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Contradições e ambiguidades da constituição de uma profissão

INTRODUÇÃO

A farmácia de oficina que constitui o principal sector de actividade farmacêutica constitui igualmente o seu sector original. Ainda hoje, a designação, que permite a sua identificação é tributária de um passado não muito distante em que o estabelecimento farmacêutico era literalmente uma oficina de produção de medicamentos. Tal preparação seria reconhecida durante séculos como exclusiva dos boticários, conferindo-lhes uma posição intermédia entre as "artes mecânicas" e as "artes liberais".

Ao reconhecimento e ao exercício desta competência, em torno da produção oficinal dos medicamentos, a partir do século XIX, mercê do desenvolvimento da ciência química, veio a associar-se a componente químico- analítica. Através desta os farmacêuticos grangearam uma imagem pública como "homens de ciência", e a farmácia o estatuto de saber científico nomeadamente ao serviço de um conceito higienista de saúde pública.

Deste facto é sintomática a criação da Sociedade Farmacêutica Lusitana, constituindo um dos momentos altos do processo de consolidação do seu estatuto como "homens de ciência". Aliam-se repercussões externas - no que se refere à sua identidade como grupo profissional, como seja a produção de uma imagem enquanto farmacêuticos (por oposição aos boticários) - e ainda, repercussões internas, em ordem à consolidação "para si" da nova identidade e da necessária coesão moral que tal acarretava. Este processo que, como vimos, é designado em alguma historiografia farmacêutica por elevação, fez-se acompanhar de mudanças no sistema de formação, pela supressão do ensino oficinal e pela consagração da escolarização do ensino farmacêutico como ensino superior.

Entretanto, e em consequência do desenvolvimento laboratorial da ciência química, são os farmacêuticos confrontados com uma mudança sem precedentes, que veio, a condicionar, até aos nossos dias, a sua identidade como profissionais, o seu exercício, e o seu reconhecimento social no quadro das profissões. Estamos a referir-nos à produção industrial de medicamentos, as chamadas especialidades farmacêuticas que, preparadas fora da oficina em

contexto industrial, vieram colocar sob reserva a especificidade da competência farmacêutica e, consequentemente, a admitir a sua dispensabilidade social.

O fenómeno da desoficionalização do exercício ameaçou toda uma arquitectura farmacêutica a construir-se em prol de um estatuto profissional, cujos alicerces eram a competência exclusiva da preparação medicamentosa e cujas traves mestras eram o recém-criado ensino universitário. Assim, ao longo da primeira metade do século XX, vamos assistir a uma luta desesperada deste grupo pela sua consagração e sobrevivência profissional, feita de ofensivas em várias frentes: face ao Estado, fonte de toda a legitimação; face aos médicos, a quem reconhecidamente está atribuído o poder de prescrever; e face à própria classe, cujo comportamento em exercício nada ficaria a dever, por vezes, ao dos seus opositores mais temidos, os droguistas.

C a p i t u l o 1

SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES E PROFISSIONALIZAÇÃO FARMACÊUTICA

Nesta segunda parte que agora se inicia, percorreremos um caminho com os farmacêuticos, procurando fazer atravessar o seu discurso por uma interrogação sociológica que desvende o seu processo de reivindicação profissional, procurando explicar como é que este grupo obteve do Estado o reconhecimento legal dos seus privilégios ocupacionais, garantindo para os seus titulares um controlo sobre a sua ocupação, mediante um fechamento social da sua actividade e com uma posição de vantagem no mercado, através da consagração do regime de monopólio da actividade e da propriedade farmacêutica. Com esta abordagem, procuraremos contrariar o paradigma funcionalista liberal que autonomiza as profissões, e parte do princípio de que estas, pelas suas características, são o "facto que explica", adoptando, em alternativa, uma perspectiva epistemológica que considere o facto profissional como o "facto a explicar", e que relativize a sua autonomização como objecto, mediante uma interrogação sociológica que perscrute os fundamentos do facto profissional, e que permita compreender por que razão determinados grupos ocupacionais, nomeadamente os farmacêuticos, reclamam esse estatuto.

