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Da Oficina à Universidade Transformação do conhecimento farmacêutico e das instâncias de formação

INTRODUÇÃO

O objecto desta primeira parte que agora se introduz é a transformação dos saberes em ordem à sua escolarização e cujos efeitos visíveis se reportam à natureza dos conteúdos, às formas de ensinar e à natureza das instituições educativas. Historicamente, este processo de escolarização dos saberes materializou-se pela dissociação das instâncias de formação das condições de exercício e ainda pela constituição de saberes veiculados sob a forma da escrita, tornando-se "saberes transponíveis" no dizer de Petitat (1982) ou em "saberes formalizáveis" segundo a terminologia de Bernard Lahire (1988).

O objecto empírico em análise vai ser, espeecificamente, a emergência e transformação do conhecimento farmacêutico e das suas instâncias de formação, no Ocidente cristão e em Portugal, ao longo de um período que se baliza genericamente entre o século XIII e o século XX. Paradoxalmente, em cada um destes marcos a Universidade vai constituir-se como a instância de formação estruturante do saber e da condição profissional farmacêutica: no século XIII por exclusão, conduzindo os farmacêuticos, à data boticários, à condição profissional de "mecânicos", submetidos ao sistema de formação corporativo para a aprendizagem, investidura e exercício, condição esta que vigorou até ao século XIX. No século XX, será por inclusão da formação farmacêutica na Universidade convertendo-se em ensino académico, que estes profissionais vão ver consagrado o seu estatuto epistemológico de homens de ciência e o seu estatuto de profissionais liberais, convertendo-se em

farmacêuticos.

Este duplo processo de exclusão e de inclusão do conhecimento farmacêutico como saber académico, vai fazer-se em íntima articulação com as transformações do conhecimento médico, das suas instâncias de formação e do seu estatuto sócio-profissional. Também este se converteu de saber oficinal em saber académico, na base de uma ruptura que conduziu progressivamente à afirmação da medicina como ciência natural distinta da Teologia. Subjaz assim a esta estruturação relativa das duas actividades, a identificação e a autonomização cada vez mais precisa do campo sanitário como um campo laico, relativo na sua estruturação e na sua regulamentação ao poder público e, nos seus fins, à vida social.

A transformação das instâncias de formação no caso farmacêutico vem ainda a evidenciar, a partir do Iluminismo, a sua íntima relação com a transformação científica mais geral, nomeadamente a que presidiu ao desenvolvimento da ciência química.

Em Portugal, a emergência e a transformação do ensino e da condição sócio-profissional dos farmacêuticos baliza-se fundamentalmente em três períodos: do século XIV (1338) à primeira metade do século XIX (1836), no decurso do qual vigora a aprendizagem oficinal seguida de exame pelo Físico- Mor; de 1836 a 1918, período no qual o ensino farmacêutico tendencialmente académico se liberta institucionalmente da tutela médica e em que se assiste à criação da primeira sociedade científica farmacêutica - a Sociedade Farmacêutica Lusitana - vindo a culminar com a criação de Escolas de Farmácia autónomas nas três Universidades do país; e finalmente um terceiro período que, apesar de não ser homogéneo, tem como marcos fundamentais a criação de três Faculdades da Farmácia em 1921 e a sua reposição em 1968 até à actualidade.

Neste processo de individualização dos farmacêuticos como grupo profissional, que se articulou de uma forma problemática com a profissão médica e as suas instâncias de formação, o Estado aparece desde sempre como uma figura central, quer no que refere ao exercício profissional, pela separação e regulamentação das duas actividades, quer no que refere ao ensino, pela criação das escolas de farmácia em condições de independência académica e administrativa.

C a p í t u l o 1

NO PRINCÍPIO ERA A FÉ

A alma que cura

Segundo Danielle Jacquart (1995: 176), u m dos legados duradouros da Idade Média ocidental foi a imposição irreversível ao m u n d o culto e à sociedade do estatuto intelectual da medicina. Este foi possível quando a medicina adoptou o Galenismo7 como teoria médica secular, iniciando-se desde

então um processo de exclusão sócio-cultural de todas as outras abordagens do corpo que se não reclamavam dos princípios veiculados pela medicina escolástica. Assim, a afirmação da medicina como ciência natural, não teológica,

elevada à categoria de saber académico e profissão legítima do corpo, decorre de

uma cisão de tipo epistemológico e social entre o corpo e a alma, diferenciando, a partir de então e em regime de exclusão, o padre e o médico, definidos, respectiva e tendencialmente, como interlocutores privilegiados da salvação das almas e das doenças do corpo. Como veremos, a esta especialização de funções, e numa lógica que transportada para a medicina dissocia no próprio trabalho médico a componente intelectual (racional) da corporal (mecânico), vai associar-se a definição profissional da cirurgia e da farmácia como actividades operatórias, subsidiárias da medicina, e com u m estatuto epistemológico e sócio-profissional inferior.

