 18). Em outras palavras, adota-se uma “normatividade absoluta abstrata, independente de toda circunstância histórica” (ELLACURÍA, 1990, p. 149). No entanto, o debate acerca dos direitos humanos, em seu recorte tradicional, também pode ser feito a partir de uma visão positivista do direito49, ou mesmo desde uma intrincada combinação das duas tradições50, que, no fim, são complementares na tarefa de diluição do poder contestatório implícito nos direitos humanos. No juspositivismo institucionalista, passam-se a se priorizar as normas de direito internacional, gestadas no sistema ONU – interpretadas, inclusive, sem acesso a seu contexto de lutas e conflitos51 –, como fonte por excelência dessa área de estudos e como argumentos primordiais na exigibilidade de qualquer forma de direito, desde que ratificada por alguma entidade estatal soberana52. Nesse caso, os direitos humanos se resumem a normas que podem ser ativadas e reivindicadas pelos indivíduos contra o Estado, fomentando uma visão individualista e pós-violatória da garantia

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Para mais detalhes, Cf. LYRA FILHO, 1982, p. 24, HUNT, 2007, CARVALHO NETO; SCOTTI, 2011, p. 7, GALLARDO, 2008, SOUSA SANTOS, 2014, p. 34.

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Ora, se o juspositivismo toma apenas as normas positivadas pelo estado como todo o direito, ele também toma apenas as declarações e tratados internacionais entre estados-nação como todos os direitos humanos. Em ambos os casos há uma deturpação que “faz de um incidente, sem dúvida relevante, mas parcial, a imagem da totalidade do fenômeno jurídico” (LYRA FILHO, 1980, p. 19). Daqui emerge um projeto que almeja pensar o direito e os direitos humanos de forma técnica e asséptica, a partir de um objeto meticulosamente recortado, com a pretensão de separá-lo dos outros saberes e construir uma gaveta disciplinar que permita a construção de uma ciência neutra e pura, dissociada de toda forma de contexto (COSTA; SOUSA JUNIOR, 2009, p. 22).

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Provavelmente o exemplo mais nítido disso é a conceituação de Nikken (1994), que pretende conciliar duas proposições: 1) os direitos humanos são direitos inerentes à pessoa humana (tradição jusnaturalista); e 2) eles se afirmam fazendo exigências ao poder público, que é a única subjetividade que poderia ser cobrada diretamente pelo cumprimento de direitos humanos (tradição juspositivista).

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Para um contexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, Cf. PINTO; COSTA, 2014, p. 7, QUINTANA, 1999, p. 35, 49.

52 “Y de acuerdo al modo de entender el Derecho la modernidad, los derechos humanos pueden ser exigidos, y

son justiciables, esto es, materia de protección por los sistemas estatales de justicia, si y sólo si, están reconocidos en las normas producidas por las formas preestablecidas en las leyes de esos propios Estados” (RANGEL, 2013, p. 131-132).

de direitos53. Aqui, o transcendentalismo continua a partir de uma leitura da história dos direitos humanos como um constante processo de positivação54, o que culmina numa concepção que, mais uma vez, deixa de perscrutar as origens sócio-históricas dos direitos, dando a eles uma roupagem universal e imutável, dentro de uma visão unilinear de progresso. A principal expressão dessa forma de ler nosso objeto é a noção de gerações de

direitos humanos. Segundo esta, os direitos humanos surgiriam a partir de demandas

específicas, seguindo uma linearidade histórica cujo início deu-se com os direitos civis e políticos (primeira geração), passou pelos direitos econômicos, sociais e culturais (segunda geração) e chegou atualmente aos direitos difusos, ao desenvolvimento, à paz, a um meio- ambiente equilibrado, etc. Todos esses elementos, de algum modo, podem ser subsumidos dentro das palavras de ordem da Revolução Francesa: liberdade, para a primeira geração; igualdade, para a segunda; e fraternidade, para a terceira (PIOVESAN, 1999, p. 91-92). Muitos autores têm a tendência de, além disso, pressupor que cada geração deve necessariamente suceder uma a outra: em outras palavras, que é necessário antes garantir os direitos de primeira geração para, só então, tornar-se possível a garantia dos outros elementos – como veremos, um procedimento semelhante será usado pela equipe econômica do governo federal na defesa da PEC 55/241. Logo, haveria uma sucessão lógica entre cada um desses conjuntos55, que, por sua vez, culminaria na priorização dos direitos civis e políticos (trocas livres mercantis e acordos de vontade sem interferência do Estado). Assim, “as gerações se assumem como um modelo histórico racional e linear, no qual alguns direitos apenas complementam os anteriores” (ROSILLO MARTÍNEZ, 2011, p. 575).

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Um texto que expressa exatamente essa leitura é o de Nikken (1994, p. 27). Para uma crítica, Cf. PANIKKAR, 1982, p. 81-82.

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Norberto Bobbio, por exemplo, vê três etapas iniciais de materialização e efetividade: uma primeira, quando os direitos não eram mais do que uma teoria filosófica; uma segunda, marcada pela positivação em estados nacionais (como, por exemplo, as declarações francesas, inglesas e estadunidenses); e, por fim, uma terceira, inaugurada a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que consiste na positivação internacional de direitos (BOBBIO, 2004, p. 18-19, GALLARDO, 2008, ALAPANIAN, 2006, p. 359-360).

55 Esse argumento é levantado por T. H. Marshall, que divide a cidadania em três partes: a) em elemento civil

(direitos para a liberdade individual, que tem como principais instituições as cortes de justiça); b) em elemento político (direito de participar no exercício do poder político por meio do parlamento e dos conselhos de governo local); e c) em elemento social (direitos a uma existência mínima, cujas instituições mais importantes são o sistema educacional e os serviços sociais). Analisando a história inglesa, busca demonstrar como houve uma sobreposição [overlap] desses direitos e como cada um levou ao outro, em uma sucessão que não era meramente cronológica, mas também lógica (CARVALHO, 2002, p. 10-11). Assim, os direitos civis estabilizaram-se durante o século XVIII, enquanto os políticos realizaram-se no século XIX e os sociais, no século XX (MARSHALL, 1950, p. 10-11, 14 e 20-21). Desse modo, “para Marshall, os Direitos Humanos encontram-se sempre num crescendo, num processo de reconhecimento que amplia, universaliza, diversifica e especifica esses direitos” (ALAPANIAN, 2016, p. 357).