No seu estudo sobre a Medicina, Eliot Freidson (1978) define-a como uma p r o f i s s ã o1 7 3. A particularidade do estatuto na divisão do trabalho que a

medicina partilha com outras profissões, advém-lhes, segundo este autor, do facto de se apresentarem como "construtoras de realidade social", em virtude de contribuírem para definições de realidade que não são redutíveis às dos sujeitos que as experienciam. Esta propriedade advém-lhes de instituírem como factor da sua existência uma cisão entre dois mundos: o "mundo profano", em que habitam todos aqueles que não ascendem ao conhecimento

1 / 3 "(•••) Convém considerar a profissão como uma ocupação que tenha assumido uma posição predominante na divisão do trabalho, de tal modo que detém um controlo sobre a determinação da essência do seu próprio trabalho (...) [sendo] autónoma e independente (...) pela convincente promessa da integridade dos seus membros (...) [assente] tanto na adesão a um código ético como na prática científica" (Freidson, 1978: 15).

"profissional", e o "mundo sábio", no qual habitam os que o possuem (idem: 15).

A instituição da distância conceptual entre os dois mundos, a afirmação das relações de supremacia do mundo sábio sobre o profano, integrante da retórica e do facto profissional, é herdeira da crença mais geral que suporta o facto religioso, repousando este incondicionalmente na separação entre o sagrado e o profano1 7 4. No caso da Medicina a pertença ao mundo sábio que

lhe confere autonomia, independência, e lhe outorga uma competência exclusiva na definição da realidade médica, como sejam as definições de saúde e de doença. Estas ultrapassam o âmbito dos indivíduos concretos e circunscrevem a realidade sanitária mais geral, vindo a formalizar-se na definição de políticas reguladoras da vida social.

Os atributos profissionais que conferem à medicina "um status verdadeiramente profissional"(idem: 29), segundo E. Freidson, forjaram-se no Ocidente a partir de um processo transformação em que aquela passou de profissão "erudita", a profissão de "consulta". O estatuto de "profissão erudita" reporta-se ao contexto da sociedade medieval em que o resultado empiricamente demonstrável do trabalho da Medicina (idem: 29) não era relevante para determinar a sua posição social como "curadora" legítima, bastando-lhe a legitimação concedida pela Universidade e o poder de que foi instituída sobre as outras ocupações na área sanitária, sendo muito restrito, em termos sociais, o alcance do seu exercício como curadora. Por seu lado, a sua constituição como profissão de consulta, a partir de finais do século XIX, obrigou ao desenvolvimento de uma real competência, d e p e n d e n t e da capacidade demonstrada de solucionar problemas práticos com exclusão potencial de outros "curadores". Nesta asserção, as profissões de consulta distinguem-se das profissões eruditas pelo facto de que a sua existência social decorre da prestação de um serviço e da resolução satisfatória de "problemas práticos", estando condicionadas, como diz o autor, "pela prova da solução"

l'^Robert Damien e Pierre Tripier (1994: 240) reportam a conceptualização desta distinção a Durkheim e à sua obra Formas Elementares da Vida Religiosa. Referem que na origem desta representação de dois mundos distintos está o exemplo dos anacoretas que atingiam contacto com o mundo sagrado por afastamento do mundo profano. Nesta ordem de ideias, podemos sugerir que, à semelhança do conhecimento sagrado, o carácter sábio dos profissionais resulta dos longos anos de estudos supostos pela formação académica, cujo significado, neste contexto, corresponde a uma ressocialização em ordem à transformação da sua experiência profana em conhecimento sábio.

(idem: 38) sendo esta geradora da adesão voluntária da população e do reconhecimento social dos serviços que prestam.

Na mesma linha, reflectindo sobre as modernas profissões, M. S. Larson (1977) enfatiza os seus antecedentes pré-industriais, acentuando ainda a estratificação social em que se apoiavam. Distingue para o passado, o que chama "as profissões eruditas" e os "profissionais comunitários". As primeiras ancoravam-se no apoio das elites, circunscreviam a este grupo os seus serviços, e o seu saber era confirmado por instituições académicas. Por estas razões, os seus profissionais habitavam num mundo distinto, sem que necessariamente precisassem de ver publicamente confirmada a sua competência prática. Pelo contrário, as actividades manuais (comerciantes e artesãos) viam o seu saber confirmado por práticas de socialização não académicas e confrontada a sua utilidade social com a realização material que lhes conferia visibilidade a uma outra escala. Assim sendo, a autora considera que dois aspectos do passado pré- i n d u s t r i a l p e r m i t e m identificar u m a " c o n t i n u i d a d e da forma e descontinuidades da substância entre as profissões modernas e tradicionais" (idem: 3).