No contexto da reorganização social decorrente da queda do império romano, Caritas e Infirmitas vão revelar-se duas noções e dois valores centrais da espiritualidade cristã (Jole Agrimi, 1995: 155). A Caridade, v i r t u d e s u p r e m a , é o elo que estabelece uma relação entre a divindade e os seus filhos, através da

' Designa-se por Galenismo o sistema médico-fisiológico elaborado por Galeno, nascido em Pérgamo no ano de 129 d.c. A sua doutrina de caracter naturalista, corresponde a uma "(•••) confluência eclética de toda a tradição médica grega e alexandrina, recebendo influxos do humorismo hipocrático (..-)"- O conceito de patologia galénica organiza-se em torno da localização da enfermidade e do humorismo: "(•••) a enfermidade sempre tem uma localização orgânica e responde a uma lesão (...)", o humorismo supõe que a enfermidade resulta de um transtorno somático", e portanto "(...) fora do corpo (...) não pode existir enfermidade propriamente dita. Toda a enfermidade pressupõe (...) uma alteração orgânica entendida, às vezes, como desequilíbrio, como lesão ou como desordem orgânica" (Juan Riera, 1985:154)

acção destes entre si, à semelhança de "uma comunidade que caminha na terra mas [que] tem o seu coração no céu" (Dumond, 1992: 41).

Articulando num propósito de salvação individual um projecto de integração social supõe, para cada um, um afastamento de si que se transforma num desenvolvimento de comportamentos e acções face aos outros, codificadas nas diversas obras de misericórdia. Estas constituem um programa de integração social total. Espirituais e corporais, implicam gestos concretos em torno das dádivas de si, dos bens materiais e do corpo, nomeadamente a cura dos enfermos, de que a Igreja se constitui mediadora privilegiada. O c o r p o doente e o sofrimento físico aparecem assim investidos de uma representação que os integra num projecto divino em que se realiza, pela salvação dos outros, a salvação de cada um (Agrimi, 1995: 153).

Por um lado, a possibilidade de apresentar a condição de doente numa sociedade tão precária não oferecia quaisquer dificuldades, sendo a doença identificada a uma condição resultante de uma sobreposição de estados de pobreza material, física e espiritual num contexto em que se não praticava a segregação espacial destas categorias, e em que não existiam lugares destinados aos doentes enquanto objectos de cuidados de natureza médica8; por outro lado,

do ponto de vista mental, a doença inseria-se numa representação do sofrimento de ordem teleológica, sendo considerada como inerente à condição humana após o cometimento do pecado original, e não como um momento transitório e natural, entre estados de saúde considerados também eles naturais. Em conformidade com esta concepção da "doença-demónio" (Sternon, 1933: 96) a medicina e a terapêutica tornam-se uma prática religiosa, recorrendo à oração, à penitência, à unção de óleos santos, ao uso de relíquias e, à semelhança de Cristo, à imposição das mãos9.

Se a etiologia das doenças se atribuía ao mal, e à sua humana expressão, o pecado só podia ser combatido pela invocação de um poder espiritual neutralizador. Os dias santificados, a designação das doenças segundo os nomes dos santos e a invocação do seu poder curativo constituíam os recursos terapêuticos comuns a esta medicina de tipo exorcisante.

8 Sobre a natureza assistencial e caritativa dos hospitais medievais consulte-se, entre outros, o artigo de Jole Agrimi e Chiara Crisciani (1995: 150-174).

9 Segundo Sternon (1933: 98), a imposição das mãos como prática curativa tem uma origem ancestral e permaneceu no Ocidente veiculada pelo saber médico e como apanágio real no tratamento das escrófulas até ao século XIX .

