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1. DIREITOS HUMANOS ENTRE A TOTALIZAÇÃO E A CONTRADIÇÃO NA

1.2. OS DIREITOS HUMANOS ENTRE SUAS FUNDAMENTAÇÕES TRADICIONAL E

1.2.2. A luta por dignidade: fundamentação crítica dos Direitos Humanos

Por sua vez, a concepção crítica dos direitos humanos não os fundamenta nem a partir de critérios eternos, abstratos e imutáveis56, nem a partir dos institucionalismos e positivismos de toda sorte, de modo a buscar uma síntese que supere esses dois lados da mesma moeda57:

“Direitos humanos” são mais do que as normas que os reconhecem nacional ou internacionalmente, e são menos que as propostas idealistas que repetem que haveria uma esfera moral externa aos seres humanos. Contudo, e à parte outras considerações que exporemos adiante, falar de direitos humanos implica afrontar diretamente esse dualismo castrante que divide ideologicamente o que a própria realidade não pode distinguir (HERRERA FLORES, 2008, p. 44).

Ora, isso implica rechaçar qualquer fundamentação absoluta e a-histórica (como faz o jusnaturalismo) e qualquer redução de nosso objeto à pura institucionalidade (como defende o positivismo): devemos considerar que os direitos humanos constroem-se na “superação do institucional pela própria ação de grupos e organizações da sociedade” (PINTO; COSTA, 2014, p. 6). Apenas assim será possível entender a origem do fenômeno analisado a partir de seus fundamentos reais e das lutas que lhe deram causa, de modo a superar sua diluição em um jargão tecnicista que culmina em um efeito apassivador e desencantatório na ação dos grupos que lutam por direitos em seu sentido mais profundo58.

Cumpre constatar também que a noção de gerações de direitos humanos serve perfeitamente para fomentar essa docilização de nosso objeto, uma vez que constrói externa e artificialmente o tecer da história, de modo a assumir um caminho linear e incontornável, que deve ser adotado por todos os povos. Isso, por certo, expressa um profundo eurocentrismo, que acaba por calar as reivindicações de todos os sujeitos que não cabem no “paletó” social bordado pelo mundo ocidental moderno-colonial (SÁNCHEZ RUBIO, 2010).

Por isso, negamo-nos a ler as lutas dos trabalhadores, dos povos escravizados e colonizados e das mulheres59 como simples questões geracionais que foram ou serão

56 “Nada, nem a justiça, nem a dignidade e muito menos os direitos humanos procedem de essências imutáveis

ou metafísicas que se situem além da ação humana para construir espaços onde [se possa] desenvolver as lutas pela dignidade humana” (HERRERA FLORES, 2008, p. 41-42)

57 Nesse mesmo sentido, mas sobre o fenômeno jurídico, Cf. LYRA FILHO, 1982 e COSTA; SOUSA JUNIOR,

2009.

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Nesse sentido, criticamos a redução dos direitos humanos ao que dizem os “especialistas em direito internacional que constroem um jargão somente compreensível por eles mesmos” (HERRERA FLORES, 2009, p. 19). No mesmo tom, Cf. SOUSA JUNIOR; ESCRIVÃO FILHO, 2016, p. 27.

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Aqui, citamos propositalmente três demandas que, quando levantadas durante a Revolução Francesa, acarretarem na execução de Gracchus Babeuf, Toussaint Louverture e Olympe de Gouges (HINKELAMMERT, 2017a, DIEHL, 2015, p. 95).

gradativamente absorvidas pelo discurso emancipatório de uma geração primeira e pioneira, mas sim como racionalidades radicalmente diferentes, vindas do solo da resistência de homens e mulheres concretos cuja práxis exige a reestruturação de todo um sistema de morte60 (SÁNCHEZ RUBIO, 2010, p. 55, ROSILLO MARTÍNEZ, 2016).