A continuidade da forma evidencia-se num efeito de representação, que persiste na atribuição de um carácter elitista ao saber e às práticas de aprendizagem universitárias, vindo conferir um estatuto sócio-profissional superior às actividades dele decorrentes. A descontinuidade de substância traduz-se no "triunfo de uma nova concepção de profissionalismo" (idem: 4) que supõe uma utilização do ensino e da certificação, cujos efeitos estão para além da posição social na aquisição e nos destinatários da acção profissional, obrigando a um trabalho de convencimento universal da competência profissional. Assim, para que uma ocupação ascenda à categoria de profissão, o que supõe a obtenção de um determinado estatuto, precisa de produzir simbolicamente e na prática, o convencimento social da exclusividade da sua competência nessa área. Este convencimento da competência assenta numa retórica cujos argumentos maiores aliam a ciência à prestação de um serviço à h u m a n i d a d e .

Estas abordagens sociológicas, de inspiração Weberiana, concorrem, segundo Giles Dussault (1988), para explicar a emergência das profissões ou a profissionalização das ocupações, enfatizando os processos sócio-políticos de legitimação e de racionalização promovidos pelos grupos concorrentes em

ordem à institucionalização dos seus interesses particulares no seio da divisão do trabalho. Nesta perspectiva, a divisão e organização do trabalho sanitário aparece como uma "ordem negociada" (idem: 134) entre os diferentes protagonistas em determinadas condições históricas. Assim, os processos de fechamento social através do qual um grupo obtém a reserva do mercado para um grupo restrito de pessoas, incluem a exclusão real e potencial de outros, nomeadamente através da exigência de um diploma de acesso. Para completar este fechamento é necessária a produção de um discurso credível para convencer o poder público e neutralizar a oposição de outros grupos profissionais concorrentes. Tornando-se legítimas, as pretensões relativas de um grupo ocultam quer a sua arbitrariedade como os interesses particulares a que respondem. A instituição de condições de acesso à formação centradas na escolaridade contribui para o efeito legitimador pelo seu carácter racional, por oposição a qualquer outra influência social arbitrária pré-racional. Uma vez adquirido o fechamento profissional, este beneficia de uma existência legal, conferindo vantagens aos seus membros e tende à sua institucionalização, tornando-se "natural".

Interrogando-se sobre o que é uma profissão e na esteira dos trabalhos de Carr-Saunders e Wilson, Parsons, Good, Merton e outros, a teoria funcionalista construiu um modelo explicativo segundo o qual as profissões se afirmam como factos naturais, que se legitimam pelas suas funções ao nível da integração e controlo social, para as quais concorrem de forma autorizada. Em consequência, os pressupostos definidores do conceito de profissão alcançam um poder explicativo que, pela sua correspondência com a realidade, se tornam objectivos, não carecendo de qualquer ulterior interrogação. Aqueles pressupostos, segundo Dubar (1997: 129-130), estão presentes na definição da relação profissional (tal como Parsons a teorizou para a relação terapêutica médico-doente) e dizem respeito à afirmação de um estatuto profissional resultante de um saber, que articula uma dupla competência, o saber científico e prático; uma competência especializada socialmente reconhecida que, em simultâneo, limita a actuação ao domínio legítimo a actividade; e um ideal de

serviço, baseado no desinteresse do profissional e na neutralidade afectiva

perante o doente1 7 5.

A perspectiva que reitera o facto profissional na base de atributos que não são mais do que generalizações empíricas (Gyarmati, 1975: 675), submete os factos empíricos a u m trabalho teórico cuja finalidade é aferir o grau de conformidade das diversas ocupações com o modelo, mediante a utilização de critérios exteriores (Paradeise: 1988), do qual resultam aferições de consistência profissional em termos de profissão, semi-profissão, quase-profissão, não profissão, conforme apresentem maior ou menor distância do modelo (Rodrigues, 1997: 7).