Uma pedagogia do sofrimento e da caridade

Esta concepção que insere doença n u m juízo de valor religioso, torna-a num objecto ambivalente de uma pedagogia do sofrimento e da caridade (Jole Agrimi, 1995: 154), na medida em que a pessoa doente, frequentemente repugnante ao olhar e, quanto ao entendimento, identificada com a imagem de Cristo sofredor, se torna n u m objecto do amor dos seus semelhantes e, simultaneamente, exibe uma imagem do pecado indissociável da condição terrena da humanidade.

De imagem da decadência, será como instrumento de salvação das almas que o lugar da doença vai ser potenciado, mobilizando todo um projecto de integração social em torno da regulação da relação entre a riqueza e a pobreza, num contexto em que obriga a conciliar uma concepção teológica de filiação divina e irmandade h u m a n a que, simultaneamente, legitime a terrível desigualdade social e o sofrimento. Assim se compreende que os pobres e os enfermos não estejam socialmente isolados. Nesta óptica, os verdadeiros "médicos" são os doentes, os disformes, os mendigos doentes que pedem esmola. Tal como "Cristo [que] é com efeito "médico" pelas curas miraculosas que pratica e porque traz a salvação à humanidade" (...), sendo "também medicamento (...) porque é utilizado para curar as chagas dos nossos pecados" (Jole Agrimi, op. cit.: 155).

Durante a alta Idade Média desenvolve-se assim uma caridade indiferenciada do ponto de vista do socorro físico dos objectos a socorrer (velhos, mulheres, órfãos, doentes, mendigos, etc.), dos agentes do socorro e das instituições. Não sendo a saúde do corpo o objectivo primeiro dos cuidados, é a qualidade de cristãos ao serviço de um ideal fraterno que legitima a interacção assistencial entre sãos e doentes. Na impossibilidade de uma teoria médica secular que recoloque os seres humanos e os cuidados médicos na cidade terrena, constrói-se uma teologia médica que, actualizando na terra a cidade divina, os remete para fora do mundo num projecto de salvação colectiva.

Este discurso teológico acerca do sofrimento do corpo, em que a própria cura dos males físicos era entendida, após o exemplo de Cristo, como milagre e perdão do pecador, não favorecia uma interrogação médica de natureza profana. Pelo contrário, ao longo do século XII, segundo Agrimi (op. cit.: 156), assiste-se por parte da igreja a uma hostilidade face à medicina secular.

Argumentavam-se então as incapacidades terrenas de curar face ao poder miraculoso de Deus, e o seu carácter nefasto no plano da salvação, dado que as acções humanas não só nada acrescentavam ao poder do criador, como também, dada a sua maneira de actuar, muito mais próximas da natureza, pretendiam orgulhosamente substituir-se à intervenção divina.

Para a Igreja, na pessoa do doente, havia uma indistinção do cuidado do corpo e da alma e, portanto, uma sobreposição de acções. Não é de estranhar que uma religião fundada na procura da salvação a partir do pecado e da degradação física encontre na doença um vasto campo social para exibir e exercer o seu poder regulador da vida social, legitimador da sua posição privilegiada entre os homens e a sua salvação. Enquanto interlocutor da divindade, este poder sobre o corpo, que advém do poder sobre a alma, tem a sua geografia privilegiada nos santuários, à porta das catedrais, nas rotas santas dos peregrinos etc., locais simultaneamente de culto, de caridade e de cura, por vezes sobrepondo-se ao culto de outras divindades, e que, em alguns casos, permanecem como rota obrigatória nos dias de hoje.

A medicina monacal

Por outro lado, no decurso da acção assistencial, a atenção sobre a alma do pecador não deixa de revelar a sua morbilidade física e de suscitar cuidados que procuram, se não a cura, pelo menos o alívio. Assim, é no interior da própria igreja, no campo religioso monacal, que surgem as ordens hospitalares e os primeiros estudos e cuidados médicos (Agrimi, op. cit.: 166). Diversas Regras, nomeadamente a Ordem Beneditina, reflectem cuidados com a saúde física dos seus membros, bem como se recomenda que os monges estudem a medicina e a ciência10, que aliás praticam intra e extra muros, nomeadamente nos hospitais

que construíam junto aos mosteiros. Sendo as depositárias dos textos clássicos de medicina e de farmacologia, as Ordens procediam nos conventos à plantação de Jardins Botânicos, onde produziam e reproduziam plantas de reconhecido

10 Rómulo de Carvalho (1986: 28) refere que o Prior da Ordem dos Cónegos Regrantes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra procurou que algum dos cónegos seguisse estudos médicos em Paris " pela muita necessidade que havia desta ciência no reino; e porque naqueles tempos não era o estudo da medicina indigno de gente eclesiástica e ilustre". Veja-se ainda a obra de Juan Riera (1985: 358), para quem, na alta IdadeMédia, a condição eclesiástica dos médicos era indubitável, consistindo num retrocesso em relação ao carácter secular da medicina introduzido pela Grécia clássica.

valor curativo, bem como se entregavam ao seu estudo botânico e aplicação terapêutica.