Não à toa, os teóricos críticos costumam se utilizar das teorias da descolonialidade61 para desvendar a vinculação do discurso tradicional com a colonialidade do ser, do poder e do saber62. Poderíamos dizer, no entanto, que, a despeito de sua origem em uma tradição moderna e ocidental63, a retórica dos direitos humanos assume um papel paradoxal, na medida em que, por meio de sua autoproclamação como universal, foi empregada para justificar ideologicamente as expansões coloniais, mas, ao mesmo tempo, também foi utilizada para questionar a globalização das injustiças (HERRERA FLORES, 2005b, p. 34-35, MATAMOROS, 2014, p. 154).

Além disso, o ímpeto descolonial exige substituir o sujeito de direito abstrato64 (sem “os seus rostos, suas existências e sua concretude” [AGUIAR, 2017, p. 5]) por uma ética da vida e do vivo, erigida por sujeitos concretos, dotados de nome e sobrenome (SÁNCHEZ RUBIO, 2014, p. 63), por um “humanismo do sujeito vivente” (HINKELAMMERT, 2017a, p. 158). Logo, sua inclusão não é simples processo de igualação cujo sujeito é o sistema (o

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“Daí que se faz urgente e necessário historicizar os direitos humanos a partir das lutas, dos contextos e das condições particulares de cada grupo e forma de vida sem estar condicionados pela visão geracional que apenas atende a reflexos normativos e institucionais vestidos por um alfaiate que manifesta uma expressão do corpo humano, mas que não é necessariamente a única e nem a que serve para avançar na construção de humanidade” (SÁNCHEZ RUBIO, 2010, p. 55).

61 Sobre a nomenclatura que faz referência aos autores que se aglutinam em torno da temática da

decolonialidade/descolonialidade, adotamos o segundo termo, principalmente pelo fato do primeiro decorrer de um anglicanismo aplicado à língua portuguesa ou espanhola (em ambas, ‘des-fazemos’, ‘des-montamos’ ou ‘des-colonizamos’ algo). Além disso, esse uso nos parece fomentar a visão de que há uma estrutura material (relações sociais concretas) a ser des-construída, o que, ao nosso ver, é positivo na medida em que reitera que as cicatrizes e continuidades coloniais não são meras questões psicológicas que podem ser superadas com uma mudança de mentalidade dos teóricos do Sul Global, apesar de, certamente, essa questão ser de incontornável relevância. Além disso, o sufixo ‘dade’ indica que combatemos um estado e um modo de ser e não se trata, portanto, de um descolonialismo, geralmente muito mais vinculado com a libertação institucional das nações oprimidas da condição jurídico-normativa de colônias. Para outra explicação sobre a adoção do prefixo ‘des’ acerca da descolonialidade, Cf. BITTENCOURT, 2017, p. 27-28, nota 21.

62 Entre vários exemplos, podemos citar ARAÚJO, 2017, DIEHL, 2015, HINKELAMMERT, 2017a, RANGEL,

2006, ROSILLO MARTÍNEZ, 2016, SÁNCHEZ RUBIO, 2014, SEGATO, 2006, ARAUJO, 2015.

63 Nesse sentido, Cf. ARAÚJO, 2017, ROSILLO MARTINEZ, 2016, MATAMOROS, 2014, p. 154,

HERRERA FLORES, 2005, p. 17, 34-35, 142, HERRERA FLORES, 2009, p. 168 e PANIKKAR, 1982, p. 84 e 100.

64 Cumpre lembrar que o sujeito de direito esculpido nas teses tradicionais de direitos humanos assume

contornos muito específicos (um “sujeito de origem europeia, masculino, branco, cristão, heteronormativo, detentor dos meios de produção e sem deficiência” [PIRES, 2016]), que, no entanto, transforma-se na fôrma genérica de toda a humanidade. Não à toa, em um dos tão celebrados eventos fundadores dos direitos humanos, a Revolução Francesa, houve a repressão e a decapitação de lideranças vinculadas às demandas das classes trabalhadoras (Gracchus Babeuf), das mulheres (Olympe de Gouges) e dos povos negros colonizados (Toussaint Louverture) (HINKELAMMERT, 2016, HINKELAMMERT, 2017a e DIEHL, 2015, p. 95).

outro passa a ser lido como igual65), mas sim a transformação da totalidade excludente66 a partir da exterioridade das vítimas (o outro é visto como inequivocamente outro e sua posição lhe permite subverter a ordem instituída67) (ROSILLO MARTÍNEZ, 2016, RANGEL; DE LARA, 2016, p. 712).