Outra perspectiva é enfatizada por um conjunto de autores. G. Gyarmati (idem: 673) considera que as profissões liberais gozam de u m "sistema de mandarinato" que lhes confere duas características, que as distinguem de todas as outras: uma reivindicação de autonomia (o direito de organizar e de regulamentar as suas actividades) e um monopólio profissional (que se traduz numa faculdade jurídica de impedir toda a pessoa que não é oficialmente acreditada como membro da profissão de exercer concorrência). Em suma, reivindicam a circunscrição de um domínio de competência exclusiva. Estas duas características conferem-lhes um enorme poder no quadro da divisão social do trabalho. Para este autor, na teoria das profissões, o que se apresenta como factos empíricos não passa de definições à priori, elementos de uma teoria central em que alguns se constituem como postulados (contrariamente a constatações empíricas) e outros como corolários dos postulados. Daí que o autor prefira a designação "doutrina das profissões".

l ' ^ P a r s o n s sintetiza o contributo de Durkheim e de Weber para o paradigma da relação terapêutica que, generaliza a todas as profissões: o doente como dependente do médico, não pode curar-se sozinho. O médico pode ajudá-lo por via da sua competência; esta corresponde a uma dupla perícia (expertise), a ciência e a técnica, ou seja ciência aplicada. A medicina exerce um poder sobre o doente cuja dependência é dupla: por via da sua incompetência e da necessidade do recurso a agentes exteriores a si. Como se trata de uma relação de poder, existe o risco de exploração do doente. A deontologia médica desta relação bilateral torna-se compreensível e institucionaliza, entre ambos, uma relação de desigual distribuição de competências. O papel do médico pauta-se por atitudes que combinam interesse e desprendimento. Não obedece ao primado do lucro, o médico não escolhe os clientes em função das suas capacidades contributivas e não os pode abandonar em risco, sob o argumento que não podem pagar. Possui alguma autonomia perante autoridades públicas e hierárquicas (o segredo profissional). (R. Boudon e F. Bourricaud, 1999: 471).

Em seu entender (idem: 687), esta doutrina decorre directamente de três postulados fundamentais da ideologia elitista da sociedade: "a teoria da conjugação de interesses", segundo a qual não é incompatível a procura do interesse geral com a prossecução de interesses particulares; "a teoria da competição", que postula que é o mercado quem decide e quem presta os serviços em função da qualidade e isenção com que são prestados, obviando assim a constituição de uma tirania das elites; e, finalmente, "a teoria da igualdade de oportunidades e do mérito" como condição para o acesso às profissões.

É verdade que a afirmação de determinadas classes sociais em torno do modelo profissional salienta a correspondência deste com o modelo burguês1 7 6

assente num sistema de legitimação. Este, a nível individual, remete para a noção de mérito e, a nível social, para sistemas centrados na racionalidade, ou seja, na competência e no saber, objectivando os fundamentos da sua superioridade como estando inscritos na ordem objectiva e não em qualquer arbitrário social como no passado, em que os privilégios profissionais dependiam da origem social dos destinatários da acção dos profissionais.

Para o autor que estamos a citar (idem: 688) a Universidade tem, neste contexto, um papel estratégico muito importante, quer como agência de legitimação individual, aferidora do mérito (função de eliminação e qualificação), quer como agência de legitimação colectiva, enquanto proprietária do saber fundamento das profissões e consequentemente como instância de reconhecimento da formação. Esta função de eliminação e qualificação permite a criação de um corpo homogéneo de um ponto de vista sócio-cultural e ideológico, sem a qual seria difícil a profissão constituir-se "em corpo em si e para si". Esta homogeneidade é produzida n u m contexto de socialização profissional a partir da submissão a um sistema de formação uniforme do ponto de vista técnico-científico, cuja eficácia se decide ainda antecipadamente, pela existência de barreiras económicas e culturais inerentes à obtenção das condições que presidem ao recrutamento universitário e à manutenção da sua frequência.