Duas escolas Italianas de origem monacal tornaran-se famosas na Europa como centros de ensino da medicina entre os séculos VI e XIII, a Escola do Monte Cassino, de monges Beneditinos e a Escola de Salerno (Le Goff, 1985: 337). Esta, considerada como o primeiro centro laico de ensino da medicina do Ocidente, permaneceu até ao século XII como um centro de ensino médico de influência árabe (Riera, 1985: 360) e, nela, destacaram-se como autoras algumas mulheres (Dall'ava-Santuci, 1989: 43). Em simultâneo, uma medicina secular ia sendo ensinada "por camaradagem ou contrato" (Gonçalves Ferreira, 1990: 75) e praticada nomeadamente por médicos judeus (Folch Jou, 1972: 151), bem como todo um conjunto de cuidados médicos, integrantes da cultura popular, ia sendo transmitido e dispensado a nível doméstico e comunitário desde tempos ancestrais, sobretudo pelas mulheres1 1.

O saber médico revalorizado

A revalorização de u m saber médico secular vai surgir no decurso de transformações que, a partir do sec XII, se revelarão cruciais para a sociedade medieval. Michel Mollat (1978: 56) refere as circunstâncias que neste século permitem perceber a alteração dos comportamentos humanos no domínio da intervenção social, quer por parte dos poderosos, quer dos necessitados: as cruzadas, a expansão demográfica, a insinuação da economia monetária no campo, o abalo dos contornos da família patriarcal, o relaxamento das estruturas hierárquicas em prol das confrarias horizontais, o desenvolvimento das cidades, a sucessão espasmódica de períodos de escassez e de fome, e o aumento do número de refugiados e associais. Tal quadro vai obrigar à reconversão das práticas caritativas, passando da indiferenciação do socorro à diferenciação dos socorros e dos socorridos, recuperando alguns, neutralizando outros e ajudando terceiros, num triplo problema cheio de contradições e obstáculos. A partir de então, de não discriminatória que era, a caridade torna-se ordenada "secundum ordinem caritas "(Agrimi, op. cit. : 158).

É a pressão social dos necessitados e o medo que inspiram que vai ditar uma ordem de distinção do verdadeiro e bom do falso e mau pobre, passando o exercício da caridade a pressupor uma observação e um juízo prévios à acção, tentando diferenciar e adequar o socorro à necessidade. Vão ser estas as condições que, de distinção em distinção, vão permitir isolar a doença como uma fraqueza específica passível de remédio, segundo técnicas apropriadas, ou seja, através das "as artes mecânicas " (Agrimi, op. cit.: 157). Estas, pela capacidade inventiva humana de que emanam - primado da acção humana - inserem-se num projecto de progressiva autonomização dos seres humanos, quer das condições naturais que os oprimem, quer dos desígnios celestiais que os subjugam, produzindo e alargando progressivamente uma esfera de intervenção social de sentido horizontal e de alcance temporal. Neste quadro secularizante, a adopção do Galenismo a partir de finais do Século XII (Riera, 1985: 271), herdeiro de Hipócrates para quem "a medicina é uma ciência das coisas escondidas (èpistèmè) a partir da qual um raciocínio terapêutico é possível" (Gourevitch, 1993: 95), vai permitir um exercício médico e uma terapêutica de tipo secular, nascidos do reconhecimento da possibilidade que o homem e a natureza apresentam de ser objectos de conhecimento e de acção12.