Consequentemente, para superar todas essas barreiras, a teoria crítica dos direitos humanos perscruta o fundamento de seu objeto nas lutas sociais pela dignidade, entendidas como um processo dinâmico e concreto, visto que “os direitos humanos não são algo dado e construído de uma vez por todas em 1789 ou em 1948, mas trata-se de processos” (HERRERA FLORES, 2008, p. 61).

Aqui, fazemos referência ao principal nome que levanta as bases de uma teoria crítica dos direitos humanos: Joaquín Herrera Flores, que, a partir de uma inspiração teórica muito ampla68 – é influenciado pela teoria crítica da Escola de Frankfurt até a de Budapeste, pelas teorias feministas, pela crítica cultural69 e por uma ampla gama de autores dentro da filosofia e da literatura70 –, entende os direitos humanos como uma série de processos de luta que buscam a abertura e consolidação de espaços que fomentem a dignidade humana, de modo a entender esta como a distribuição igualitária e não colonizadora de recursos e bens (materiais e imateriais) que garantam a continuidade da vida humana e o mais completo

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Ora, parece-nos que esse processo culmina no que Douzinas descreve como a transformação do outro em um sujeito indefeso, passivo e inferior, que é transformado “em nossa imagem espelhada narcísica e duplo potencial [into our narcissistic mirror-image and potential double]” (DOUZINAS, 2013, p. 54).

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Nesse sentido, compartilhamos da valoração feita por Araujo (2015, p. 8), que reivindica “construir uma proposta teórica que dialoga com os anseios pela formação de uma nova totalidade, conformada não pelo capitalismo, mas pela pluralidade econômica dos povos”. Assim, a afirmação da exterioridade nos permite questionar a totalização de uma totalidade como lógica de dominação e levantar uma 'utopia futura' e um 'sentido de justiça' construído desde a experiência viva e concreta do rosto das vítimas dessa totalidade que deve ser radicalmente transformada (LUDWIG, 2018, p. 1866)

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Com essas considerações é possível, por exemplo, colocar em questão a colonialidade subjacente no pensamento de autores como Jürgen Habermas, que, ao ver os direitos humanos como “o produto de uma improvável síntese” entre moralidade e lei coercitiva, associa o conceito de dignidade a seu elemento abstrato, fundado na igualdade de direitos entre os cidadãos que são incluídos dentro desse sistema (HABERMAS, 2010, p. 470, 472). Como já comentamos anteriormente, há, aqui, uma abstração dos sujeitos concretos e suas demandas, o que subtrai o elemento material subjacente na ideia de dignidade humana levada a cabo, por exemplo, em Herrera Flores (2009, p. 110). Para mais comentários sobre o pensamento de Habermas e a colonialidade, Cf. HERRERA FLORES, 2008, p. 43-44, DIEHL, 2015, p. 118-124, ROSILLO MARTÍNEZ, 2011, p. 571.

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Um interessante indicativo da pluralidade de fontes de Herrera Flores consiste na sua delimitação de Freud, Nietzsche e Marx como três grandes pensadores da heterogeneidade (HERRERA FLORES, 2005b, p. 50).

69 Essas influências são apontadas principalmente por Gandara Carballido (2013, p. 141-142).

70 Não custa lembrar que, em um de seus primeiros trabalhos, Herrera Flores (1989, p. 52) já defendia a

importância da filosofia e da arte no trabalho de fundamentação dos direitos humanos. Esse tom se manterá em todas as suas obras, que sempre foram lastreadas por uma grande extensão de referências literárias e filosóficas, sempre conectadas de maneira criativa e um tanto heterodoxa.

desenvolvimento de todas as suas potencialidades71, com ênfase na capacidade das pessoas de fazer e desfazer mundos72.