Igualmente, Chapoulie (1973) procede a um exame crítico das teorias que procuram sustentar os grupos profissionais, e que conduzem a estudá-los "em

176rje u m a m an e i r a geral, é salientada a afinidade do modelo profissional com a classe média. Veja-se por exemplo a obra de Magali Sarfatti Larson (1977) e a obra de Geoff Esland (1976).

si" e não como elementos da estrutura social. Nomeadamente ao nível do saber e da sua relação de causalidade com a profissionalização, este autor salienta a necessidade, teórica e empírica, de proceder à sua inversão. "Por analogia com a interrogação Weberiana sobre a história das religiões, é preciso estudar as condições de monopolização de um saber e as consequências sobre o desenvolvimento deste, da aparição de um corpo de especialistas" (idem: 96). Esta inversão é muito mais rica de significação sociológica, porque antecipa a interrogação sobre a natureza profissional, tornando estratégica a posse do capital cultural e transferindo a luta para o domínio das representações, dando espessura política ao conhecimento enquanto instrumento de poder. Partindo deste princípio, Cristophe Charle (1989: 119) acentua ainda que a investigação sobre os corpos profissionais deve privilegiar a compreensão das "estratégias pelas quais certas profissões acumulam, conservam e transformam a forma mais institucional do capital social". Esta perspectiva obriga assim à consideração da natureza dos próprios saberes, bem como da sua ligação orgânica ao Estado, sendo que é na simbiose entre determinados saberes e o Estado que podemos encontrar a razão de ser dos diferentes estatutos profissionais.

Descentrando-se do facto profissional "em si", para Marc Maurice (1972) "(....) há que situar o estudo [das profissões] na transformação da estrutura das classes sociais e dos seus fundamentos político-económicos, contribuindo para uma sociologia das profissões enquanto sociologia da divisão do trabalho, entendendo o estatuto profissional como um entre outros no quadro de um processo de transformação das ocupações" (idem, 224 e segs.). Também para Giles Dussault (1988) uma perspectiva marxista sobre o facto profissional leva à contestação da visão assente na manipulação de u m "capital de legitimidade", visando apoios políticos e o fechamento de u m segmento do mercado de trabalho, na medida em esta perspectiva ilude a desigualdade da estrutura ocupacional que subjaz ao mundo profissional (idem: 134). Gyarmati recoloca esta posição interrogando do ponto de. vista ideológico a ligação orgânica da teoria das profissões à ideologia dominante da sociedade capitalista e o seu contributo para a sua reprodução. Pelo que, nomeadamente no que se refere à divisão do trabalho sanitário, este deve compreender-se no contexto socio- político mais vasto da divisão do trabalho, interrogando em particular a relação

de certas ocupações com a classe dominante e o "interesse" do Estado em apoiar a manutenção das relações de produção capitalistas (Giles Dussault, idem. 135).

Também para H u g h e s (1996) n e n h u m trabalho é completamente inteligível se não se reportar à divisão do trabalho, sendo por esse prisma que o estatuto relativo de uma actividade deve ser perspectivado pelo investigador, dando-se então a perceber o processo de construção de que é resultado. A sua abordagem vai enfatizar as condições de delegação da autoridade e autonomia profissional bem como a natureza desta autoridade e autonomia constitutivas do monopólio que estão na base da institucionalização dos corpos profissionais.

Assim, nas suas análises do mundo profissional, Hughes designa por "profissões estabelecidas" aquelas que, no quadro da divisão do trabalho, apresentam um maior estatuto, e que devem a sua existência social à posse de duas características fundamentantes do facto profissional, que designa por

licença e mandato. Decorrem fundamentalmente do facto de estas profissões

reclamarem a posse, em exclusivo, de um saber de natureza teórica e prática, obtido em instituições académicas superiores. Tal como Freidson, o autor postula como fundamento do facto profissional a instituição da diferença entre sábios e profanos, sendo no cerne desta relação que se operacionaliza a licença. Esta supõe, por parte dos profissionais, "o direito exclusivo de praticar, no quadro de uma ocupação, a arte que professam conhecer, e prodigalizar o tipo de conselhos cuja origem reside no saber especializado de que dispõem" (Hughes, op. cit.: 108), e, em correlação, supõe, por parte do público, o reconhecimento desse facto, mediante uma "liberdade de acção concedida aos membros de uma profissão (...) no que concerne à sua prática profissional, à sua maneira de viver e de pensar" (idem: 108). Para este autor, uma das