A Deus o que é de Deus

A medida que a sociedade se diferencia cada vez mais e que a integração social se torna mais complexa, ao renovamento urbano com as suas solidariedades fechadas acrescem as transformações nos campos empurrando para a marginalidade e errância geográfica grupos que escapam à lógica do sistema, a Igreja experimenta a necessidade de "dar a Deus o que é de Deus" definindo claramente os domínios da sua intervenção. "(...) Exige dos padres uma competência de especialistas, tornando-os verdadeiros "profissionais" dos cuidados da alma. As deliberações conciliares vão neste sentido interditando aos homens da igreja o estudo e o exercício da medicina e de outras disciplinas

12 Com Hipócrates o mundo antigo inicia uma ruptura com a medicina sacerdotal o que permitiu o desenvolvimento de uma ciência médica, de tipo naturalista, fundamentada na experiência e observação considerando a doença como um fenómeno natural desprovido de significado místico, explicável por desregulação dos princípios orgânicos que presidem à vida do corpo. Esta concepção de tipo naturalista considerava a doença passível de ser estudada pelos homens e registada nos livros. (Philippe Meyer, 1984: 30).

profanas (...) favorecendo o aprofundamento dos estudos teológicos, melhorando a preparação do clero e evitando a sobreposição de tarefas diferentes" (Agrimi, 1995: 158 ).

Ao afirmar a sua vocação de especialista da disciplina da alma, a igreja deixou o campo livre ao aparecimento de novas disciplinas do corpo; por essa razão, o médico usufrui, neste período, de uma definição mais rica e mais estruturada das suas prerrogativas científicas e profissionais. A sua formação passa a fazer-se em escolas, depois em Universidades, segundo percursos institucionais homogéneos, sancionados por u m exame público (Agrimi, op. cit.: 158-159).

Entretanto, e como consequência da abertura intelectual propiciada pelas cruzadas, u m saber propriamente médico e terapêutico enriquece-se graças ao conhecimento e tradução pelos árabes das obras dos autores seculares, como Hipócrates e Galeno, legados pela antiguidade clássica, e que serão os sustentáculos da secularização da medicina (Riera, 1985: 158). Esta processa-se no campo do saber, do exercício profissional e da terapêutica, pela aceitação de uma "ideia de natureza humana integrante da physis" (na base da qual se designam os médicos por físicos), passível de um conhecimento e acção racionais que permitem conceber a doença no quadro de uma teoria do funcionamento do organismo vivo, e a terapêutica como um contributo para que este retome o seu equilíbrio natural (Riera, op. cit. : 265).

Esta concepção assenta no primado da vis medicatrix naturae - força curativa da natureza - sendo enquanto prática subsidiária desta, na leitura, interpretação, e no reforço desta possibilidade, que o médico encontra a definição e a possibilidade da sua acção (Riera, op. cit.: 266).

Ainda assim, no mundo medieval, o entendimento da doença como um fenómeno corporal sobre o qual o médico pode intervir conserva um valor limitado de transição. A subordinação do Estado à Igreja, se não apaga o Estado, torna-o, na ausência de "uma teoria cívica" (Boltanski, 1991), dependente de uma ordem de legitimação superior. Da mesma forma, ao outorgar aos médicos seculares o exercício da medicina, a Igreja fá-lo de uma forma sintética, numa perspectiva teocrática, que articula uma nova concepção das relações entre a natureza, os seres humanos e Deus, na base de uma nova forma de mediação (Agrimi, op. cit.: 159). Os médicos reconvertem-se então em instrumentos de Deus, através dos quais, sob a forma de dons, Deus exerce o seu poder curativo.

Por seu lado, servindo-se da capacidade que foi dada aos homens para entender a natureza, ela própria dotada de poderes (virtudes) terapêuticos, segundo as diferentes espécies de que se compõe, os médicos podem e devem socorrer a humanidade sem incorrer, como anteriormente, no pecado do orgulho. Tal vai permitir o desenvolvimento de uma medicina secular que não afronte o poder de Deus e dos homens da Igreja seus representantes. Na construção medieval da ciência médica o primado hipocrático da natureza vai ser temperado pelo primado teocêntrico, subordinando a força curativa da natureza, onde se inclui o entendimento humano, ao desígnio divino.

A Medicina. Uma recta scientia ao serviço da recta conscientia

Assim, a Medicina, ao transpor os muros conventuais e ao ser exercida como actividade profissional por leigos, vai enfrentar dois novos problemas que, embora opostos na sua natureza, se implicam mutuamente, e que, de uma forma duradoura, vêm a ser estruturantes das chamadas profissões liberais: o problema da representação legitimadora da acção humana e o da retribuição económica do seu exercício. Quanto à legitimação, a interferência divina