Isso, como bem se nota, não se dá fora de contextos concretos e de conjunturas políticas específicas. Por isso, Herrera Flores é enfático ao considerar os direitos humanos como produtos culturais antagônicos às relações capitalistas (HERRERA FLORES, 2009, p. 110) e ao asseverar que sua teoria é marcada por um “compromisso com uma ideia de direitos humanos concebida a partir da perspectiva das classes oprimidas, dos excluídos e das lutas [...]” (HERRERA FLORES, 2009, p. 135). Logo, seu pensamento integra as teorias que pensam o direito e os direitos humanos a partir de conflitos entre povos em libertação e imperialistas, classes espoliadas e espoliadoras, grupos oprimidos e opressores (LYRA FILHO, 1980, p. 13-20, LYRA FILHO, 2006, p. 82-93) e, consequentemente, falar de direitos humanos não é mera questão técnica, redistributiva ou de aplicação, mas implica falar de relações de poder, de opressão e de exploração (HERRERA FLORES, 2005b, p. 41). Implica, especialmente, abrir os olhos para captar a práxis daqueles grupos e movimentos sociais que, frente à situação de opressão e ao circuito cultural hegemônico, reagem antagonicamente a essas estruturas, de modo a fomentar uma luta por dignidade que supere as limitações do

conatus humano, isto é, da capacidade humana de fazer e desfazer mundos (HERRERA

FLORES, 2009, p. 69, HERRERA FLORES, 2008, p. 61, HERRERA FLORES, 2005b, p. 24-25).

Ora, toda essa discussão nos aproxima da questão da opressão e dominação. Devemos, no entanto, evitar essencialismos (visto que não há um sujeito revolucionário a priori e não há nenhuma demanda de libertação em essência mais importante que as outras73) e reducionismos de tom economicista (porque a disputa também se dá por bens imateriais74) na

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“Os direitos humanos, em sua integralidade (direitos humanos) e em sua imanência (trama de relações), podem ser definidos como o conjunto de processos sociais, econômicos, normativos, políticos e culturais que abrem e consolidam – desde o ‘reconhecimento’, a ‘transferência de poder’ e a ‘mediação jurídica’ – espaços de luta pela singular concepção da dignidade humana” (HERRERA FLORES, 2008, p. 61). “Os direitos humanos são o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o empoderamento de todas e de todos para lutar plural e diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida” (HERRERA FLORES, 2009, p. 109).

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De acordo com Herrera Flores (2005a, p. 17), o mais precioso do humano “consiste em um contínuo processo de ‘reação’ frente às realidades em que se vive. [...] O que precisamente nos caracteriza como seres humanos é a luta constante contra os processos ideológicos que, ao longo da história, e de mil maneiras – muitas delas inconcebíveis para uma mente sã –, têm bloqueado a capacidade humana genérica de agir e de fazer no mundo”.

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Sobre isso, remetemos o leitor ao final do ponto 1.1.3., no qual já discutimos essa questão.

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Nesse sentido, Cf. HERRERA FLORES, 2009. No caso, o autor espanhol parece sofrer a influência da tradição da sociologia crítica de Bourdieu, que, ao sair “de uma concepção substancialista de classe para uma noção relacional de posição de classe” (BOURDIEU, 1993, p. 264, tradução nossa), evita simplificar os conflitos sociais como mera disputa de capital econômico, de modo a identificar outros espaços de concorrência, tal como os de capital cultural, simbólico, político, etc. Todos esses elementos atuam conjuntamente no processo de

consideração das lutas sociais. Por isso, o estudo da práxis dos grupos oprimidos (a fonte por excelência de toda teoria crítica dos direitos humanos) exige uma visão radicalmente concreta dos sujeitos e dos contextos em ação, capaz de analisar não apenas os vários planos de dominação, exploração e opressão, mas também a intersecção entre eles75, uma vez que as situações de opressões costumam se tornar uma amálgama que descamba na construção de uma experiência radicalmente inédita (CRENSHAW, 2002).

Enfim, essa apresentação de nossa postura ao fundamentar os direitos servirá para, a seguir, discutir as relações entre direitos humanos, neoliberalismo e movimentos populares, temas que perpassam boa parte de nosso trabalho, uma vez que a aprovação da PEC do Congelamento dos Gastos Públicos foi movida por uma concepção neoliberal de mundo e, por outro lado, a riqueza de toda teoria crítica depende eminentemente de sua capacidade de dialogar e fincar raízes junto aos movimentos populares.